Discurso do Urso: sobre Cortázar e crianças

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Estava esses dias revirando anotações antigas e encontrei umas frases do escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo. Dizia mais ou menos assim: “Quando me perguntam sobre a utilidade da poesia, costumo dizer: ‘para que serve a saudade? para que serve a vida? para que serve ter um amigo? Será mesmo que cabe ter uma função para tudo?”.

Tenho um amigo muito querido, o Renato, que adora dizer: “eu não entendi, mas adorei”. Acho que falávamos de poesia ou sobre surrealismo. Ou simplesmente sobre arte. Mas o que é poesia? E lembrei de uma de Oswald de Andrade assim:

“Aprendi com meu filho de 10 anos

Que a poesia é a descoberta

Das coisas que Nunca vi”

Talvez, por isso, outro poeta nosso, Manoel de Barros, tenha constatado: “Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”.

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Cheguei a estas inquietações, provocada aqui pela minha estante ao rever Discurso do Urso, lançado em 2009 no Brasil pela editora Record, que é a edição de um conto do belga-argentino-francês Julio Cortázar, simplesmente um dos escritores mais originais de todos os tempos que em 26 de agosto passado completaria 100 anos. O conto poético e surrealista faz parte de uma de suas grandes obras, Histórias de Cronópios e de Famas, de 1962, mas foi escrito dez anos antes e dedicado aos filhos do pintor e poeta Eduardo Jonquières, amigo de Cortázar. Uno poesia, com liberdade e, agora, com surrealismo, como uma chance de nos ligarmos ao fantástico, ao sem sentido, possibilidade tão sem amarras das crianças. Seria o Discurso do Urso dar as crianças o que já é delas?

 

Provocado com as fortes ilustrações do espanhol Emilio Urberuaga, o livro nos apresenta um urso que vive nos canos de um prédio. Ele caminha de apartamento em apartamento e observa a vida, deslumbrado com o que vê.

 

Acho que gostam de mim porque meu pelo mantém a tubulação limpa, corro sem descanso pelos tubos e nada me deixa mais feliz do que passar de andar em andar roçando pelos canos.

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E vai nos mostrando, trecho a trecho, como interfere na vida de quem mora ali. A leitura nos causa aflição, espanto e um certo conforto. “Tem alguém olhando por nós”, penso. Este olhar do urso nos joga para dentro, nos faz pensar sobre a vida mecanizada, tão comum. Veja aqui:

Então deslizo por todos os canos do prédio, grunhindo contente, e os casais se agitam em suas camas e se queixam da tubulação. Alguns acendem a luz e escrevem um bilhete para se lembrar de protestar quando encontrarem o zelador.

O último período do texto é o mais lindo. Mas guardo para a alma de vocês lerem, no ritmo deste livro, sozinhos. Quero dizer que não, não será a mesma coisa de ter lido no livro de contos. Esta é a beleza sutil de uma boa edição de literatura infantil. Aquela lá, feita “para crianças”. Por que será esta classificação, hein?

Experimentem.

A cuidadosa tradução é do mineiro Leo Cunha, escritor, poeta e premiado autor para crianças.

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Discurso do Urso (Editora Record)

textos de Julio Cortázar

ilustrações de Emilio Urberuaga

tradução de Leo Cunha

2009

 

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