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Discurso do Urso: sobre Cortázar e crianças

Estava esses dias revirando anotações antigas e encontrei umas frases do escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo. Dizia mais ou menos assim: “Quando me perguntam sobre a utilidade da poesia, costumo dizer: ‘para que serve a saudade? para que serve a vida? para que serve ter um amigo? Será mesmo que cabe ter uma função para tudo?”.

Tenho um amigo muito querido, o Renato, que adora dizer: “eu não entendi, mas adorei”. Acho que falávamos de poesia ou sobre surrealismo. Ou simplesmente sobre arte. Mas o que é poesia? E lembrei de uma de Oswald de Andrade assim:

“Aprendi com meu filho de 10 anos

Que a poesia é a descoberta

Das coisas que Nunca vi”

Talvez, por isso, outro poeta nosso, Manoel de Barros, tenha constatado: “Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”.

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Cheguei a estas inquietações, provocada aqui pela minha estante ao rever Discurso do Urso, lançado em 2009 no Brasil pela editora Record, que é a edição de um conto do belga-argentino-francês Julio Cortázar, simplesmente um dos escritores mais originais de todos os tempos que em 26 de agosto passado completaria 100 anos. O conto poético e surrealista faz parte de uma de suas grandes obras, Histórias de Cronópios e de Famas, de 1962, mas foi escrito dez anos antes e dedicado aos filhos do pintor e poeta Eduardo Jonquières, amigo de Cortázar. Uno poesia, com liberdade e, agora, com surrealismo, como uma chance de nos ligarmos ao fantástico, ao sem sentido, possibilidade tão sem amarras das crianças. Seria o Discurso do Urso dar as crianças o que já é delas?

 

Provocado com as fortes ilustrações do espanhol Emilio Urberuaga, o livro nos apresenta um urso que vive nos canos de um prédio. Ele caminha de apartamento em apartamento e observa a vida, deslumbrado com o que vê.

 

Acho que gostam de mim porque meu pelo mantém a tubulação limpa, corro sem descanso pelos tubos e nada me deixa mais feliz do que passar de andar em andar roçando pelos canos.

DISCURSOURSODENTRO2

 

E vai nos mostrando, trecho a trecho, como interfere na vida de quem mora ali. A leitura nos causa aflição, espanto e um certo conforto. “Tem alguém olhando por nós”, penso. Este olhar do urso nos joga para dentro, nos faz pensar sobre a vida mecanizada, tão comum. Veja aqui:

Então deslizo por todos os canos do prédio, grunhindo contente, e os casais se agitam em suas camas e se queixam da tubulação. Alguns acendem a luz e escrevem um bilhete para se lembrar de protestar quando encontrarem o zelador.

O último período do texto é o mais lindo. Mas guardo para a alma de vocês lerem, no ritmo deste livro, sozinhos. Quero dizer que não, não será a mesma coisa de ter lido no livro de contos. Esta é a beleza sutil de uma boa edição de literatura infantil. Aquela lá, feita “para crianças”. Por que será esta classificação, hein?

Experimentem.

A cuidadosa tradução é do mineiro Leo Cunha, escritor, poeta e premiado autor para crianças.

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Discurso do Urso (Editora Record)

textos de Julio Cortázar

ilustrações de Emilio Urberuaga

tradução de Leo Cunha

2009

 

O DIA EM QUE EU TROQUEI MEU PAI POR DOIS

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Conheci o traço do célebre desenhista de quadrinhos e ilustrador inglês Dave McKean conduzida pelas letras do também inglês Neil Gaiman. Mas não foi com Sandman, principal sucesso de Gaiman. Também não foi por Coraline. Foi com o fabuloso Os Lobos Dentro das Paredes, lançado aqui pela Editora Rocco, em 2006. É delicioso abrir um livro infantil cheio de figuras sombrias, olhos esquisitos, colagens e proporções surpreendentes. Os Lobos ainda nos oferece um projeto gráfico que lembra o ritmo dos quadrinhos, o que faz tudo ser ainda mais especial para contar a história de uma menina que tem certeza de que lobos vivem nas paredes de sua casa. Assustadoramente nonsense.

 

Mas quero falar aqui sobre um que a Rocco acaba de lançar: O Dia Em Que Eu Troquei Meu Pai Por Dois Peixinhos Dourados. Isso mesmo. É este o nome, o mote e, mais: a inspiração veio de um, digamos, desabafo de um dos filhos de Gaiman, chamado Michael. “Ele estava com raiva de mim”, conta Gaiman no posfácio. Contrariado pelo pai ele disse que preferia ter um peixinho dourado.

DIATROQUEIPAIDENTRO

Nasceu a história. Na versão imaginativa de Gaiman, um menino está em casa na companhia da irmã menor e de seu pai, que lia o jornal e não prestava atenção em mais nada. Um belo dia conhece os dois novos peixinhos de seu amigo Nathan e sugere trocá-los por algo seu. Ele oferece um velho saco de golfe, uma flauta irlandesa, uma nave espacial antiga, cartões de beisebol, livros… Mas o amigo recusa tudo. Até que surgiu a grande ideia:

 

Troco os peixinhos dourados por meu pai! – eu disse.

Ai-ai – disse minha irmãzinha.

Não é uma troca justa. – disse Nathan. Eu tenho dois peixinhos dourados e você só tem um pai.

Ele é maior do que seu peixinhos dourados – argumentei. Ele é tão grande quanto 100 peixinhos dourados.

 

(…)

 

Você vai se ferrar quando a mamãe chegar – disse a irmãzinha.

 

Adivinhem o que a mãe disse quando ficou sabendo da troca?

 

– Pode ir tratando de levar esses peixinhos dourados para o Nathan agora, e não volte aqui sem o seu pai.

 

Mas é claro que ela ia dizer isso! E disparou até para a outra filha, também acusada de ser responsável, uma cúmplice. O fato é que, como vocês podem imaginar, não seria uma destroca fácil. Não que Nathan tenha amado a companhia do pai do amigo. Pelo contrário: o garoto o trocou por uma guitarra. E assim começava uma exaustiva caminhada de trocas e destrocas, mas o nosso herói precisou seguir até o fim.

Como em outras tramas, é adorável ao extremo este poder da dupla de tornar tétrico sentimentos comuns das crianças. Quem não quer de vez em quando trocar de família? Quem não quer atenção? Quem não pensa em soluções escabrosas só para diversão – ou desabafo mesmo?

Livros assim são libertadores. Poder pensar isso é tão legítimo quanto o amor que a criança tem o direito de nutrir pela família. Livros assim são propulsores para a criatividade, para o pensar diferente. Tanto pelo nonsense da história e saídas da trama, quanto pelas possibilidades de ilustração, em traços firmes, cores fortes em diversos tons, colagens escondidas, tudo desafiador e instigante. Como devem ser as boas leituras!

DIATROQUEIPAICAPA

O Dia Em Que Eu Troquei Meu Pai Por Dois Peixinhos Dourados (Ed. Rocco)

textos de Neil Gaiman

ilustrações de Dave McKean

2014

Mel na Boca, novo livro de André Neves

MELNABOCAAVONETO

Entramos no novo livro do pernambucano André Neves por um portão baixinho. Ao lado dele, um muro longo exibe um passarinho meio escondido, mas pronto para gente ver. Pássaro é paixão e marca deste ilustrador. A dupla de páginas a seguir começa com um momento poético. Poesia para contar a vida é marca deste escritor.

Lentamente o dia se enrosca nos galhos da árvore e ilumina o pátio.

Pendurada, a gaiola com o pintassilgo dá bom dia ao sol.

O avô gosta de pássaros e de manhãs. Tino, o neto, também gosta e tem mel na boca quando canta.

Na imagem, quem está empuleirado é neto e avô. A gente vê só uma parte, mas já sonha com o afeto que estamos prestes a conhecer. Assim nos é apresentado Mel Na Boca, que acaba de ser lançado pela Editora Cortez na Bienal do Livro de São Paulo. A sucessão de páginas nos adoça o olhar: tem cenas carinhosas de avô e neto, tem cheiro de brincar com manhãs. A gente quase consegue ouvir o canto-passarinho do menino. Depois, quase ouve ele tirando música de tudo: é sua forma de viver o mundo no tempo das férias na casa do avô. E, então, vê a cumplicidade dos dois estendida em um dos momentos de mais confiança entre adulto e criança: aprender a andar de bicicleta.

MELNABOCARODINHA

É neste momento também que entendemos a paixão do avô pelo canto dos pássaros. O menino para o andar de bicicleta, porque o avô se perde na música da ave. É lindo reparar onde estão as rodinhas da bicicleta: quem, afinal, está buscando equilíbrio, oras?

A noite chega e segue daí a angústia do menino vivendo uma etapa da liberdade. É compaixão? É ciúme? Ele dorme aflito, em uma ilustração boa de ser perder nas suas cores, tons e luzes, no mistério do olhar do menino, no movimento do que o acolhe.

MELNABOCADEITADO

 

O dia seguinte pega o leitor de surpresa: acontece o desejado por quem lê desde a primeira dupla, mas o surpreendente mesmo é a reação do avô. A cumplicidade toma outra forma e é a gente que sente aquele ventinho que vem com o pedalar. Quem, afinal, deseja a liberdade?

O livro nos põe a refletir a partir de um cotidiano simples, algo nosso, identificável. As cores, as colagens, as luzes quase fotografia, os gestos em poesia e o amadurecimento de avô e neto, juntos, nos dão aquela vontade de começar a leitura de novo. É a trajetória o encanto maior, como é a vida de qualquer pessoa. Este é o mel que experimentamos, embora sempre seja uma escolha.

MELNABOCACAPA

Mel na Boca (Ed. Cortez)

textos e ilustrações de André Neves

2014

Leia também: A Caligrafia de Dona Sofia, um clássico de André Neves
e o encontro de André com crianças italianas durante a Feira do Livro Infantil de Bologna

 

 

GRUPO SOBREVENTO E O PORQUÊ DO TEATRO PARA BEBÊS

Um bate-papo emocionante com o diretor do Sobrevento Luiz André Cherubini sobre as capacidades, direitos e possibilidades de um bebê diante da arte

cena do espetáculo Bailarina, do repertório do Grupo Sobrevento
cena do espetáculo Bailarina, do repertório do Grupo Sobrevento

Poucas coisas são tão delicadas quanto acompanhar o desenvolvimento de um bebê. Eu tenho seis sobrinhos, vários amigos com filhos, estudei e falei 8 anos sobre o tema na revista Crescer e hoje, com a minha filha Clarice, o encanto só aumenta. Mas existe um outro lado desta história hoje em dia: um comércio maluco que nos impõe muitas demandas de consumo, inclusive de atividades culturais. Há inúmeros grupos se formando para, unidos e com seus bebês em mãos, ouvir rock ou samba, brincar como antigamente, fazer piquenique, praticar ioga… E, claro, em nome disso, uma porção de equívocos.

Em 2007, o Grupo Sobrevento, já referência em teatro de animação ousava trazer pela primeira vez ao Brasil um festival totalmente dedicado aos bebês. Era uma parceria com a companhia espanhola La Casa Incierta, considerados os pioneiros no mundo. Pedi a companhia de um grande amigo, Giuliano Tierno, diretor de teatro, arte-educador e contador de histórias para assistir comigo. Parafraseando um texto do uruguaio Eduardo Galeano, eu precisava que ele “me ajudasse a olhar aquela beleza”. Eu saberia julgar aquilo?

A experiência foi fabulosa: bebês mudos por 30 minutos. Atentos, entregues, poetizando a si mesmos. Em contato com a arte no tempo e no silêncio deles. O Sobrevento, então, começaram, anos depois a fazer seu próprio festival anual. Conseguiram apoio financeiro por leis de incentivo, a acolhida da cidade de São Bernardo do Campo e, este ano, estão na terceira edição do Primeiro Olhar: Festival Internacional de Teatro Para Bebês, com espetáculos do próprio grupo e de companhias estrangeiras, além de oficinas e encontros sobre o assunto, em São Bernardo em São Paulo. Tudo voltado para crianças de 0 a 3 anos. Esta temporada vai até dia 31 de agosto, domingo que vem (saiba toda a programação aqui), e grátis! Não percam esta ou uma futura chance.

Luiz André em cena do belíssimo Meu Jardim, espetáculo que assisti com a minha filha Clarice
Luiz André em cena do belíssimo Meu Jardim, espetáculo que assisti com a minha filha Clarice

Quando a minha filha Clarice tinha pouco mais de 1 ano, fomos assistir ao Meu Jardim, belíssimo. Eu não sabia como agir quando ela foi para o meio do palco explorar o cenário. Luiz André Cherubini, ator e diretor do Sobrevento, do palco acenava para que eu me acalmasse e deixasse Clarice livre. Neste bate-papo emocionante que tive com ele, pai de Laura e Lourenço (os dois principais motivos de ele iniciar sua pesquisa), dá para entender melhor o que estava acontecendo ali: arte pura. Os bebês nos lembram quem nós realmente somos e nos fazem perceber, com a capacidade que guardam de se maravilhar com as coisas, com a emoção profunda que sentem (sobretudo com o seu medo e a sua piedade) o ato sagrado e poderoso que o Teatro é.”

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Luiz, a primeira vez que ouvi falar em “teatro para bebês” eu trabalhava na revista Crescer e foi naquele primeiro encontro que vocês fizeram sobre o assunto, no Sesc Pinheiros, em 2007. No jargão sem delicadeza alguma do

jornalismo, fui “para checar” do que se tratava. Por quê? Porque, todos os dias na Crescer, e cobrindo a área de cultura, eu não aguentava mais o monte de produções sem qualidade (em todas as áreas da arte) que caíam em nossas mãos, em nome de ser “bom” para o bebê (seja vendendo promessa de vínculo ou inteligência). E, claro, me deparei com aquela quase magia poética que La Casa Incierta apresentou. E entendi que a categoria de teatro vinha respeitar o bebê, a criança, a família e toda a sutileza que tem esses momentos e experiências. Pergunto a você: qual é o segredo disso? A que você atribui esse espécie de “ponto certo” desta arte, esse tom a que chegaram que proporciona ao espectador um encontro tão profundo?

LUIZ CHERUBINI: Acho que um ator que se dedique ao Teatro para Bebês deve fazer um exercício de humildade e deve estar disposto a aprender, mais que a ensinar. Deve colocar-se de igual para igual com os bebês (quando no Teatro, normalmente, os atores estão acima dos espectadores). Deve questionar as muitas certezas que há acerca dos bebês e as suas próprias certezas, porque o Teatro é filho da dúvida. Deve abrir mão das muitas cartas na manga, mecanismos de sedução, truques (que costuma chamar de técnica), em prol de um encontro consigo mesmo frente e por meio dos bebês. Deve questionar o ator que se tornou e o Teatro que o Teatro se tornou (porque o Teatro já foi e pode ser muitas outras coisas além do que é). Deve lembrar que público não é sinônimo de espectador e que todo Teatro é um encontro, mais do que uma exibição. Deve acreditar profundamente que a capacidade poética e de comunicação são inatas em todo ser humano e que todo ser humano é pleno desde que nasce. Acredito que assim – e até mesmo duvidando de tudo isto – chegaremos a um Teatro honesto, franco, puro e digno -mesmo quando errado e mal sucedido. Os bebês nos lembram quem nós realmente somos e nos fazem perceber, com a capacidade que guardam de se maravilhar com as coisas, com a emoção profunda que sentem (sobretudo com o seu medo e a sua piedade) o ato sagrado e poderoso que o Teatro é.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Este é o terceiro festival. O que mudou de lá para cá? Quais os ganhos? Vocês precisaram mudar algo seja na hora de “convencer” teatro ou patrocinadores ou algo assim? E na divulgação?

LC: Continuamos buscando, tentando entender o Teatro para Bebês e, como eles, estamos só engatinhando. A cada edição do Festival, buscamos um novo questionamento e uma aproximação cada vez mais profunda com os artistas que recebemos. Desta vez, queremos discutir a criação no Teatro para Bebês, estimular a criação neste campo, para este público. Para isto convidamos espetáculos que são pioneiros, espetáculos primeiros que, de alguma maneira, constituem-se em uma espécie de declaração de princípios, princípios diferentes, porque nascidos de diferentes artistas, advindos de diferentes campos da criação artística. Fazer Teatro para bebês não é fácil: ele enfrenta muitos preconceitos pelo simples fato de que os bebês são considerados e tratados pouco mais do que como cachorros – por isto não têm direito à Cultura. Nós que somos pais, professores, artistas do Teatro para Bebês sabemos da importância da primeira infância, mas nós ainda temos meio mundo para convencer disto. O que fizemos desde a primeira edição? Estendemos o Festival, que antes só ocorria em São Bernardo do Campo, a São Paulo. Estendemos os Festivais a creches públicas, porque o Teatro deve ir ao público, do mesmo modo que o público deve vir ao Teatro: é preciso ver que existe um grande público que não está habituado e que não se sente no direito de freqüentá-lo, o que nos parece muito injusto. Fizemos, com a cidade de São Bernardo, uma parceria que não só nos ofereceu espaço e condições para levar Teatro para Bebês para todas as creches públicas e conveniadas da cidade, atendendo mais de 7 mil bebês em um projeto que levou o Teatro para a primeira infância pela primeira vez às creches no país. Fizemos oficinas para cerca de 400 professoras de creches da cidade. Reafirmamos nossa certeza de que devemos tentar evitar ao máximo a cobrança de ingressos, a fim de reunir famílias de diferentes origens e classes sociais em um mesmo encontro, já que, naturalmente, diferenças de poder aquisitivo, linhagem, roupas, cortes de cabelo e cor de pele não fazem nenhuma diferença. Conseguimos preservar, no ambiente do Teatro, uma distância de marcas e empresas, a fim de evitar a constrangedora associação com o consumo, em um momento e situação de grande delicadeza. Temos o patrocínio do Proac para a realização deste Festival – verbas públicas oriundas de um programa paulista de apoio à Cultura – e o apoio da Prefeitura de São Bernardo e acreditamos que isto nos garanta a independência de que precisamos. O nosso cuidado com a divulgação é o de atrair um público que não seja mais numeroso do que o que somos capazes de receber (sobretudo oferecendo a possibilidade de fazer reservas e limitando os acompanhantes dos bebês a um único adulto). Toda a programação continua sendo gratuita e a prioridade de entrada é sempre dos bebês e o que facilita as coisas é o bom senso do público e o fato de se sentirem como convidados em nossa casa, ou como companheiros, e não como tendo adquirido um serviço ou colocando-nos como servidores.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Há famílias que vão mas ainda lutam para se enquadrar ou se adequar ao ritmo dos espetáculos? Penso que temos que abrir mão de tantas perturbações cotidianas para entrarmos no clima das peças, não? (falo como

mãe mesmo). Tem alguma história para contar, algum caso inusitado?

LC:  Vemos uma ansiedade muito grande dos pais, o que é natural. Nas creches, não precisamos explicar muitas coisas, mas quando recebemos um público familiar, temos que dar muitas indicações, como pedir que deixem o bebê assistir ao espetáculo como desejar (os pais costumam conduzir o olhar das crianças), como deixar que o filho assista ao espetáculo livremente, que deixem que ele sinta algum medo ou tristeza que queira sentir, sem trocar a atenção do espetáculo por uma atenção para si, além claro de ter que pedir para que os pais não tirem fotos ou que desliguem o celular. A tensão dos pais é muito grande – afinal de contas toda a ida ao Teatro demandou um esforço tremendo e uma grande preparação, ainda que não devesse ser assim – e temos visto cenas inacreditáveis de pais perdendo a compostura quando se vêem diante da possibilidade de que não haja lugares suficientes para todos os bebês na plateia. É claro que procuramos entender e contemporizar, mas há coisas incríveis que um bebê não deveria ver o seu pai fazendo, como dizer “já entrei, mesmo sem ingresso, e quero ver quem me tira daqui”.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Como você descreveria a mudança ou o benefício para o bebê de ter contato com um espetáculo como de vocês?

LC: Parafraseando Manoel de Barros, temos certeza de que o Teatro é muito importante, mesmo não sabendo para quê. Sabemos, sim, que é muito bonito ver pais saírem com os seus bebês e se encontrarem com outros pais com bebês. Sabemos que os bebês entendem tudo o que dizemos e fazemos – e profundamente – e se emocionam com os espetáculos a que assistem. Sabemos que o Teatro é uma oportunidade de os bebês verem, ouvirem, sentirem coisas a que não estão habituados, por excesso de proteção, por preconceito ou por um hábito impensado: por exemplo, bebê gosta de violino tanto quanto de xilofone e de branco, tanto quanto de azul claro. E sabemos que é muito emocionante e surpreendente fazer Teatro para Bebês, seus pais e seus professores e que eles também parecem se surpreender e se emocionar com o Teatro que fazemos – porque o nosso Teatro não é feito para agradar e atender expectativas e nem é feito para crianças somente acompanhadas de babás. E quando autoridades dizem que, no Teatro, os bebês gostam de sons, cores, luzes e movimentos, para nós, é o mesmo que alguém dizer que os amantes da poesia gostas de letrinhas pretas sobre um papel branco… ou seja, não estão falando nada de Teatro ou de poesia e não estão entendendo nada do que e importante entender. Se estas autoridades pudessem, como nós, atores, olhar nos olhos dos bebês veriam o mundo tão vivo, profundo, complexo que acontece dentro de cada um deles.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: E o que pode afetar no modo de ser, de viver dos adultos que estão vivendo aquela experiência? Você acredita que é uma contribuição por um mundo melhor?

LC: Eu não acredito que seja possível haver uma arte cínica. Mesmo a mais destruidora das artes quer, no fundo, construir alguma coisa. Os bebês ensinam os pais a ver o teatro de outra maneira. Em um espetáculo para bebês, por exemplo, você não pode dar uma ajeitadinha em um pé mal posicionado, porque aquele gesto irrelevante no teatro adulto ganha uma significação enorme frente aos bebês, que, naquele momento, estão justamente olhando para o seu pé. Uma folha que cai em cena, para um bebê é uma grande aventura, uma grande maravilha, e o adulto que está ao seu lado passa a ver as coisas também desta maneira. Assim, o Teatro para Bebês é uma descoberta também para os pais: a descoberta de um novo olhar – ou de um velho olhar, de um olhar que existiu um dia. E, claro, e também a descoberta da autonomia e da plenitude de seu bebê, que é capaz de ficar meia hora, uma hora, não entretido ou comportado ou calado, mas envolvido emocionalmente, poeticamente, com um acontecimento teatral, sem depender de ninguém, escolhendo e decidindo o que quer e como quer. Os bebês são plenos – a eles não falta nada que seja importante para um ser humano – porque trabalhar, produzir, consumir, ter controle de suas necessidades fisiológicas, falar não são parâmetros que nos sirvam para separar bebês de adultos. Nós acreditamos em um mundo melhor, queremos um mundo melhor e achamos que os bebês nos recordam a fragilidade e a humanidade que há em nós – e de que freqüentemente nos esquecemos.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Você, Luiz, pai, artista, agente de mudançasŠ o que guarda de especial no seu Esconderijo do Tempo? O que é que quando você lembra abraça sua alma?

LC: Lembro, com um amor imenso, de meu pai, cansado, com sono, ao pé de minha cama, no escuro, contando histórias para eu dormir. Conto as mesmas histórias, da mesma maneira, para os meus filhos. A primeira infância é muito importante. Uma agressão, uma rejeição, uma violência, a falta de afeto, nesta idade, deixam marcas profundas, indeléveis. É preciso lutar com fé contra o preconceito com os bebês, privados de direitos, do acesso à cultura, da integração social, de uma vida comunitária, vítimas da ignorância, do descaso, do egoísmo, da soberba, de certezas vazia, do cinismo, do utilitarismo, da mercantilização de tudo. Fazer teatro para bebês não parece grande coisa, mas, para mim e para o Sobrevento, é tão importante quanto contar histórias para um filho dormir.

 

Mais informações no: sobrevento.com.br

ou no facebook.com/grupo.sobrevento

 

A PRINCESA E O PESCADOR DE NUVENS

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Já fiquei bastante assustada com livros que tratam o tema morte para crianças sem delicadeza alguma. Mesmo de editoras de renome ou autores com muita experiência. Como se o assunto fosse fácil, o que não é nem mesmo para adultos, psicólogos, religiosos… lidar com a possibilidade da morte é, sem dúvida, um de nossos maiores desafios. Assim, foi um presente ler o novo livro do paulistano Alexandre Rampazo, A Princesa e o Pescador de Nuvens (Ed. Panda Books) que, para mim, entra na lista de outros (ainda bem!) livros que podem enriquecer nosso repertório, sem didatismo: apenas contando uma boa história. Sem saber, a obra veio me acalmar, me dar poesia para dar conta de um tema tão espinhoso, quase traiçoeiro – quanto tempo demoramos para aceitar ou entender a morte? E o que fazemos a nós e aos outros em nome disso?

Na história, uma princesa adora observar os formatos das nuvens. Mas, o que ela fazia, na verdade, era algo que nenhuma outra princesa poderia fazer: “para manter a lembrança dos seus sonhos maravilhosos, ela criava, desenhava e dava formas às nuvens para depois lançá-las ao céu.” Quem ensinou este poderoso “truque” a ela foi seu pai, um rei bondoso e muito amado pela menina. E o fazia também de um jeito bastante diferente, usando uma colher especial, uma nuvem guardada em uma gaiola e, claro, um pouco de magia. Em um dia qualquer, a princesa percebeu o silêncio no reino. O silêncio que revelaria depois o inesperado: o trono do rei estava vazio.

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A partir daí, é a sutileza que continua conduzindo a história. A menina é acolhida, depois fica sozinha. Elabora a perda? Ainda não. E é esta a parte que, para mim, tem de mais verdade, tem de mais poético. A garota encontra um jeito de continuar buscando pelo pai. Ela não se conforma e aí chega a parte do autor nos apresentar o Pescador de Nuvens. Que encontro! Nos surpreendemos junto com ela, crescemos ao lado da princesa.

O caminho é um texto leve mas cheio de pequenas profundidades. Você sente cair em uma reflexão mas logo é erguido como um balanço acalentador que vai e vem. Ilustrações de página inteira têm nas cores fortes uma dança harmônica com os delicados traços deste reino e personagens que vivem nas nuvens. Fortes como o poder de virar chuva. Leves como a aparência de pedaços de algodão.

ALERAMPAZOConversei com Alexandre Rampazo sobre o livro, sobre morte, sobre perdas, sobre arte e literatura e sobre o que nos torna humanos.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Como nasceu a história? Ela morava em alguma nuvem?

ALEXANDRE RAMPAZO: Não sei dizer ao certo quando a história nasceu. Estou sempre rodeado de anotações em post-its, agendas, cadernos, (talvez sejam essas as minhas nuvens), e contar uma história sobre a perda de algo ou alguém era um assunto que me interessava tratar de alguma forma. Juntei alguns elementos e imaginei que tinha uma boa história pra contar.
Gostaria que a história mostrasse uma realidade dentro da condição de ser humano, de ser vivo. Mas queria contar isso de uma forma lúdica, quase onírica. Colocar tudo metaforicamente dentro de um reino, com uma princesa, rei, rainha, aproximando os personagens e suas relações; a importância que essa relação de proximidade traz; a importância do outro com quem você se relaciona e o que ele lhe oferece; de um fazer parte da vida do outro, as coisas boas que vêm junto com tudo isso, e a gente querer que isso dure por muito tempo. Quando você quer. Quando se tem a sensação que te pertence, você não deseja perder. A morte quando chega, abre um abismo entre o que você tem, ou tinha, e o que você tem que passar a lidar e canalizar todo seu sentimento de uma outra forma. Uma das formas é manter vivo quem partiu na memória.

Acredito que talvez uma das razões do assunto morte ser tão
incompreendido é de nós termos a tendência em não falar sobre. Talvez, quando começarmos a pensar na morte como algo que faz parte da vida de forma mais clara, poderemos passar a valorizar muito mais o estar vivo, e pensar nos bons momentos, com a real importância que eles deveriam ter, ou se dar a eles.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: A morte como abandono, como perda, como dor. Mas também está no livro, a morte como algo que podemos ressignificar, elaborar, seguir com ela, transformar os sentimentos. É para falar sobre complexidades como estas que nós humanos inventamos a arte? E a literatura infantil abriga estes “nós” da vida de maneira diferente?

AR: É uma história sobre perdas, mas sobre reencontros também. Uma criança perde seu cachorro. Um amigo se muda do bairro. Os pais se separam. A morte, a partir do livro, pode ser discutida de diversas maneiras. A morte não é somente a do ser vivo que deixa de viver. A morte pode passar por algo que deixa de existir pra você da maneira que você conhecia anteriormente. E também não deve ser vista como algo ruim. É transformação.
Acho que a arte contribui, sim, para o homem procurar entender a si mesmo. Suas aflições, aspirações. Enxergar que o outro tem as mesmas aflições que ele, mas que pode perceber o entorno de forma completamente diferente, e nem por isso sua forma de pensar é menos importante. A arte talvez procure sintetizar a vida. Na literatura, infantil ou não, pode-se tudo. Não consigo falar como catedrático, mas pensar numa literatura para infância passa por dar repertório não só na formação de um leitor, como na formação da pessoa, que pode passar a enxergar o mundo de uma maneira mais sensível.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Qual é seu grande sonho guardado em uma nuvem? O que há em seu Esconderijo do Tempo?

AR: Meu grande sonho é poder ler nessa vida, tudo o que eu gostaria ler. Mas acho que vou precisar de mais umas duas vidas.

A Princesa e o Pescador de Nuvens, Editora Panda Books
textos e ilustrações de Alexandre Rampazo
2014

Folclore de Chuteiras

A Copa passou, o Brasil tem a derrota na história do campeonato, mas o futebol… ah, o futebol continua. Muitos livros sobre o tema foram lançados este ano e estou adorando falar deste aqui DEPOIS da Copa no Brasil. Chama-se Folclore de Chuteiras, Editora Peirópolis, escrito por Alexandre de Castro Gomes e ilustrado por Visca. O momento de minha leitura ficou mais que oportuno porque ler as páginas desta obra é recuperar o amor pelo esporte, pelas lembranças e pelo Brasil. Rs!
O cenário é o futebol, mas o enredo é surpreendente. Os times desta história são inusitados: de um lado, a Seleção Brasileira de Monstros de Futebol, coordenados pelo técnico José Lobato que tem estrelas como Mapinguari no gol, Mula Sem Cabeça na lateral direita, Cabra-Cabriola e Capelobo na zaga e Curupira na lateral esquerda; do outro lado, o Combinado Mundial de Craques Sobrenaturais (ou Time Resto do Mundo), sob a organização de Boris Shelley Stoker, e que vem Múmia (do Egito), Gárgula (França), Vampiro (Romênia), Pé Grande (Estados Unidos), Ogro (Inglaterra), entre outros. E a partida, como podem imaginar, não está fácil para ninguém!

FOLCLOREDENTRO

O livro é uma diversão do começo ao fim e preza pelos detalhes de quem ama futebol. Para começar, ele é todo contado por falas:  pelo narrador esportivo, pelos repórteres que estão em campo, pelos técnicos e jogadores que dão entrevistas antes, no intervalo e depois do jogo, assim como acontece nos campeonatos. Mas, costurando tudo isso, uma linha de informações culturais que alinhava os detalhes sobre cada ser imaginário, mantendo as características dos personagens brasileiros e estrangeiros em todos os lances.

 

Primeiro Tempo

– E foi dado início à partida. Hyde passa a bola para Pé Grande, que faz sinal de que vai lançar para Duende, mas muda de ideia e faz o passe para Vampiro. O Homem-Morcego corre pela ponta, procurando o Duende na entrada da grande área, mas é desarmado pela Mula Sem Cabeça, que o atropela e galopa pela beirada do campo, deixando os adversários para trás. A Mula atravessa a linha intermediária e toca a bola para Negrinho, que a atrasa para Lobisomem.

 

E não muito tempo depois acontece o primeiro gol do Brasil! E é do Saci! E a partida, claro, emocionante continua. Com todas as suas peculiaridades…

 

– Mas o que é isso? O Lobisomem parou no gramado e começou a uivar para a Lua! Diga aí, Manteiga, o que está acontecendo?

– Zé Lobato chamou o Papa-Figo e parece que vai pedir substituição. O Lobisomem só foi escalado porque o serviço de metereologia garantiu uma noite nublada, mas parece que a lua cheia achou uma brecha entre as nuvens e hipnotizou o coitado.

 

Quantos desafios para esta comissão técnica! Principalmente depois de tomar gol do adversário! O leitor vai à loucuuuuura!

 

De agora em diante, resta imaginar a partida ou correr para ter os livros em mãos. Posso adiantar que o final nos consola e nos anima ser brasileiros. Mas, mais do que isso: oferece argumento para libertar o imaginário, conhecer mais sobre nossa cultura e também sobre as fantasias criadas por tantos povos do mundo, repassadas há séculos e séculos. Fichas no final dão mais detalhes de cada personagem e, de quebra, uma apresentação inusitada dos autores. Um salto para querer saber mais.

FOLCLORECAPA

Folclore de Chuteiras (Editora Peirópolis)

textos de Alexandre de Castro Gomes

ilustrações Visca

2014

 

E se você gostou deste… pode ser que goste também deste: Gregos, Troianos, Brasileiros e Italianos Juntos.

 

EXCLUSIVO: A ÉPOCA DE OURO DOS INFANTIS DA TV CULTURA

BAMBALALAOClássicos… quais são os clássicos da TV da sua infância? Da minha a memória me leva para os americanos Muppets e o brasileiríssimo Bambalalão. Ele estreou em 1977 na TV Cultura, em módulos gravados, mas a partir de 1982 passou a ser transmitido ao vivo do Auditório da Cultura. Foi ao ar pela última vez em fevereiro de 1990. Eu amava tudo: os apresentadores Gigi Anheli e o palhaço Tic Tac, as maravilhas do músico, cientista e mágico (rs!) Professor Parapopó e, claro, os bonecos Maria Balinha e João Balão, o macaco Chiquinho e o sapo Agapito (que eram inspirados nas criações de Jim Henson, claro, o inventor de Muppets e Vila Sésamo). Muitos artistas passaram por lá, e muitos entraram depois, fazendo o programa ter diversas versões, inclusive, que fui acompanhando, mesmo “crescida”.

Para meu coração-memória, o Bambalalão foi uma espécie de berço para o que estava por vir na década de 90, considerada a década de ouro dos infantis da TV Cultura: Rá-Tim-Bum, Castelo Rá-Tim-Bum, Cocoricó e tanta coisa boa que seguiu, com alta qualidade, alta dose de humor e preocupação séria com educação. E foi sobre isso que a minha colaboradora Beatriz Fiorotto ouviu três mestres desta época falar, dia 14 de agosto, em um auditório da Faculdade Cásper Líbero. Fernando Gomes, diretor de programa, criador e manipulador de bonecos (o adorável Júlio, do Cocoricó!), Flávio de Sousa, ator, escritor e roteirista e Henrique Stroeter, ator de diversos programas foram conversar com estudantes de Rádio, TV e Internet sobre este riquíssimo período para a televisão brasileira. E, de quebra, emocionaram-se e emocionaram a jovem plateia. Uma plateia cheia de boas lembranças de infância graças a eles, tudo bem guardado no Esconderijo do Tempo de cada um.

A palestra foi mediada pelos queridos professores Marcelo Rosa e Soninha Castino. Ao centro, da esquerda pra direita, Fernando Gomes, Henrique Stroeter e Flávio de Souza. (Foto por Yuri Andreoli)
A palestra foi mediada pelos queridos professores Marcelo Rosa e Soninha Castino. Ao centro, da esquerda pra direita, Fernando Gomes, Henrique Stroeter e Flávio de Souza. (Foto por Yuri Andreoli)

Com vocês, o texto de Beatriz Fiorotto e, no final, um vídeo-surpresa especial para o Esconderijos do Tempo:

Entre os dias 11 e 15 de agosto de 2014, os estudantes de Rádio, TV e Internet da Faculdade Cásper Líbero organizaram a 8ª Semana do Audiovisual, com palestras (que tinham mais cara de bate-papo) com vários profissionais da área. E uma das mais aguardadas foi a intitulada “Anos 90: A época de ouro dos infantis da TV Cultura”, que trouxe Fernando Gomes¹, Flávio de Souza² e Henrique Stroeter³ ao Teatro Cásper Líbero. (vejam abaixo mais detalhes sobre a carreira de cada um deles!)

Perguntas sobre roteiros, dicas e inspirações não faltaram. Fernando respondeu sobre a necessidade de manipuladores realmente talentosos, que dêem realmente vida aos fantoches, além de terem uma boa história para contar. “Um boneco não precisa de vários atributos tecnológicos pra ser vivo e mágico, não precisa piscar os olhos, mexer a cabeça de um jeito diferente… É claro que se isso existir e for bem usado, é ótimo! Mas a vida mesmo se dá com talento. Me lembro de quando vi Chiquinho Brandão4 gravando um quadro de artes pro Bambalalão usando apenas uma meia como boneco. E ele com aquela meia, sem olhos, sem nada, fazia o estúdio inteiro cair na gargalhada!”, lembrou.

Flávio lembrou o grupo sobre os ricos momentos durante as gravações dos programas. “Quando gravávamos o Cata-Vento (1985-89), não tínhamos dinheiro pra quase nada. Era difícil! Teve um dia em que demoramos um tempão para conseguir três bananas na lanchonete do lado do estúdio, que precisávamos para fazer uma gravação!”, contou Flávio, que se lembrou de outra situação inusitada, quando gravavam O Mundo da Lua (1991-92). “Tínhamos um supervisor que não nos deixava gravar cenas com erros de português. Mas houve uma vez que o Lucas, jogando vídeo-game, tinha que falar: ‘Pula, Blixto, pula!’. A fala teve que ser mudada pra ‘Pule, Blixto, pule!’. Imagina, gente, qual criança fala ‘pule’? O que que é ‘pule’? É ‘pula’!”.

Henrique Stroeter e Flávio de Souza não puderam escapar de contar alguma história sobre os amados e inesquecíveis Tíbio e Perônio, do Castelo Rá-Tim-Bum (1994-97), que ambos interpretavam. “A gente, de vez em quando, não sabia quem era quem. Eu dava até um tchauzinho discreto pra câmera, pra me ver no monitor!”, disse Stroeter, rindo. “E aqueles chapéus eram de napa, bem grossos, e nos deixavam meio surdos. Certa vez, a gente tava fora do estúdio pra entrar correndo. Aí disseram “Ação!”. E nada da gente entrar. “Ação!”. E nada. Tiveram que ir nos buscar!”, contou Flávio, também rindo muito.

No entanto, foi uma das respostas traduziu todo o sentimento da noite. Perguntei a eles: “Qual o legado que essa ‘Era de Ouro da produção infantil’ deixa para os brasileiros?”. Henrique pegou o microfone, sorriu, e disse que são as lembranças. “Isso que tá todo mundo sentindo agora é muito legal!”. E contou para todos a seguinte história: estava ele num táxi, certa vez, e o taxista o reconheceu. “Você fez aquele Tíbio e Perônio, Perônio e Tíbio, né?”. Após a confirmação, o homem começou a chorar. E disse: “Quando minha filha era pequena e estava se alfabetizando, eu e minha esposa fomos chamados na escolinha dela. Ela era a única que não queria aprender a escrever o nome, se negava. Então perguntamos a ela o que queria escrever. E minha filha falou que a primeira coisa que queria aprender a escrever era ‘Castelo Rá-Tim-Bum’!”

“Eu me emocionei muito, ele se emocionou, ligou pra filha, ela também chorou… e agora, contando essa história, tô me emocionando de novo!”, falou Stroeter, para a plateia igualmente chorosa. Nenhum outro palestrante quis responder à pergunta. Flávio chegou a abanar as mãos e sorrir, dando a entender que “nada mais precisava ser dito”.

E, pra terminar, um presente! Gravei uma saudação mais do que especial de cada um dos convidados! Vem se emocionar junto, vem!

 

Ponto de Partida, Meninos de Araçuaí e o Presente de Vô

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A arte é forma para a gente se sentir vivo. Dá lágrima, arrepio, riso. Joga lembrança para o presente, guarda preciosidades no Esconderijo do Tempo. Assim cai como chuva esperada o mais recente trabalho da turma de mineiros do grupo de teatro Ponto de Partida e o coral Meninos de Araçuaí, a coleção de CDs Presente de Vô. São 4 CDs com quatro histórias entrelaçadas entre si e costuradas com uma trilha sonora de amarrar o coração da gente para sempre. Tudo para deixar a pergunta do que seria um mundo sem memórias. Dá para imaginar?

Como uma metalinguagem com a proposta de enredo, os 4 CDs costuram ritmos e raízes, como se nos mostrassem que somos todos uma mistura de raças, ideias e ideais, experiências e emoções. Há repertório de nossa MPB com canções de Chico Buarque, Tom Jobim e Gilberto Gil; há músicas recolhidas do Vale do Jequitinhonha, nas origens das famílias dos Meninos de Araçuaí; tem também uma rica demonstração de música folclórica em canções indígenas, africanas, portuguesas, e, claro, composições inéditas do próprio grupo. Todos se sentem representados, criando juntos.

Não há ordem certa para ouvir os CDs, dizem os artistas que os criaram. Mas eu arrisco indicar começar pelo A Oficina de Cambeva. O velho homem é um restaurador de memórias.

Ali, naquele lugar

Tudo está por consertar

Se a sua memória falhou

Ela irá se lembrar!

 

Do gosto da sobremesa

Do cheiro da nova estação

Do som do sino da igreja

Da meia roçando o dedão

Diz “A Oficina”, canção dos ponto-de-partida Pablo Bertola e Júlia Medeiros. Ouça aqui. Cambeva tem uma neta, a corajosa Deolinda que, ao lado do companheiro Tuzébio, mergulha no mundo de infinitas possibilidades do avô. Preocupadíssima com o que vai ganhar de presente em seu próximo aniversário, ela se envolve nas quatro histórias e vive altas aventuras. Neste, eles encontram um antigo realejo que não se lembra mais de como cantar. O que acontece quando Cambeva tem sucesso em seu trabalho? Ouvimos “Voltei a Cantar”, de Lamartine Babo, com arranjos do conceituadíssimo grupo musical de São Paulo, o Pau Brasil, que assina outros arranjos da coleção. Mas é neste CD que vemos também que Cambeva é um excelente contador de histórias. A criançada se junta para ouvi-lo até que um dia não tinha lugar para todo o mundo. “Afastem um pouco as paredes”, pede o avô.

O segundo CD que ouvi foi Temporina Já Foi Menina? que, para mim, é um dos mais emocionantes. Impossível não se identificar ou se apaixonar pela doce Temporina, uma senhora com uma casa com “dois séculos de quartos” e que guarda o jogo de chá no banheiro. “Se não me esqueço bem, foi um bule que se apaixonou por uma escova de dentes e trouxe toda a família para cá”, conta Temporina. Quando leva Deolinda e Tuzébio para visitar seu quarto de infância, uma tragédia se anuncia: o quarto estava vazio, as lembranças haviam sumido! É tarefa para o velho Cambeva que, com a ajuda dos caçadores de memórias Zalém e Calunga,  a mãozinha das Sonhambulantes, três velhinhas guardadoras de sonhos, ajuda Temporina a recuperar os tempos de criança. Ganhamos nós, assim, cantigas de roda, citações de brincadeiras, e belíssimas versões para “A Banda” (Chico Buarque) e “Bola de Meia, Bola de Gude” (Milton Nascimento e Fernando Brant). Caímos em uma espécie de viagem no tempo que joga a gente para a nossa infância, ao mesmo tempo em que nos lança para a incerteza da velhice, tudo regado a respeito e compaixão. E tem coisa melhor do que pensar essas coisas perto de uma criança? Senta que lá vem música!

Nos outros CDs Sonhambulantes e Zalém e Calunga, a história ganha outros braços e emoções. No primeiro, tudo que sai da boca das sonhadeiras Eterna, Perpétua e Constança dá vontade de decorar e sair repetindo. Uma dose de humor nos é oferecida, como um lembrete de que a vida precisa dele para ser vivida e sonhada. Em Zalém e Calunga, é hora de deixar pulsar a África de nossas histórias, os cantos populares e fica ainda mais evidente a pesquisa de Marlui Miranda, compositora, cantora e pesquisadora cultural, colaboradora do projeto.

Veja o que eles falam sobre o trabalho, nesta entrevista no site do patrocinador Natura.
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Um pouco disso estará em 80 minutos de espetáculo, de 8 a 10 de agosto, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Veja mais aqui.

Vejam um vídeo do show, de trecho delicioso do CD Temporina:

 

 

Conheci a união de Ponto de Partida e Meninos de Araçuaí em 2005, assim que entrei na revista Crescer (onde fiquei até 2013). A equipe já era fã de Roda Que Rola, o primeiro CD e, em 2006, fui para Belo Horizonte ver pela primeira vez a turma ao vivo, no Palácio das Artes, na estreia de Pra Nhá Terra, disponível em CD e DVD. Foi inesquecível, parecia uma bênção. Principalmente quando a gente lembra que eles se uniram para ficar alguns meses e estão completando mais de 15 anos de parceria. Tudo começou quando Tião Rocha, criador do CPCD (Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento) – ong que visa trabalhar a educação de maneira inovadora e sempre por meio das raízes culturais, e que atua em diversos lugares de Minas Gerais – ouviu de grupo de meninos de Araçuaí, no meião do Vale do Jequitinhonha, que queria agradecer ao patrocinador Natura o apoio ao projeto Ser Criança (projeto em que crianças passam horas de complemento de aprendizado em horário alternativo ao da escola). Eles queriam cantar uma música, mas Tião conta que em pouco tempo viu que eles não estavam preparados. Assim, acionou sua amiga, Regina Bertola, diretora do grupo de teatro musical Ponto de Partida, para ajudá-los. E nunca mais se separaram.
Em 2008, eu estive em Araçuaí para a ver de perto o Cinema que os Meninos haviam conseguido construir para a cidade. E de lá viajei com o Coral (sempre com crianças e adolescentes de 7 a 14 anos que vão saindo e chegando conforme crescem) até um show que eles fariam na também mineiro Ipatinga. Gravei um vídeo e colocamos no ar com a edição de meu marido, que na época também trabalhava na revista. Foi muito tocante tudo que vi e vivi com eles.

Além dos CDs e DVD já citados, a turma também tem um DVD com a participação de Milton Nascimento, o Ser Minas Tão Gerais, que os levou a Paris no Ano do Brasil na França. A estrada, amizade e história que entrelaçou esta turma para sempre dá frutos sem parar e há meninos que já fazem parte da Universidade Bituca no Complexo Ponto de Partida, área ocupada pelos artistas que estão revitalizando antigos casarões da de Barbacena, onde nasceu o grupo, e que acaba de ganhar um belo jardim projetado pelo Instituto Inhotim. Sim, eles não vieram ao mundo a passeio.

Nestes anos todos de encantamento por este grupo eu coleciono histórias inesquecíveis. Cresci com eles. Com este cantar “mineirês” deles, eles me dão um “brasilês”. É ouvir para bater junto com o coração, ninguém sai ileso. Dá um quê de nosso, a gente quer tomar de volta. As vozes das crianças amarram os laços, fazem a ponte de antes e depois. Perpetuam nossa poesia e nos convidam a levantar e dançar. São sopros de vida irrecusáveis.

Presente de Vô

Ponto de Partida e Meninos de Araçuaí

2013

à venda nos espetáculos, em algumas livrarias e até em sites como da Livraria Cultura

 

Nelson Cruz: 4 perguntas sobre Mestre Lisboa

Passo da Ceia, Aleijadinho
Passo da Ceia, Aleijadinho

 

Eu tinha 11 anos quando vi pela primeira vez, bem de perto, as imagens dos Passos da Paixão, esculpidas por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, na cidade de Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Eu fazia uma viagem pela região com meus tios Rosa e Walter. Jamais esqueci da emoção daqueles detalhes. Eu nunca tinha visto nada igual, claro. E até hoje. Nada é como aquilo. Estive novamente lá em 2008, com meu marido, e a emoção aconteceu também, embora algumas partes estivesse em reforma… Por isso, quando soube da nova edição de Mestre Lisboa, O Aleijadinho (Ed. Lê) uma biografia ilustrada lançada originalmente pelo ilustrador e escritor Nelson Cruz, quis ver de perto.

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Da capa a gente sente que se trata de uma homenagem. Uma homenagem a um mestre das artes no Brasil, com uma vida cheia de incertezas quanto a registros históricos. O que temos dele, claro, sem qualquer controvérsia, é justamente sua obra nas igrejas e na cidade de Congonhas, que também abriga os 12 Profetas, uma das mais completas séries da arte cristã ocidental. Neste livro, Nelson (que é mineiro de Belo Horizonte!) nos oferece história, com H maiúsculo, exibindo em textos e ilustrações, a cronologicamente a trajetória de superação deste artista considerado pelo curador do Museu do Louvre o último grande escultor sacro da história da arte mundial. Com ilustrações de páginas inteiras e intervenções em altos e pés de página, como fragmentos da história que está contando, contextualizando ao leitor, usando o desenho como pequenos instrumentos de emoção e memória.

O que temos mais a comemorar é que edições como estas podem criar parâmetros como forma de se divulgar nossa história. Quero dizer: ferramenta para que leitores de todas as idades mergulhem em universos de saberes com leveza. Leveza que mantém respeito à tradição e aos fatos. Mas nos dão de presente uma espécie de arte sobre a arte. Ou, no caso de Nelson, mineirice sobre a mineirice.

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Conversei com ele sobre esta edição e descobri que Mestre Lisboa é também uma revelação de Nelson para si mesmo e, claro, para seus leitores.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Eu gostaria, por favor, de entender qual a diferença entre esta edição e da DCL, e se houve alguma alteração, por exemplo.

NELSON CRUZ: Para essa edição foram retiradas as molduras das ilustrações de página inteira. Em princípio, eu queria retirar todas as ilustrações de página inteira e fazer a nova edição apenas com as vinhetas. Mas, conversando com a Lourdinha Mendes, editora, e a Lílian Teixeira, programadora gráfica da Ed. Lê, elas me convenceram que valia a pena conservar as ilustrações grandes desde que fossem retiradas as molduras e ampliando-as para a página inteira. Houve uma revisão do texto também, claro. A apresentação da Cristina Ávila, historiadora, que era na orelha foi transferida para o miolo. Faz parte do livro. Também as páginas de guarda, criadas pela Lílian, que não existiam na edição anterior, acrescentaram forte valor artístico, gráfico e visual ao livro.  Uma informação histórica que é contada na ilustração do Adro dos profetas e que fiz questão de reforçar  na página 3 da nova edição é o profeta Amós segurando um cajado.

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Durante as pesquisas encontrei no Museu da Imagem, de Congonhas, uma fotografia do final do século XIX ou início do século XX que registra a escultura do profeta segurando um cajado. Voltei ao Adro e vi na escultura, ao lado do pé direito do Profeta, um furo na pedra e percebe-se que a mão direita foi esculpida na posição de quem segura um cajado. Por ação do tempo ou vandalismo essa peça foi retirada da escultura.

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Essa informação deve aparecer em alguma edição sobre o Aleijadinho mas, nos livros e matérias que consultei, essa informação não aparece. Como ilustrador, fiz questão que a informação constasse na imagem.  Outra informação de que me orgulho nesse livro é a ilustração da página 12, onde está retratado o casarão onde funcionou a primeira escola profissionalizante em Minas criada pelos padres franciscanos. O pai de Antonio Francisco, Manuel Francisco Lisboa que era arquiteto e construtor, deu aulas nessa escola. E é nessa escola que certamente, Antonio Francisco estudou arquitetura, construção, aprendeu a ler e escrever. Atualmente, o casarão pertence a particulares. 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: O livro foi um desejo seu, ou um pedido?

NC: A partir de 1985, quando ainda investia na carreira de pintor, passei por um momento de transição na minha pintura. Não sabia bem por qual caminho seguir. Ser caricaturista na imprensa, investir na ilustração ou tentar um pouco mais o mercado de artes plásticas. Resolvi, então, pesquisar o trabalho do Aleijadinho, que era uma paixão distante, e compreender melhor o período barroco em Minas Gerais. Poderia vir daí alguma direção. Comprei uma mini máquina de escrever, livros sobre o barroco mineiro, fui nas cidades barrocas onde Antonio Francisco Lisboa trabalhou, fotografei bastante, consultei documentos em arquivos públicos, bibliotecas, desenhei muito. Era importante para mim assimilar sensorialmente as curvas, o desenho e as linhas do barroco. Mas, principalmente, me encantei com as possibilidades das histórias daquele período.  Guardei esse estudo e, desde então, me incomodou a não existência de uma biografia de Antonio Francisco Lisboa voltada para o público jovem. As biografias existentes sobre o período barroco ou o Aleijadinho contemplam, na maioria das vezes, o público adulto e é de leitura pouco estimulante para o público jovem e mesmo até o adulto. Na verdade, escrever essa biografia foi um pedido que eu mesmo me fiz. Levei um bom tempo para realizá-la devido à maturação que o projeto merecia.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Quanto tempo pesquisou e levou para montar esta biografia?

NC: Não tenho como precisar o tempo de pesquisa. Começo a pesquisa em 1985, ou seja,  três anos antes de iniciar o trabalho com o mercado editorial e o primeiro livro só foi publicado em 2008. Só me lembro que quando enviei a proposta para o Raul, da DCL, a biografia já estava escrita. A partir da aprovação da proposta, criar o projeto gráfico, editar o texto, criar as ilustrações e finalizar todo o projeto foram, aproximadamente, cinco meses de trabalho.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: O que mudou, depois desta pesquisa, na sua concepção de Aleijadinho como artista e o que mudou em você como artista?

NC: Curioso é que não houve uma alteração substancial na minha pintura, que considerasse o estilo barroco como um ponto de partida. Mas, curiosamente, passei a preparar estudos para as pinturas com formas geométricas distorcidas e nesses ambientes passei a desenhar e ainda desenho uma cabeça mascarada com asas como se fosse uma versão estilizada de um anjo barroco. Outro personagem que surgiu no meu desenho foi uma ave que chamo de pássaro-pássaro e uma figura humana meio cubista, sempre de chapéu. Toda composição que fiz a partir dos meados dos anos 1980 tem esses três personagens. Às vezes juntos, outras vezes isolados. Não consigo, ainda hoje, criar uma pintura sem esses personagens. Essas elaborações não aparecem no meu desenho de ilustração. Ficaram para as telas.

Agora, ter o conhecimento do que foi a trajetória desse grande artista brasileiro dividiu a minha vida sim. A história do período barroco mineiro passou a fazer parte dos meus pensamentos. Por isso, fiz Dirceu e Marília, Bárbara e Alvarenga e Chica e João. (Nota do Esconderijos: são livros da coleção Histórias para Contas História, da Cosac Naify)

Voltando ao livro, há percepções no traçado das esculturas que Antônio Francisco desenvolveu, sem ter contato com a arte que se fazia naquela época pelo mundo, que, a meu ver, vislumbrava lampejos do que aconteceria em breve nas artes, o modernismo. Em suas últimas esculturas no Adro do Santuário de Matozinhos, em Congonhas, as dobras dos tecidos dos profetas sugerem geometrias que se descolam da anatomia e das convenções artísticas da época e até dele mesmo.  Suas formas evoluem revelando que ele não era apenas um escultor de imagens sacras, era um artista em franca evolução. Seguia espontaneamente a linguagem das linhas e do desenho na escultura. Na cena do Passo da prisão, a escultura do Cristo aparece plena de linhas que seguem e dobram formando geometrias que não abandonam a proposta de se esculpir um Cristo clássico. Mas, que é moderno.

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Pena que a porfiria, a doença que o acometeu, limitou seus gestos em plena maturidade artística. Foi com muita empolgação que, Germain Bazin, curador do Museu do Louvre nos anos 50, que escreveu um dos mais importantes livros sobre o escultor, afirmou que Aleijadinho foi o último grande escultor de arte sacra da história da arte mundial.

 

 

Cantigamente

CANTIGAMENTECAPAPara iniciar este post eu preciso começar falando duas coisas. Primeiro, uma das imagens mais belas que a arte nos propõe a pensar: a rede que tece o nosso repertório. Adoro quando consigo identificar que um livro ou um autor; uma música ou uma banda; um filme ou um diretor/ator; me levou a conhecer outra coisa. Aconteceu assim com Cantigamente, de Leo Cunha e ilustrações de Marilda Castanha e Nelson Cruz. Os três artistas mineiros espalham em poesia delícias da infância (de se viver e de se lembrar). E aí segue meu segundo encanto com este mundo: conhecer um livro pela primeira vez. Originalmente lançado pela Ediouro em 1998, e relançado pela Nova Fronteira em 2012, eu não conhecia esta maravilha. Tomei noção de sua existência na entrevista com o ilustrador Renato Moriconi, que disse que a obra o despertou para a arte de fazer livros para crianças.

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Cantigamente é uma brincadeira com o tempo, o tempo nosso, o tempo da poesia, o tempo de ser criança, de ser adulto. Está dividido em duas partes: a primeira, Cantiga, tem a pintura de Marilda Castanha, com seu traço típico com formas surpreendentes de elementos conhecidos e os pequenos riscos, pontos, ou bolas que ora colorem, ora sombreiam, ora formam eles mesmos uma nova figura. Adoro a sensação de “acabei de fazer, olha” ao ver as ilustras de Marilda, graças ao tom e movimento natural que elas me provocam.

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Neste parte, os poemas usam elementos concretos para nos fazer voar a imaginação:

 

Poeta tem mão de fada.

Quando ele escreve, a caneta

voa que nem borboleta,

vira vareta encantada.

Não é mais caneta, não,

é varinha de condão.

 

ou

 

Lá vem a vizinha

caçando abrigo.

Já chega maluca,

atrás de açúcar,

caneca, cumbuca

e aquela peruca.

 

ou curtinhas como:

 

Sinal do Tempo

 

Em dias de chuva forte,

as bruxas voam de rodo.

 

Na segunda parte, Mente, os desenhos são de Nelson Cruz. Ele usa referências surrealistas com formas, cores, e belíssimas sombras de figuras que reconhecemos, claro, mas que também vemos modificadas, transformadas, amalucadas (pronto para mexer com o olhar da criança).

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É, de alguma forma, também o que garante o humor nos poemas, que, desta vez, oferecem uma mudança na temática e caminham para a filosofia: é agora o poeta Leo Cunha nos sugerindo pensar no “tempo que o tempo tem” e reflexões sobre a sociedade.

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Novidade

Vou te contar, enfim,

uma novidade ao contrário.

O tempo existe, sim.

A lenda

é o calendário.

 

ou

 

Velha burocracia

E agora como disse o

esqueleto burocrata:

são ócios do ofício,

isso não é da minha ossada.

 

São, no entanto, três-em-um. Três artistas com suas particularidades tecendo aqui uma mesma poesia. Uma mesma poesia que envolve o amor pela palavra e pelo desenho; o amor pela liberdade de imaginar e criar.

 

Cantigamente (Ed. Nova Fronteira)

textos de Leo Cunha

ilustrações de Marilda Castanha e Nelson Cruz

1998 e 2012

Dias depois, esta resenha teve uma doce repercussão nas redes sociais. Reproduzo aqui a fala de Nelson Cruz, contando sobre os bastidores do livro, pois é riquíssima para entendermos processo criativo e os caminhos do fazer-livro. 

“Quando eu e Marilda conversamos sobre como transformar os poemas do Leo em livro, consideramos que a ilustração era inspiradora para um livro de três autores e deveríamos harmonizar texto e ilustração. Assim foi feito. Os poemas dialogam com o leitor em plena liberdade sob fundo branco. Soltos. As ilustrações tem ideias próprias harmonizando com o texto e, por outro lado, se soltando dele propondo outras reflexões como na ilustração da página 19, de minha autoria, ou no poema “A árvore de natal” onde Marilda sai da cena criada pelo Leo, onde ele diz “a árvore de natal invadia a decoração moderna da minha sala” e ela cria uma praça de um lugar humilde onde um garoto molha um arbusto imaginando dentro do arbusto um pinheiro de natal. Que bom que um livro de três autores incentivou nosso grande Moriconi. Parabéns, Leo pelos nossos 16 anos.”