O DIA EM QUE EU TROQUEI MEU PAI POR DOIS

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Conheci o traço do célebre desenhista de quadrinhos e ilustrador inglês Dave McKean conduzida pelas letras do também inglês Neil Gaiman. Mas não foi com Sandman, principal sucesso de Gaiman. Também não foi por Coraline. Foi com o fabuloso Os Lobos Dentro das Paredes, lançado aqui pela Editora Rocco, em 2006. É delicioso abrir um livro infantil cheio de figuras sombrias, olhos esquisitos, colagens e proporções surpreendentes. Os Lobos ainda nos oferece um projeto gráfico que lembra o ritmo dos quadrinhos, o que faz tudo ser ainda mais especial para contar a história de uma menina que tem certeza de que lobos vivem nas paredes de sua casa. Assustadoramente nonsense.

 

Mas quero falar aqui sobre um que a Rocco acaba de lançar: O Dia Em Que Eu Troquei Meu Pai Por Dois Peixinhos Dourados. Isso mesmo. É este o nome, o mote e, mais: a inspiração veio de um, digamos, desabafo de um dos filhos de Gaiman, chamado Michael. “Ele estava com raiva de mim”, conta Gaiman no posfácio. Contrariado pelo pai ele disse que preferia ter um peixinho dourado.

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Nasceu a história. Na versão imaginativa de Gaiman, um menino está em casa na companhia da irmã menor e de seu pai, que lia o jornal e não prestava atenção em mais nada. Um belo dia conhece os dois novos peixinhos de seu amigo Nathan e sugere trocá-los por algo seu. Ele oferece um velho saco de golfe, uma flauta irlandesa, uma nave espacial antiga, cartões de beisebol, livros… Mas o amigo recusa tudo. Até que surgiu a grande ideia:

 

Troco os peixinhos dourados por meu pai! – eu disse.

Ai-ai – disse minha irmãzinha.

Não é uma troca justa. – disse Nathan. Eu tenho dois peixinhos dourados e você só tem um pai.

Ele é maior do que seu peixinhos dourados – argumentei. Ele é tão grande quanto 100 peixinhos dourados.

 

(…)

 

Você vai se ferrar quando a mamãe chegar – disse a irmãzinha.

 

Adivinhem o que a mãe disse quando ficou sabendo da troca?

 

– Pode ir tratando de levar esses peixinhos dourados para o Nathan agora, e não volte aqui sem o seu pai.

 

Mas é claro que ela ia dizer isso! E disparou até para a outra filha, também acusada de ser responsável, uma cúmplice. O fato é que, como vocês podem imaginar, não seria uma destroca fácil. Não que Nathan tenha amado a companhia do pai do amigo. Pelo contrário: o garoto o trocou por uma guitarra. E assim começava uma exaustiva caminhada de trocas e destrocas, mas o nosso herói precisou seguir até o fim.

Como em outras tramas, é adorável ao extremo este poder da dupla de tornar tétrico sentimentos comuns das crianças. Quem não quer de vez em quando trocar de família? Quem não quer atenção? Quem não pensa em soluções escabrosas só para diversão – ou desabafo mesmo?

Livros assim são libertadores. Poder pensar isso é tão legítimo quanto o amor que a criança tem o direito de nutrir pela família. Livros assim são propulsores para a criatividade, para o pensar diferente. Tanto pelo nonsense da história e saídas da trama, quanto pelas possibilidades de ilustração, em traços firmes, cores fortes em diversos tons, colagens escondidas, tudo desafiador e instigante. Como devem ser as boas leituras!

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O Dia Em Que Eu Troquei Meu Pai Por Dois Peixinhos Dourados (Ed. Rocco)

textos de Neil Gaiman

ilustrações de Dave McKean

2014

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