Alessandra Roscoe é escritora, cantora, musicista e uma grande ativista no campo da cultura e da infância, realizando projetos importantes como o Unidunilê. Ela conta que, em termos gerais, a infância conseguiu avanços importantes para as próximas políticas públicas. Mas no setorial específico de livro, leitura, literatura e bibliotecas, caríssimo para nós aqui e para ela, isso não se repetiu
Precisei decantar por uns dias tudo o que vivi e testemunhei durante a 4a Conferência Nacional de Cultura em Brasília, de 4 a 8 de março deste ano. Foi muito intenso e inspirador poder acompanhar de perto o processo de construção coletiva que vai estruturar a partir de agora – e para os próximos 10 anos – o Plano Nacional de Cultura (PNC). Eu que faço da palavra minha lavra, não consegui muitas vezes achar alguma que pudesse definir a emoção de participar desse momento de retomada da Cultura com C maiúsculo em nosso país, depois de tantos assombros.
Foram 5 dias de trabalho árduo de mais de 5 mil pessoas, entre organizadores e participantes (delegados representando os estados, convidados, observadores, imprensa), promovendo debates e discussões bastante produtivos e, claro, também muita celebração! Se em cada setorial e eixo o trabalho sério e democrático de definir e votar prioridades para o Plano Nacional de Cultura foi o que deu o tom, nos palcos da Conferência a riqueza das nossas várias expressões artísticas fez a festa! Andar pelo Centro de Convenções Ulysses Guimarães em Brasília, onde aconteceu o evento, foi como mergulhar nos muitos e diversos Brasis. Cocares, turbantes, saias rodadas, batas e alakás nos mostravam o tempo todo que somos uma confluência de variadas expressões. Representantes das culturas populares, do circo, do teatro, da música, do cinema, da literatura, da economia criativa, das manifestações indígenas, afro-brasileiras, periféricas, dos quilombos, dos terreiros de candomblé e umbanda, gente da floresta, das águas, dos sertões, das cidades ali de mãos dadas na luta e na festa, exercendo o seu lugar de definir os rumos da Cultura no país.
Encontrei histórias bonitas, como a da cacica Milena Kukama que viajou 7 dias de barco para estar em Brasília e defender suas prioridades como delegada pelo estado do Amazonas; marejei os olhos inúmeras vezes, como quando entre um debate e outro me vi diante dos Bois de Parintins; do pífano tocado pelo cordelista e artesão André Santanna, que veio com a delegação de Pernambuco; da fala potente do escritor Davi Kopenawa, numa das mesas ou me confessando em entrevista que diante de tudo o que está acontecendo com a retomada da Cultura, fica mais fácil segurar o céu acima de nossas cabeças; ou ainda da oportunidade de conhecer as histórias do dançarino Carlos Malaquias, do Rio de Janeiro, que já morou na rua e hoje é professor e luta pela inclusão da Cultura Popular como disciplina nas escolas públicas. Reencontrei também na Conferência amigos queridos e mestres que me moldaram no amor à arte, como o documentarista Vladimir Carvalho e minha primeira professora de música, a incansável Lydia Garcia. Lydia me apresentou orgulhosa outro ex-aluno, o Maestro João MacDowell, com carreira reconhecida no Brasil e no exterior e que veio defender aqui uma nova ópera, sem os traços eurocêntricos para contar histórias nossas e não apenas repetir o que já se faz há tanto tempo. Também fiz novos amigos e conheci expressões artísticas que eu nem sabia que existiam como os barquinhos de fogo, maior símbolo dos festejos juninos na cidade de Estância em Sergipe, e as Sambadeiras de Bimba, filhas de Biloca, que celebram o samba de roda feito por mulheres negras e as tradições dos griôs, do candomblé e da capoeira de Mestre Bimba.
DEMOCRACIA E DIREITO À CULTURA
Acompanhei debates calorosos, testemunhei vitórias e frustrações nesse processo tão rico de escuta democrática. Acordava praticamente já no local da Conferência, que teve como tema central “Democracia e Direito à Cultura”, e saia de lá tarde da noite todos os dias, cansada sim, mas renovada pela força do que pude vivenciar. O desafio de cobrir a Conferência como jornalista para dois veículos diferentes e acompanhar os debates no setorial do Livro, Leitura e Bibliotecas foi grande. Acabei deixando de estar em discussões importantes de outros eixos que, como artista, acompanho de perto, ou me interesso muito como Cultura e Infância, Teatro e Audiovisual, mas encerrei a semana com novas esperanças acesas e a certeza de ter participado de um momento histórico.
Ouvi relatos emocionados de quem acompanha as Conferências de Cultura desde que começaram, destacando que nunca houve tanta diversidade e pluralidade. Se antes era o mercado e seus poderosos que conduziam as discussões, agora as construções partem dos territórios, de seus representantes e dos fazedores de arte em todas as suas linguagens. Cada um dos seis eixos temáticos apresentou suas prioridades para o Plano Nacional de Cultura. Foram priorizadas, pelos delegados de todos os estados, 30 propostas que servirão de base para a elaboração do PNC. Participaram da CNC 1.338 delegados com direto à voz e a voto, 1.087 convidados também com direito à voz, 1.491 observadores e 151 jornalistas. Depois de mais de 10 anos desde a última Conferência, realizada em 2013, e do desmonte do setor pelo governo de Jair Bolsonaro, o setor volta com força para retomar as políticas culturais descontinuadas e construir novas bases.
Durante a abertura da Conferência, o presidente da República Luiz Ignácio Lula da Silva declarou que nunca mais o país verá o apagar das luzes da Cultura. “Nós queremos as luzes acesas, um povo sem cultura vira rebanho”. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, convocou a sociedade a exigir que a Cultura seja entendida como um direito de todos, pediu consciência política e a reação de todos contra as arbitrariedades, que ainda nos assustam, como a censura de livros. O episódio mais recente censurou em 3 estados: RS, PR, e GO o livro O Avesso da Pele (Cia das Letras), de Jeferson Tenório. (veja aqui mais sobre o assunto).
MARATONA CIDADÃ
Fiquei muito impressionada com a articulação de alguns delegados e categorias, como, por exemplo, a turma da Cultura e Infância, a dos bibliotecários, e daqueles que defendiam as pautas da região amazônica. Depois de discutirem e votarem as propostas em seus setoriais, realizaram verdadeiras maratonas correndo de um auditório a outro de uma ala à outra, para votar e garantir que suas demandas fossem priorizadas.
A Cultura e Infância conseguiu se colocar em praticamente todas as propostas do Eixo 1: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura. Uma das propostas é animadora e avança na escuta de quem realmente importa: as crianças. Foi aprovada como prioridade a criação do Conselho Nacional de Cultura e Infância, composto de forma tripartite por 1/3 de representantes dos Ministérios da Cultura e dos Direitos Humanos e Cidadania, 1/3 por representantes da Política Nacional Cultura Viva (PNCV) e 1/3 por agentes culturais da sociedade civil, complementado por uma sala técnica consultiva por igual número de representantes de 0 a 12 anos.
Mas se em termos gerais, a Infância conseguiu avanços importantes para as próximas políticas públicas, no setorial específico de livro, leitura, literatura e bibliotecas isso não se repetiu. Muito se falou em estruturação de bibliotecas escolares, públicas e comunitárias, de programas de fomento, da criação de espaços para todas as expressões e regionalidades em feiras literárias e eventos, mas uma reivindicação histórica daqueles que fazem e promovem a literatura para a infância, que é ter a relevância que merece em pé de igualdade com qualquer outro gênero literário e não apenas ser considerada nas escolas ou em espaços apartados nos grandes eventos, sequer foi debatida. (veja coluna de Bruno Molinero: Flip, até quando a literatura infantil vai ficar num puxadinho?)
O setorial de Livro, leitura, literatura e bibliotecas conseguiu vitórias significativas como a inclusão entre as prioridades da criação do Instituto Brasileiro do Livro e de um fundo específico para fomentar as ações e políticas do setor, mas tudo vai depender agora de novas reuniões e articulações dentro da construção do Plano Nacional de Cultura. A ideia é realizar seminários em todas as regiões do país, já com as 30 prioridades saídas desta Conferência Nacional, para estruturar a partir delas as metas da Cultura para os próximos 10 anos.
NOVOS TEMPOS
Para o Diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do MinC, Jeferson Assumção, o momento é de comemorar: “Antes a gente tinha o discurso, mas não tinha os recursos, agora com o Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) de fomento à Cultura, temos os recursos e a oportunidade de implementar várias ações e políticas.” Para Jeferson a aprovação do Sistema Nacional de Cultura e da lei que prevê a criação e a melhoria de Bibliotecas Escolares no país, durante a semana de realização da Conferência Nacional de Cultura, foi um sinal positivo dado pelo Congresso.
São 15 bilhões de reais da PNAB pelos próximos 5 anos. Dinheiro que não está só no orçamento. Segundo dados do Siga Brasil, portal de Transparência do Senado Federal, dos 3 bilhões autorizados e empenhados em 2023, 2,57 bilhões foram pagos, naquele ano; e dos 742 milhões inscritos em restos a pagar, 731 milhões foram pagos agora em 2024, uma execução muito boa em tempos de tantos contingenciamentos orçamentários.
Fabiano Piúba, secretário de Formação, Livro e Leitura do MinC explica que o Plano Nacional de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas está tanto no âmbito do Plano Nacional de Cultura quanto no de Educação, e que a escuta qualificada realizada na Conferência Nacional vai direcionar a construção das políticas públicas. “Teremos ações afirmativas e uma estratégia mais incisiva para aquisição de livros, realizações de prêmios, a retomada do Cultura Viva, queremos fortalecer os clubes de leitura, a formação de mediadores, a bibliodiversidade e temos caminhos estruturados para concretizar estes desafios” . (Veja aqui mais sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura com entrevista com o professor José Castilho, contando como está sendo traçado o PNLL 2024-2034, projeto em que ele será consultor, contribuindo com sua experiência em favor da democratização do livro em nosso país, no Papo CBL).
FRENTE PARLAMENTAR DE LIVRO, LEITURA E ESCRITA
O mês do livro quase começando e já temos algo para comemorar de véspera! Abril, em que são celebradas 3 datas especiais, Dia Internacional do Livro Infantil (2), Dia Nacional do Livro Infantil (18) e, Dia Mundial do Livro (23) acolherá este ano os primeiros dias após o lançamento da Frente Parlamentar de Livro, Leitura e Escrita, capitaneada pela deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS). A cerimônia aconteceu num dia de tensões, no Salão Nobre Câmara dos Deputados, em Brasília. Isso por conta dos desdobramentos do caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, dias depois da prisão dos primeiros suspeitos de serem os mandantes, 6 anos depois do crime. Senti como se estivéssemos ali, atendendo também à convocação da Ministra Margareth Menezes durante a Conferência da Cultura, para que a sociedade exija seus direitos e reaja aos desmandos. Para aumentar ainda mais a importância deste momento, o evento foi uma forma de homenagear o escritor Jeferson Tenório, que estava presente e recebeu uma moção de aplauso a ele, à sua escrita e ao seu livro O Avesso da Pele, como um recado claro: enquanto uns poucos perseguem e censuram, outros aplaudem e celebram!
Que venham abril e os novos tempos!