Cristiane Rogerio e A Casa Tombada no Conselho do PMLLLB-SP (confira o discurso de posse)

Cerimônia de posse aconteceu dia 25 de abril na Biblioteca Municipal Monteiro Lobato. O discurso foi feito por Cristiane Rogerio em nome de todo o Conselho (confira a lista no final). O evento, realizado no auditório da Biblioteca Monteiro Lobato, reuniu autoridades, representantes de bibliotecas, Centros de Educação Unificados (CEUs) e da sociedade civil.

 

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O Conselho atuará no Biênio 2024-2025.

 

MEU ENCONTRO COM MUITOS BRASIS NA 4a CONFERÊNCIA NACIONAL DE CULTURA, por Alessandra Roscoe

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Alessandra Roscoe é escritora, cantora, musicista e uma grande ativista no campo da cultura e da infância, realizando projetos importantes como o Unidunilê. Ela conta que, em termos gerais, a infância conseguiu avanços importantes para as próximas políticas públicas. Mas no setorial específico de livro, leitura, literatura e bibliotecas, caríssimo para nós aqui e para ela, isso não se repetiu

Precisei decantar por uns dias tudo o que vivi e testemunhei durante a 4a Conferência Nacional de Cultura em Brasília, de 4 a 8 de março deste ano. Foi muito intenso e inspirador poder acompanhar de perto o processo de construção coletiva que vai estruturar a partir de agora – e para os próximos 10 anos – o Plano Nacional de Cultura (PNC). Eu que faço da palavra minha lavra, não consegui muitas vezes achar alguma que pudesse definir a emoção de participar desse momento de retomada da Cultura com C maiúsculo em nosso país, depois de tantos assombros. 

Foram 5 dias de trabalho árduo de mais de 5 mil pessoas, entre organizadores e participantes (delegados representando os estados, convidados, observadores, imprensa), promovendo debates e discussões bastante produtivos e, claro, também muita celebração! Se em cada setorial e eixo o trabalho sério e democrático de definir e votar prioridades para o Plano Nacional de Cultura foi o que deu o tom, nos palcos da Conferência a riqueza das nossas várias expressões artísticas fez a festa!  Andar pelo Centro de Convenções Ulysses Guimarães em Brasília, onde aconteceu o evento, foi como mergulhar nos muitos e diversos Brasis. Cocares, turbantes, saias rodadas, batas e alakás nos mostravam o tempo todo que somos uma confluência de variadas expressões. Representantes das culturas populares, do circo, do teatro, da música, do cinema, da literatura, da economia criativa, das manifestações indígenas, afro-brasileiras, periféricas, dos quilombos, dos terreiros de candomblé e umbanda, gente da floresta, das águas, dos sertões, das cidades ali de mãos dadas na luta e na festa, exercendo o seu lugar de definir os rumos da Cultura no país. 

Alessandra Roscoe e Davi Kopenawa, um dos mais importantes líderes yanomami
Alessandra Roscoe e Davi Kopenawa, um dos mais importantes líderes yanomami

Encontrei histórias bonitas, como a da cacica Milena Kukama que viajou 7 dias de barco para estar em Brasília e defender suas prioridades como delegada pelo estado do Amazonas; marejei os olhos inúmeras vezes, como quando entre um debate e outro me vi diante dos Bois de Parintins; do pífano tocado pelo cordelista e artesão André Santanna, que veio com a delegação de Pernambuco; da fala potente do escritor Davi Kopenawa, numa das mesas ou me confessando em entrevista que diante de tudo o que está acontecendo com a retomada da Cultura, fica mais fácil segurar o céu acima de nossas cabeças; ou ainda da oportunidade de conhecer as histórias do dançarino Carlos Malaquias, do Rio de Janeiro, que já morou na rua e hoje é professor e luta pela inclusão da Cultura Popular como disciplina nas escolas públicas. Reencontrei também na Conferência amigos queridos e mestres que me moldaram no amor à arte, como o documentarista Vladimir Carvalho e minha primeira professora de música, a incansável Lydia Garcia. Lydia me apresentou orgulhosa outro ex-aluno, o Maestro João MacDowell, com carreira reconhecida no Brasil e no exterior e que veio defender aqui uma nova ópera, sem os traços eurocêntricos para contar histórias nossas e não apenas repetir o que já se faz há tanto tempo. Também fiz novos amigos e conheci expressões artísticas que eu nem sabia que existiam como os barquinhos de fogo, maior símbolo dos festejos juninos na cidade de Estância em Sergipe, e as Sambadeiras de Bimba, filhas de Biloca, que celebram o samba de roda feito por mulheres negras e as tradições  dos griôs, do candomblé e da capoeira de Mestre Bimba. 

DEMOCRACIA E DIREITO À CULTURA

foto do site plantaoamazonense.com
foto do site plantaoamazonense.com

Acompanhei debates calorosos, testemunhei vitórias e frustrações nesse processo tão rico de escuta democrática. Acordava praticamente já no local da Conferência, que teve como tema central “Democracia e Direito à Cultura”, e saia de lá tarde da noite todos os dias, cansada sim, mas renovada pela força do que pude vivenciar. O desafio de cobrir a Conferência como jornalista para dois veículos diferentes e acompanhar os debates no setorial do Livro, Leitura e Bibliotecas foi grande. Acabei deixando de estar em discussões importantes de outros eixos que, como artista, acompanho de perto, ou me interesso muito como Cultura e Infância, Teatro e Audiovisual, mas encerrei a semana com novas esperanças acesas e a certeza de ter participado de um momento histórico. 

Ouvi relatos emocionados de quem acompanha as Conferências de Cultura desde que começaram, destacando que nunca houve tanta diversidade e pluralidade. Se antes era o mercado e seus poderosos que conduziam as discussões, agora as construções partem dos territórios, de seus representantes e dos fazedores de arte em todas as suas linguagens. Cada um dos seis eixos temáticos apresentou suas prioridades para o Plano Nacional de Cultura. Foram priorizadas, pelos delegados de todos os estados, 30 propostas que servirão de base para a elaboração do PNC. Participaram da CNC 1.338 delegados com direto à voz e a voto, 1.087 convidados também com direito à voz, 1.491 observadores e 151 jornalistas. Depois de mais de 10 anos desde a última Conferência, realizada em 2013, e do desmonte do setor pelo governo de Jair Bolsonaro, o setor volta com força para retomar as políticas culturais descontinuadas e construir novas bases. 

Alessandra Roscoe e a ministra da Cultura, Margareth Menezes
Alessandra Roscoe e a ministra da Cultura, Margareth Menezes

Durante a abertura da Conferência, o presidente da República Luiz Ignácio Lula da Silva declarou que nunca mais o país verá o apagar das luzes da Cultura. “Nós queremos as luzes acesas, um povo sem cultura vira rebanho”. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, convocou a sociedade a exigir que a Cultura seja entendida como um direito de todos, pediu consciência política e a reação de todos contra as arbitrariedades, que ainda nos assustam, como a censura de livros. O episódio mais recente censurou em 3 estados: RS, PR, e GO o livro O Avesso da Pele (Cia das Letras), de Jeferson Tenório. (veja aqui mais sobre o assunto). 

MARATONA CIDADÃ

Fiquei muito impressionada com a articulação de alguns delegados e categorias, como, por exemplo, a  turma da Cultura e Infância, a dos bibliotecários, e daqueles que defendiam as pautas da região amazônica. Depois de discutirem e votarem as propostas em seus setoriais, realizaram verdadeiras maratonas correndo de um auditório a outro de uma ala à outra, para votar e garantir que suas demandas fossem priorizadas.  

A  Cultura e Infância conseguiu se colocar em praticamente todas as propostas do Eixo 1: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura. Uma das propostas é animadora e avança na escuta de quem realmente importa: as crianças. Foi aprovada como prioridade a criação do Conselho Nacional de Cultura e Infância, composto de forma tripartite por 1/3 de representantes dos Ministérios da Cultura e dos Direitos Humanos e Cidadania, 1/3 por representantes da Política Nacional Cultura Viva (PNCV) e 1/3 por agentes culturais da sociedade civil, complementado por uma sala técnica consultiva por igual número de representantes de 0 a 12 anos.

Mas se em termos gerais, a Infância conseguiu avanços importantes para as próximas políticas públicas, no setorial específico de livro, leitura, literatura e bibliotecas isso não se repetiu. Muito se falou em estruturação de bibliotecas escolares, públicas e comunitárias, de programas de fomento, da criação de espaços para todas as expressões e regionalidades em feiras literárias e eventos, mas uma reivindicação histórica daqueles que fazem e promovem a literatura para a infância, que é ter a relevância que merece em pé de igualdade com qualquer outro gênero literário e não apenas ser considerada nas escolas ou em espaços apartados nos grandes eventos, sequer foi debatida. (veja coluna de Bruno Molinero: Flip, até quando a literatura infantil vai ficar num puxadinho?)

O setorial de Livro, leitura, literatura e bibliotecas conseguiu vitórias significativas como a inclusão entre as prioridades da criação do Instituto Brasileiro do Livro e de um fundo específico para fomentar as ações e políticas do setor, mas tudo vai depender agora de novas reuniões e articulações dentro da construção do Plano Nacional de Cultura. A ideia é realizar seminários em todas as regiões do país, já com as 30 prioridades saídas desta Conferência Nacional, para estruturar a partir delas as metas da Cultura para os próximos 10 anos.

NOVOS TEMPOS 

Para o Diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do MinC, Jeferson Assumção, o momento é de comemorar: “Antes a gente tinha o discurso, mas não tinha os recursos, agora com o Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) de fomento à Cultura, temos os recursos e a oportunidade de implementar várias ações e políticas.” Para Jeferson a aprovação do Sistema Nacional de Cultura e da lei que prevê a criação e a melhoria de Bibliotecas Escolares no país, durante a semana de realização da Conferência Nacional de Cultura, foi um sinal positivo dado pelo Congresso. 

São 15 bilhões de reais da PNAB pelos próximos 5 anos. Dinheiro que não está só no orçamento. Segundo dados do Siga Brasil, portal de Transparência do Senado Federal, dos 3 bilhões autorizados e empenhados em 2023, 2,57 bilhões foram pagos, naquele ano; e dos 742 milhões inscritos em restos a pagar, 731 milhões foram pagos agora em 2024, uma execução muito boa em tempos de tantos contingenciamentos orçamentários.

Fabiano Piúba, secretário de Formação, Livro e Leitura do MinC explica que o Plano Nacional de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas está tanto no âmbito do Plano Nacional de Cultura quanto no de Educação, e que a escuta qualificada realizada na Conferência Nacional vai direcionar a construção das políticas públicas. “Teremos ações afirmativas e uma estratégia mais incisiva para aquisição de livros, realizações de prêmios, a retomada do Cultura Viva, queremos fortalecer os clubes de leitura, a formação de mediadores, a bibliodiversidade e temos caminhos estruturados para concretizar estes desafios” . (Veja aqui mais sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura com entrevista com o professor José Castilho, contando como está sendo traçado o PNLL 2024-2034, projeto em que ele será consultor, contribuindo com sua experiência em favor da democratização do livro em nosso país, no Papo CBL).

FRENTE PARLAMENTAR DE LIVRO, LEITURA E ESCRITA

Alessandra com o escritor Jeferson Tenório, autor de Avesso da Pele, durante lançamento da Frente Parlamentar do Livro, Leitura e Escrita
Alessandra com o escritor Jeferson Tenório, autor de Avesso da Pele, durante lançamento da Frente Parlamentar do Livro, Leitura e Escrita

O mês do livro quase começando e já temos algo para comemorar de véspera! Abril, em que são celebradas 3 datas especiais, Dia Internacional do Livro Infantil (2), Dia Nacional do Livro Infantil (18) e, Dia Mundial do Livro (23) acolherá este ano os primeiros dias após o lançamento da Frente Parlamentar de Livro, Leitura e Escrita, capitaneada pela deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS). A cerimônia aconteceu num dia de tensões, no Salão Nobre Câmara dos Deputados, em Brasília. Isso por conta dos desdobramentos do caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, dias depois da prisão dos primeiros suspeitos de serem os mandantes, 6 anos depois do crime. Senti como se estivéssemos ali, atendendo também à convocação da Ministra Margareth Menezes durante a Conferência da Cultura, para que a sociedade exija seus direitos e reaja aos desmandos. Para aumentar ainda mais a importância deste momento, o evento foi uma forma de homenagear o escritor Jeferson Tenório, que estava presente e recebeu uma moção de aplauso a ele, à sua escrita e ao seu livro O Avesso da Pele, como um recado claro: enquanto uns poucos perseguem e censuram, outros aplaudem e celebram!

Que venham abril e os novos tempos!

INCENTIVAR A LER LITERATURA? VOCÊ PRECISA CONHECER AIDAN CHAMBERS!

 

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Editora Cortez traduz para o Brasil, obra famosíssima do pesquisador e premiado autor britânico Aidan Chambers: Diga-me – As Crianças, a Leitura e a Conversa

 

por Cristiane Rogerio

Em setembro passado eu fiz uma desafiante e fabulosa viagem para a Amazônia brasileira. Mais precisamente ao município de Atalaia do Norte, no Amazonas. Fazia parte de um dos projetos do Instituto Omunga, sediado em Santa Catarina, de formação de educadores e incentivo à leitura em cidades sem bibliotecas públicas. Viajei com eles com a missão de realizar oficinas de sensibilização às possíveis relações que podemos ter com a leitura, e como isso pode ser uma forma bonita de fortalecer o vínculo entre aluno/a e professor/a. Se chamava assim: Sobre Beleza e Vínculo: como as histórias, os livros e as leituras podem ser um elo afetivo para o aprender”. A viagem foi do dia 23 de setembro a 3 de outubro e logo no começo do mês eu já tinha tudo planejado com a equipe. A oficina seria, digamos, “a minha parte”, mas toda a viagem é de todo mundo: do planejamento geral à execução dos detalhes, estamos como equipe todos juntos. 

Eu já tinha ido uma vez à Amazônia, só que para o estado do Amapá, no projeto Bebês do Brasil, do qual fiz parte e a equipe e eu lançamos até um livro com a revista Crescer. Mas desta vez, era levar o que eu já tinha estudado na vida sobre livros, mediação de leitura e infância para um local que eu não fazia ideia de como seria. Com pessoas que tinham uma expectativa de conversa. E com as quais eu desejava conversar muito. Mesmo com o cuidado de a equipe do Omunga me passar todo o tipo de informação, o frio na barriga era gigante. E a ansiedade também.

Havia já alguns livros definidos para levar para lá, detalhes que eu contarei em outro texto. Mas dias antes de embarcar, chegou a mim o primeiro exemplar Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, agora editado pela Companhia das Letrinhas. Esta era a novidade do momento: Sendak, completamente fora de catálogo desde 2015 após a extinção da editora Cosac Naify, voltaria agora às estantes brasileiras, juto a Lá Fora Logo Ali e Na Cozinha Noturna. À época eu também cuidava de outro projeto: um ciclo de estudos focado na vida e obra de Maurice Sendak, o autor estadunidense falecido e 2012. Aconteceria logo em seguida ao meu retorno para São Paulo, tudo ao lado da minha amiga pesquisadora Clara Gavilan, e uma parceria A Casa Tombada e Companhia das Letrinhas (veja que reportagem linda fizeram aqui).! Com ele em mãos, pensei: tenho que levar esse livro para Atalaia. Mas será que faz sentido ou esse alvoroço todo é só aqui da nossa bolha Rio-São Paulo? Talvez possa me ajudar a pensar sobre o curso, sentir o que este livro tem a nos dizer neste momento. 

Separei para levar. 

Na mesma semana, outro livro chega por aqui: Diga-me – As Crianças, a Leitura e a Conversa, do pesquisador e premiado autor britânico Aidan Chambers, editado no Brasil pela Editora Cortez. Um livro que eu ainda não havia lido mas sabia da sua ótima fama. Tenho uma memória muito boa deste autor de palestra a que assisti em São Paulo, em um dos seminários o “Conversas ao Pé da Página”, parceria entre o Sesc e o Instituto Emília, em 2014. E, por isso, comecei a ler imediatamente, junto aos corres da vida. Aonde eu ia, ele ia comigo. 

Logo de cara, já fui grifando: era o texto de Juliana Chieregato Pedro, do grupo Lecturi (UFU-MG), envolvido no projeto. 

DIGA-PREFACIO

“Encontrarmos fragmentos de nós mesmos”, ela diz. E  na introdução diz: “Nossa era é a da conversa. Nunca se falou tato”. Que é que não anda angustiado com isso? E ele traz a grande contradição da educação no momento: estimulamos que crianças e jovens se expressem, mas não sabemos ouvi-los. “Nos dias atuais, todos somos julgados pelo quanto somos articulados – Não que falemos melhor ou ouçamos com mais cuidado do que pessoas e tempos menos voláteis”, continua Chambers. 

E então ele começa a falar sobre o que seria o livro que temos em mãos: “‘Diga-me’ foi feito para ajudar crianças a falar bem (o que quero dizer com ‘bem’ ficará mais aparente, assim espero, ao longo do caminho), e falar bem não apenas sobre livros, as sobre qualquer texto, desde signos de uma só palavra até a escrita que chamamos de literatura, gênero textual o qual me concentrarei.” (…) “Ao ajudar crianças a falar sobre suas leituras. nós as ajudamos a se articularem sobre todos os assuntos de suas vida.”

Será?

Será que isso acontece somente com as crianças?

E aí chega a parte em que eu sou facilmente conquistada: “Pela minha experiência, posso afirmar que a melhor forma é começar por nós mesmos, como leitores e falantes. Estive uma vez e um pequeno grupo de professores que objetivava melhorar nosso ensino de crianças como leitoras, quando descobrimos o quão importante é a conversa nesse processo. Disso, desenvolveu-se o que se tornou conhecido como o enfoque ‘Diga-me’. Por favor, note: um enfoque – não um método, não um sistema, não um programa esquemático. Não se trata de um rígido conjunto de regras, mas, simplesmente, de um modo de perguntar questões particulares que cada um de nós pode adaptar para melhor combinar com nossa personalidade e as necessidades de nossos estudantes.”

É isso. 

Se ele propõe a conversa, ele, então, conversa com o leitor deste livro. E conversamos com ele o livro todo. Pois ele considera o estudante e aquele ou aquela que educa ou faz a mediação do livro como autônomos! E isso muda tudo. 

Que companheiro bom!

Meu livro está todo marcado:

 

DIGACAPA

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Fui grifando vários “simplesmentes” de Chambers. Principalmente os que traziam à mente imagens belíssimas, como rodas de crianças de várias idades lendo livros juntas, ou de educadores questionando certezas sobre processos de incentivo e aquisição de leitura literária.

“A motivação privada aqui é o desejo de se engajar a conversa literária pela própria atividade, pois aprendemos não apenas que ‘falar juntos’ produz uma interpretação dos segmentos de compreensão, que podemos oferecer individualmente, mas também que a conversa em si, muitas vezes, gera novos entendimentos, alargamentos de apreciações, que ninguém, até então, poderia ter articulado sozinho. A sensação é de decolagem, de voo para o, até então, desconhecido: a experiência da revelação”.

 

Experiências coletivas! O coletivo como potência – bem como amei escrever na minha dissertação de mestrado O Livro Para a Infância: coletivos e potência para a pesquisa (IA-UNESP)

Eu pensava que este estudo, este livro e Chambers me ajudariam a contextualizar o que eu estava prestes a fazer o encontro com os educadores de Atalaia, provocar-me mais nas conversas com eles. Até que fui me dando conta de que Maurice Sendak estava ali citado diversas vezes. E especialmente o depoimento de uma professora me tocou muito. Eileen Langley dava aulas em uma classe de educação infantil de crianças de 5 anos. Até aquele ponto, quando ela decidiu fazer sua primeira experiência depois de acessar o Diga-me. Nunca se esperou que as crianças falassem sobre sua leitura, a não ser informalmente. E esta educadora narra ali para onde as crianças “voaram” lendo juntos e sendo questionadas sobre o que leram. A gente sabe que há muita resistência nisso. E arrisco dizer – sem dar tempo aqui de me aprofundar a questão – que o julgamento sem cuidado ou com falta de contexto do ensino da literatura nas escolas esteja por trás disto. Onde vivem os monstros era o livro da vez. 

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Esta dupla de páginas é das minhas preferidas. Há maravilhas de frases de crianças sobre esta história que Sendak publicou em 1963 sobre um menino que mergulha e um único encontro com “coisas selvagens (como diz o título original)” após brigar com a mãe e ser mandado pra cama de castigo sem jantar. 

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No depoimento dela, são três etapas, podemos dizer:

DIANTE DA CAPA, as crianças dizem: 

“Um livro de monstro” 

“Olha como monstro é grande”

“Ele é grande demais para ir aquele barco”

“Esse monstro tem pés iguais aos nossos”

“É uma história sobre um barco?”

NA LEITURA, comentam:

“Quando mostrei a eles a página interna do título, Philip apontou que havia uma mamãe monstro e um papai monstro”

“Outra criança me informou que o monstro mamãe era o que não tinha chifres. O fato de as crianças não terem medo confirma a percepção de Sendak sobre as mentes delas”

“As páginas onde havia festa eram as favoritas. Lisa falou que os monstros estavam em uma discoteca”. 

APÓS A LEITURA, refletem:

“Algumas crianças decidiram que o que as intrigara foi Max velejar um barco tão pequeno através do oceano. Outras não conseguiram entender por que ele não ficou e continuou sendo o rei dos monstros. Alan ficou intrigado pelos monstros por causa de seus cabelos estranhos. James interrompeu: “Eles podem não ser de verdade”. Eu perguntei se ele achava que era de verdade. “Não” ele respondeu com firmeza. 

PROFESSORA: Você acha que o Max é verdadeiro?

JAMES: Sim, mas os monstros não são. 

PROFESSORA: Como pode ser?

JAMES: Max inventou os monstros.”

Certeza de que situações de alguma forma parecidas com estas acontecem em centenas de salas de aula. A diferença aqui é associar isso a um planejamento pedagógico e, ao mesmo tempo, à conversa. É preciso que a gente se lembre de que a literatura e a conversa podem caminhar lado a lado. Em qualquer lugar – até nos processos acadêmicos – com pessoas de qualquer idade.

Fui ao meu caderno e, logo abaixo do nome dele, escrevi: “Fofo! Divertido! Ah, esse humor inglês!”. Leio mais aqui nas anotações, que ele contou que começou a ler somente aos 9 anos de idade, e que, da fábula de Esopo da Tartaruga e a Lebre, ele é a tartaruga. É das histórias com a qual mais se identifica. Fala comovidamente sobre a voz da professora lendo ressoando em seus ouvidos e quando ele descobre o que é uma biblioteca. 

foto retirada do site emilia.org.br
foto retirada do site emilia.org.br

E mais estas notas:

 

A literatura = reconhecimento, identificação

Até achar uma obra que exerça tamanha influência sobre nós não descobrimos a leitura. 

Educação é isso. Se não damos valor ao livro, jamais poderemos ensinar. 

 

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Lembrei desta foto feita pela minha companheira de viagem, Marina Pedrosa Poladian. 

Os livros só abrem-nos.



Diga-Me – As Crianças, a Leitura e a Conversa 

Aidan Chambers, 2023

Editora Cortez

Um entardecer em si com Odilon Moraes

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Obra nova do artista sai pela Maralto Edições com tempo longo de maturação do autor e uma reflexão sobre o amadurecimento de um personagem e de nossos pensamentos sobre o que é um “livro ilustrado”

 

por Cristiane Rogerio

Suspiro. Como será que eu começo o texto sobre este livro, me pergunto. O Odilon fez um livro sobre um velho chinês. A inspiração é… ele mesmo. Quando passou dos 40 começou a se imaginar mais para frente, olhando para trás. Haveria perdas? Saudades? Estaria satisfeito com o que?

Agora sou eu pensando o Odilon pensando para um livro. E me vem à memória uma visita que fiz a ele uma vez. Era uma manhã fria e cedo: embico meu carro na entrada da casa dele e ele vem abrir o portão, dois cachorros o seguem, ele de casaco e cachecol, e eu estou mais uma vez rumo a seu ateliê. A figura de um sábio – aquela dos imaginários – que faz o convite para a visita, que está sempre pronto para escutar e que ama – ama, ama, ama – contar histórias. Hoje essa memória misturada ao novo livro que Odilon Moraes acaba de lançar me remete a outro livro que amo, uma outra figura-Odilon: “O Velho Louco Por Desenho” (Companhia das Letrinhas), de François Place, sobre um senhor excêntrico e fascinante chamado Hokusai, que vem com gosto de ficção, mas é história da arte, fazendo uma biorreferência (existe esta palavra?) ao criador do mangá. 

Odilon é um dos meus professores sobre o tempo. É o meu amigo com o qual eu falo mais vezes sobre o fato do livro criar tempos, páginas a páginas viradas. É também uma das pessoas que mais vibro com “descobertas” que dão um tom a mais às nossas linhas do tempo dos livros ilustrados. Estes aqui foram lançados antes ou depois daquele? O que mesmo acontecia aquela época? Tal linguagem tinha nome? Isso tudo no mesmo século dezenove, jura? Naquela época já tinham experimentado este formato? 

É também quem me acompanha no meu tempo de pesquisadora, de leitora, de colecionadora de livros e de histórias sobre os livros, autorias, parcerias. E é também quem eu gosto demais de acompanhar – e tentar compreender um tempo que é só dele: seja o de responder as mensagens de whatsapp, seja de lançar “este e não aquele outro livro” que estávamos esperando. Um artista no seu tempo. 

Em setembro de 2020, conversávamos sobre o cronograma de aula da turma 7 da pós O Livro Para a Infância (A Casa Tombada), da qual Odilon faz parte deste a turma 1 mas que esta tinha o “quê” de novidade: a primeira 100% online. Ele estava ansioso pois achava que o módulo começaria no dia seguinte, mas tínhamos ainda algumas semanas para o início. Engano resolvido, ele escreve:

“Deixa eu te mostrar um pouquinho do que estou fazendo.” E me envia um desenho. Um não, três. Uma composição diferente e na minha ignorância soltei:

“Japonês? O que é?”

“Esse se chama O Entardecer de Lin Cheng. Criei um personagem chinês que conta sua própria história. Estava na gaveta porque era um livro ilustrado com uma perspectiva muito adulta. Não achava que alguém pudesse publicar. Então a Cris (Matheus) da Positivo me liga do nada (chamado de Deus, rs) e pergunta se eu teria um livro ilustrado para adulto. Respondi de pronto: Sim! O Lin Cheng. E assim pude tirá-lo da gaveta e vestir uma voz oriental. Eu acho ele divertido. Mas a Carolina (Moreyra, companheira de Odilon de vida e de escritas) achou triste.”

“Chinês, claro. Ai a Cris! E ela vai cuidar muito!! Odilon que passo estupendo!”

“Já pensou se pega o livro ilustrado para adulto também?”

“Uau, isso me deixou mais curiosa.”

“Sempre acreditei nisso. Parece que a Cris também.”

“Nossa, a gente vai poder falar disso (“finalmente”, era o que eu pensava junto).”

“Tô à disposição e acho uma ótima discussão. Na própria EJA (Educação de Jovens e Adultos) podia ser revolucionário. Não com esse governo, né? Mas supondo que o pensamento sobre isso evolua. Não ia ser legal? O próprio Lin Cheng é a história sobre a mudança de olhar o mundo de alguém que envelhece. É esse personagem Lin Cheng o tempo todo – e por isso que o livro é de um lado pro outro, depois te mostro, como ele via quando jovem, como ele via quando velho, e eles estão meio se encontrando até que no final… (ops, esta parte não vou contar, pessoal do Esconderijos!). É um livro de quem já vê a vida a partir da velhice, ou pelo menos tem essa experiência possível. Uma criança não vai entender. É um tema profundo com poucas palavras, para alguém que está envelhecendo.”

“Mas as crianças podem se sensibilizar. Lindíssimo.” 

E eu ainda não havia pegado o livro nas mãos.

No final de 2023, a Maralto Edições anunciou o lançamento “do livro do chinês do Odilon”. Editora Maralto? Sim, a Maralto é um selo editorial da Companhia Brasileira de Educação e Sistemas de Ensino, da qual compõe a editora Positivo. Quem cuida dele é a mesma Cristiane Matheus que, na coordenação editorial dos projetos que já “nasce” com 150 títulos no catálogo em 2022 – e continua. É curioso que, à época da minha conversa com Odilon ele tenha falado da EJA, pois as escolas são o grande foco da nova editora. Mas, por outro lado, sempre livros que cheguem às livrarias e às vendas diversas, valorizando uma ideia de que o “tornar-se” leitor seja um trabalho de muitos. “Se a produção de livros for tratada apenas como negócio, perde sua essência; mas, se for tratada só como missão, vocação, aumenta muito o risco de não se sustentar ao longo do tempo. É esse equilíbrio que estamos buscando desde o início”, disse Cristiane ao site Publishnews, em fevereiro de 2022. 

O livro, no entanto, chegou a mim pelo próprio Odilon, durante a Oficina de Criação de Livro Ilustrado que ele e Carolina Moreyra promovem desde 2018 n’ A Casa Tombada, onde trabalhamos todos juntos. Ele quis mostrar a novidade aos alunos e a mim, com a alegria de um livro que acaba de sair, mas também com uma história boa para contar. É assim que muitos autores dão suas aulas: falando dos processos, elaboram sobre eles com quem ouve. Começa a contar para nós, então, que teve a ideia deste livro muitos anos atrás, depois dos 40… enfim, esta história vocês já sabem. 

Abriu o livro e começou a mediar a leitura para gente. 

Aula da Oficina de Criação de Livro Ilustrado com Carolina Moreyra e Odilon Moraes, parceria A Casa Tombada e Casa das Caldeiras, janeiro 2024
Anna Lúcia Maestri, Susana Garcia e Maria Helena Alvim (mais escondidinho) em aula da Oficina de Criação de Livro Ilustrado com Carolina Moreyra e Odilon Moraes, parceria A Casa Tombada e Casa das Caldeiras, janeiro 2024

 

Rosane Ferreira, Claudia Codgnato (mais escondidinho), Sofia Fajersztjan, Leonor Decourt e Selma Boaventura (mais escondidinho) em aula da Oficina de Criação de Livro Ilustrado com Carolina Moreyra e Odilon Moraes, parceria A Casa Tombada e Casa das Caldeiras, janeiro 2024
Rosane Ferreira, Claudia Codgnato (mais escondidinho), Sofia Fajersztjan, Leonor Decourt e Selma Boaventura (mais escondidinho) em aula da Oficina de Criação de Livro Ilustrado com Carolina Moreyra e Odilon Moraes, parceria A Casa Tombada e Casa das Caldeiras, janeiro 2024

O livro abre com uma epígrafe: “Lagartas e borboletas conversam ao entardecer.”, assinada por Lin Cheng. Mas ele existe? Existiu? É uma biografia? “Pois é” – nos diz Odilon já conhecendo nós leitoras e leitores antes mesmo de falar algo, reafirmando que, sim, é o chinês dele inventado falando. No objeto retangular que vemos na vertical, lemos:

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em seguida, lemos:

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Opa, “se é livro ilustrado”, pensamos juntos, significa que aquilo que vemos – uma página de texto à esquerda, uma página com ilustração à direita, uma dupla só de ilustrações em seguida – é um ritmo. Qual é a dança que Odilon nos propõe? 

É Odilon quem sempre usa este termo, “dança”, para falar do conceito do livro ilustrado. Deste gênero em que palavra, imagem e design narram a história de forma tão intrincada que é como se “dançassem” para o leitor ou a leitora, que tem ali a oportunidade de assistir a aquele espetáculo. É a terceira dupla, no entanto, que dá ao O Entardecer de Lin Cheng o terceiro passo do compasso. 1, 2, 3; 1, 2, 3.

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É assim que vamos ritmando a leitura enquanto tentamos entender um senhor de idade que observa todas as manhãs que algo que era vigoroso nele está se perdendo com o tempo. As imagens, no entanto, nos adiantam uma espécie de dica do que virá depois. E o texto, ou a página-texto, também tem um ritmo, como um poema, um conto, um momento. Um tempo. Quando o leitor aprende a cadência já está totalmente envolvido, absorto naquela reflexão sobre o envelhecer. 

Seria certo, eu, com o objetivo de resenhar este livro, falar tanto assim do autor? Importa o autor?, perguntamos tanto no estudo das literaturas. Importa o que pensa, o que é, o que sente? Mas o autor não fala de algum lugar, de como se entende no mundo, de um tempo específico? Para Anna Lucia Maestri, poeta, educadora e uma das alunas da oficina de janeiro, ficou muito impactada por este “por trás da história”. “A inspiração que o levou a criar o livro, ao se deparar com a própria passagem de idade, as escolhas autoficcionais em criar um personagem marcante dentro desse simbolismo da sabedoria oriental que ao menos pra mim, é o que mais se aproxima da ideia de serenidade, e a dualidade que existe não só no conflito jovem/velho mas que se reflete em tudo o que vivemos… nessa experiência sensível através dos próprios sentidos, o que vem e o que fica, o que era e o que ainda vai ser, o que surge e o que desaparece, o que se entristece e o que sorri, criando essa conversa caleidoscópica com o tempo, nossas próprias metamorfoses como indica a epígrafe.” Outra aluna da turma, a escritora Maria Helena Alvim, comentou: “Eu acrescentaria só o fato de ser um livro que ficou na gaveta esperando a hora certa dele acontecer.”

O tempo.

Odilon se imaginou velho e trouxe uma figura completamente diferente dele, “vestiu uma voz oriental”, como disse para mim, mais de três anos atrás. Susana Garcia, ilustradora e uma das alunas da oficina, me disse depois que: “as pausas, o respiro que a imagem traz faz refletirmos sobre a vida”. 

O tempo. Suspiro. 

 


O Entardecer de Lin Cheng, de Odilon Moraes
Maralto Edições, 2023

 

Cata vento, cata histórias

 



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Este post é um retorno! Havia um tempão eu não conseguia vir aqui escrever. Para esta espécie de recomeço, um livro importantíssimo deste 2023 e um texto aqui resenhado em conjunto com Ananda Luz, grande pesquisadora das áreas do livro, infâncias, e as questões étnico-raciais envolvidas – e minha grande parceira na coordenação da pós O Livro Para a Infância n’ A Casa Tombada! 

 

2023 termina com esta beleza chegando às nossas mãos: O Catavento, primeira parceria de Heloisa Pires Lima e Josias Marinho, vem nos encantar em todas as infâncias possíveis

por Ananda Luz e Cristiane Rogerio

“Quando passei pelas Ilhas do Caribe (e são várias) aprendi sobre alguns antigos habitantes de lá, vindo de um lugar chamado África. Tinham eles a argúcia de ficarem invisíveis para uma gente cruel que tentava escravizá-los. Mais hábeis, os invisíveis também criaram línguas só decifráveis entre eles. Uma delas, o sopro numa extraordinária concha do mar dali. O som levava longe anúncios, notícias e combinados camuflando a comunicação para os de fora. Então os cimarrons, como eram chamados, sobreviveram por muito tempo deixando descendentes, até os dias de hoje. No Brasil, os quilombolas possuem vivências parecidas com as deles, ou com as dos cumbes, dos palenques, comunidades vindas de muitas Áfricas, cujo tempo tratou de espalhar pelas Américas.”

Será que ventou algo neste início de leitura por aí? Este texto é da Heloisa Pires Lima, escritora do livro O Catavento, última novidade da Editora Passarinho de 2023! Ele vem como uma brisa destinado a ser lido pelos mediadores de leitura, aqueles que podem soprar esta história para outras leitoras e leitores. É a primeira parceria dela, que publica histórias na nossa literatura para infância há 25 anos, com o autor de imagens Josias Marinho. 

 

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Todo mundo catando ventooo… Cataventos… tudo porque a menina bela lá do quilombo quis catar o vento que antes catava tudo… tudinho que pela frente encontrava. Até chegar no quilombo, ou seria cumbe, ou seria palenque, ou seria cimarron… Depende se é de lá ou acolá, mas todas essas palavras que são parte do vento no livro nomeiam a coletividade que se fez resistência cultural e social à escravidão. Cimarron foi usado no Caribe para nomear aquelas pessoas que aguerridamente resistiam e se organizavam para combater as violências da colonização e acolher outras pessoas. Na mesma carta para educadores que usamos como abre-alas, Heloisa, escritora porto-alegrense, destaca “Recontar façanhas desse porte redimensiona o modo do futuro perceber o passado. Veja que por muito tempo a noção “quilombo” foi associada à ideia de fuga. Porém, quem foge, não enfrenta. E a existência histórica dos quilombos é colossal em enfrentamentos. E não é pouco restaurar a liberdade e reaver territorialidades identitárias. Então, a primeira vez que a palavra quilombo for ouvida por nossas crianças, ainda na primeira infância, que ela entre altiva em seus imaginários.” 

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Eram eles vento: invisíveis aos olhos dos opressores, mas sopro fino ou vendaval que era a forma de se comunicar. De chegar em mais e mais pessoas para “revirar a história”. Vento, ventania, vendaval e os autores nos convidam a dançar. É uma leitura para se fazer com o corpo inteiro. Mesmo se for sozinho, a vontade é de ler livre, ora em voz alta, ora baixinho, deixando as palavras se relacionarem com as ilustrações belíssimas de Josias que envolve nossos corpos como fio de vento que vai de uma página à outra, do amanhecer ao anoitecer. Até o corpo adormecer.  

 

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O livro, com projeto gráfico assinado por Adriana Campos é este convite constante para brincar com o vento. No formato retangular, o livro é um percurso, comprido e da cor do azul do céu ensolarado, e que vai conduzindo quem abre suas páginas a seguir o caminho da ventania. Até as letras – as fontes do livro – continuam a provocar: elas se afastam entre si, ficam maiores e menores e ocupam as páginas de diversas maneiras. O movimento das ilustrações se dá no balanço da saia no varal, no guarda-chuva voando pela cidade e até cata a gota d’água da cachoeira. Cata tudo. No final da edição, que tem capa dura e bordas arredondadas, Heloisa apresenta a história por trás do livro, inclusive o fazer da Adriana, que é “inventadeira do tamanho das letras e desenhos, entre tipos de papéis, ajustando tudo como quem faz poesia”. Para completar, na página da ficha catalográfica, há a indicação para assistir ao vídeo de Hideo Kumayama e Johnny Henrique Ferreira no canal do Youtube da editora, para aprender a fazer um origami de catavento muito especial. 

Em todos os aspectos, o tempo todo a obra se reafirma como para todas as idades. Abre conversas importantes sobre identidade, provocações sempre presentes nas obras de Heloisa, desde Histórias da Preta (com Laurabeatriz, pela Cia das Letrinhas), como em outro da mesma editora Passarinho, dedicado ao neto, O Rei Que Assobiava (em parceria com Flávia Carvalho). Josias que nasceu no território quilombola Real Forte Príncipe da Beira, em Rondônia,  traz ilustrações carregadas de memórias vividas às margens do Rio Guaporé, como podemos ver no livro O Príncipe da Beira (Editora Mazza). Suas ilustrações são ventos que  comunicam de forma singular um pouco de si e um muito de nossas histórias. Este livro que se materializa no coletivo é boniteza assinada por Heloisa que do Sul se encontra com Josias no Norte do Brasil. Só mesmo o vento para nos dar esse presente. 

O Catavento, de Heloisa Pires Lima e Josias Marinho

Editora Passarinho

2023

GESTOS MIÚDOS DE UMA LIVRARIA

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Aqui em São Paulo, nesta cidade das imensidões, estamos acompanhando uma livraria nascer: a Livraria Miúda, que abre suas portas amanhã, 16 de outubro! O autor e estudioso de livro para a infância, Yuri de Francco, vive esta novidade bem de pertinho e convidei para que ele nos contasse tudo aqui

POR YURI DE FRANCCO*

Miúda

Substantivo afetivo

  1. lugar de livros, encontros e cafés;
  2. espaço coletivo.

 

Uma livraria é feita do quê? De livros, muitos dirão.

Sem dúvida, mas não só.

É feita de tijolos, cimento, madeiras, afetos, pessoas, suor, incertezas, sonhos, projeções, erros, acertos, diálogos, ansiedades, discussões, encontros, cafés, olho no olho, cheiros e sons. E de livros, livros e livros.

Mas o que ela pode vir a ser?

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Tenho acompanhado os primeiros passos da Livraria Miúda, que nasceu depois de anos de gestação. Conduzida com todo cuidado por duas mulheres educadoras e apaixonadas pela infância, Júlia Souto e Tereza Grimaldi, a Miúda quer dialogar. É café, é lugar de encontros entre crianças e adultos, é lugar para discutir questões que cercam a literatura para a infância, é lugar de ocupar.

O espaço físico já nos dá pistas sobre essa nova livraria: uma casinha no meio de um bairro residencial que, para a realidade da cidade de São Paulo, tem se tornado cada vez mais rara. Tem um ar de resistência desde a porta de entrada, que imediatamente nos transporta para outro tempo. É uma casa. Casa. O que essa palavra lhe suscita? A mim, provoca sensações e memórias. Afasta-nos imediatamente de uma relação predominantemente comercial e convida-nos a entrar, nos sentarmos, tomar um café e vivenciar a literatura. É disso que estamos falando, de passar por uma experiência.

Conceber uma livraria no meio de um bairro como o da Pompéia, em São Paulo, é um ato de amor. É um gesto de cuidado com a cidade. Uma tentativa de propor diversidade e ganhar conversas.

Mas, então, o que uma livraria pode vir a ser?

Pode transbordar.

Gosto de dizer que o livro é um objeto em movimento. Só existe na medida em que alguém o abre, que alguém o lê. É um objeto estático, mas em constante transformação. E, vejam vocês, o nascimento da Livraria Miúda começa no abrir de um livro, num apaixonar-se, num sonhar, num querer de duas educadoras que amam a infância.

É sonho, claro que é. E que bom que é! Como seria um mundo sem sonhos?

A poucas semanas da abertura, fui conversar com elas, numa tarde de quarta-feira, entre caixas de livros, parafusos, cheiro de tinta e desejos infinitos. E muito descobri sobre essa longa trajetória.

No final de 2018, Júlia teve a ideia de abrir um espaço onde a arte e a infância fossem protagonistas. O caminho até a literatura foi muito natural por uma característica essencial: as tantas possibilidades artísticas que o livro para a infância contemporâneo carrega em seu fazer. Professora e coordenadora pedagógica de educação básica por anos e mãe de dois, Júlia acredita que a criança e a arte só podem estar juntas.

Foram semanas, meses e anos de gestação. Caminhos, por vezes, tortuosos, mas que, em 2020, levaram Júlia ao reencontro com Tereza, sua amiga de longa data. Tereza é professora de crianças e tem alma de artista, além de ser uma alquimista de sabores. Ser também um café foi uma escolha precisa para dar o tom do espaço – um lugar para ficar, passar um tempo, ter bons momentos e lembranças. Conversar. Parar.

Tereza Grimaldi e Julia Souto e porta hipnotizantemente azul da Livraria Miúda
Tereza Grimaldi e Julia Souto e porta hipnotizantemente azul da Livraria Miúda

As duas criaram um espaço que é, essencialmente, o que elas são. Toda a bagagem e história de anos construídas pelas duas passeia pela livraria e, mais do que isso, é compartilhada amorosamente com as pessoas, seja na disposição dos espaços, na curadoria, nos sorrisos, em cada detalhe. É um espaço de conviver, ler, estudar, pesquisar, comer, papear e fantasiar.

Assim é a Livraria Miúda.

A abertura é um retrato dessa caminhada que – para nossa sorte – agora fazemos parte.

Gosto de pensar que a mudança que a gente quer para o mundo não se faz na força, nem de uma hora para outra. Se faz pouco a pouco, sem pressa, com muita escuta e presença.

A mudança é miúda e, ao mesmo tempo, gigante.

Vamos tomar um café?

LIVRARIA MIÚDA – ABRE-PORTAS 16 E 17 DE OUTUBRO, DAS 10H ÀS 17H 

Rua Coronel Melo de Oliveira, 766 – Pompeia – São Paulo

acompanhe tudo no Insta @livrariamiuda !

Yuri de Francco é autor de livros para a infância, mediador de leitura, professor e ator. Seu livro “O menino que virou chuva” (Editora Caixote) em parceria com Renato Moriconi foi premiado pela Revista Crescer, através da lista dos 30 melhores livros do ano de 2021 e com o selo “Altamente Recomendável” da FNLIJ.

O QUE SE FEZ PELO PODER NO BRASIL?

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Obra recente do autor mineiro Nelson Cruz trata a história de nosso Brasil usando a cadeira da presidência da República como fio condutor: dados históricos em um misto de jornalismo e a mais bela literatura

 

Por Cristiane Rogerio

Era uma conversa de família, quando meu irmão contou que dias antes falava com as filhas sobre os presidentes que o Brasil já teve, recuperando desde a tal “proclamação da República” aos nossos péssimos dias de hoje. Na hora, uau, lembrei-me que ainda não havia mostrado a ele o novo livro do autor mineiro Nelson Cruz, um de nossos mais importantes artistas, A Cadeira do Rei, lançado no final do ano passado pela Editora Peirópolis. Eu falei do livro em uma das edições da revista Crescer, onde escrevo resenhas indicando livros para crianças até 8 anos, sabendo que para os leitores mais jovens talvez seja apenas jogar uma bela semente sobre as questões de poder às crianças (o que já bastante coisa para mim).

Mas para pré-adolescentes, adolescentes, jovens, adultos e por aí segue…

… nossa, que livro NECESSÁRIO para este momento. Assim, com caixa alta.

Por quê?

Porque o livro é uma potência de texto e imagem – Nelson traz suas caricaturistas para o livro – para mergulharmos em detalhes da História do Brasil.

Cada dupla – com algumas justificadas exceções – um líder brasileiro nos é apresentado.

Tudo a partir da ocupação ou não da cadeira.

“Que dom João tinha uma cadeira preferida para se sentar e trabalhar, todos da Corte já sabiam. O que ninguém esperava é que, com o exército de Napoleão a poucas horas de invadir Lisboa, o regente português resolvesse fugir de seu país e carregar a tal cadeira para o distante Brasil.”

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Deste momento em diante, então, o autor mantém um mesmo formato e no virar de páginas seguimos a linha cronológica da política brasileira.

 

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O leitor vai se dando conta de que há uma narrativa do objeto cadeira por todo o livro – como essa irônica e divertida imagem do filho do príncipe regente aos 5 anos de idade, herdando a cadeira. O humor também vai para o texto, com a dose entre real e ficção típica do trabalho de Nelson Cruz.

“Determinado a abdicar do trono do Brasil e assumir o de Portugal, chamou seu filho Pedro, de cinco anos de idade, e disse: ‘Meu mui amado filho Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bebiano Francisco Xavier de Paula Leocácia Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança, retiro-me para Portugal, mas deixo para ti o título de Imperador do Brasil e… minha cadeira.’ E o pequeno, sentando-se, declarou oficialmente: ‘Buááááá!”

Entre detalhes que a gente sempre esquece e uma inevitável vontade de ir puxando pela memória a linha do tempo que deveríamos conhecer, mais ironia de Nelson com o uso da palavra cadeira é um deleite.

“Durante a Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo revelou a sua tendência fascista. Colaborou com o nazismo, atendendo a pedido de Adolf Hitler pela extradição da comunista Olga Benário, esposa de Luís Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro. Entretanto, navios brasileiros foram atacados e afundados no oceano Atlântico por submarinos alemães. Pressionado pela opinião pública, declarou guerra à Alemanha. Com o final do conflito, a influência da democracia anistia para centenas de presos políticos. Mas, antes do final do mandato, foi deposto por um golpe militar comandando pelos generais de seu próprio ministério. E, assim, a cadeira ficou livre.”

Mas vem José Linhares, que fica só um ano e com a missão de encaminhar o país a uma nova Constituição, chega Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro de Vargas, que volta depois de vencer as eleições.

“Austucioso, Vargas foi reeleito e retornou à cadeira.”

E a crise política com o atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e, depois, o suicídio de Vargas que, vendo essa linha do tempo, parece uma reverberação sem fim.

 

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No meio da leitura, mesmo ele já conhecendo a tal história, meu irmão não segurou a exclamação:

“A GENTE NUNCA TEVE SOSSEGO!”

É isso, Jô. Não tivemos sossego. Que luta viver nesse país que começa enterrando corpos e cultura indígenas, governando por interesses diversos entre militares e meninos mimados, sob respingos das guerras mundiais e forte atuação religiosa, uma perversa política econômica com base na escravidão (que só se transformou, mas nunca teve um fim), com oligarquias agrícolas poderosas, interesses de nações estrangeiras, mortes inesperadas de pessoas sentadas ou prestes a sentar na cadeira, desigualdades imensas de entendimento da política, dos direitos, da educação e da cultura. Líderes covardes tomando decisões surreais contra militantes que precisavam se esconder para lutar. Ditaduras, censuras, injustiças sociais, reviravoltas, democracias nunca consolidadas.

Tudo pela cadeira do rei.

O que mais agora?

 

A CADEIRA DO REI

De Nelson Cruz

Editora Peirópolis

2020

 

MEU 2019 DE VOLTA À REVISTA CRESCER

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Nesta mesma época, no ano passado (quando a gente sonha com novidades após o Reveillón), eu nem imaginava uma super mudança na minha vida: voltar a escrever para a Revista Crescer, onde vivi minha paixão por livros infantis de 2005 a 2013. Desde a edição de maio de 2019, estou lá, novamente “cuidando” (termo que eu sempre gostei de usar) dos livros para infância e outras reportagens de cultura para a Crescer versão impressa, mas que eu aqui posto para vocês do que entrou no site sobre os livros que escolhi mês a mês.

Parece algo comum uma vez que sou uma jornalista especializada no assunto. Mas não é: é uma alegria especial poder escrever para quem não estou “vendo”, após anos em sala de aula com professores e outros mediadores e criadores de livros. Meu dia a dia n’ A Casa Tombada – principalmente à frente da pós O LIVRO PARA A INFÂNCIA – é no tête-à-tête, no tempo da experiência de aprender junto. Fazer uma resenha, fazer esta curadoria para os leitores da Crescer é outro aprendizado, de linguagem, de desejo, outro prazer de compartilhar.

Vou fazer um compilado das minhas alegrias na Crescer. A coluna da versão impressa começa sempre com “5 LIVROS…”, mas tem, além das resenhas do mês, alguns livros em destaque maior, entrevistas, pequenas reportagens. Aqui eu listo os livros e linko para vocês verem os detalhes no site da CRESCER… o que será destes livros ano que vem, quando são anunciadas as premiações e expostos os reconhecimentos formais? Será que minhas apostas chegaram ao coração de alguém, às mãos de leitores?

MAIO

5 livros para se autoconhecer 

com

Os Vizinhos

Reinações de Narizinho/ Reinações de Monteiro Lobato – Uma Biografia

Meu Pequenino

A Tromba

O Passeio de João

PARCERIA NOS DETALHES (sobre o livro O Guarda-Chuva Que Desenguardachuvou)

JUNHO

TODO MÊS DE JUNHO É MÊS DA LISTA DOS 30 MELHORES LIVROS INFANTIS DO ANO DA CRESCER!

veja a edição de 2019 – premiando os livros lançados em 2018! 

JULHO

5 livros para emocionar 

com

Quase Ninguém Viu

Sinto o Que Sinto

A Menina Que Não se Encaixava

O Lobo Não Vai Aparecer?

Malala – Pelo direito das meninas à educação

DA AMIZADE, UM LIVRO (sobre o livro Lua)

AGOSTO

5 livros para seu filho viajar pela imaginação

com

Pinóquio – O Livro das Pequenas Verdades

O Bicho Mais Poderoso do Mundo

O Colecionador de Chuvas

Maria Teresa

Uma Canção de Urso

LIVROS PARA BEBÊS COM NARRATIVAS, SIM! (sobre a coleção de livros Literatura de Colo)

SETEMBRO

5 livros para refletir (bastante)

Da Minha Janela

Poupou

O Muro no Meio do Livro

Minha Dança Tem História

O livro maluco das poções mágicas

“Sempre estou em busca do divertimento pelo inesperado”, diz Eva Furnari (sobre o livro Tantãs)

OUTUBRO

5 livros para (nos) explicar

com

Andreia Baleia

Palavras Sapecas

Brinco de Listas

Cachorro de Pano

O Dicionário do Menino Andersen

UM PAI, MUITAS IDEIAS! (sobre o livro Famílias)

NOVEMBRO

5 livros sobre lidar com o outro 

com

O homem sem alma

Uniforme

Festança

Balada da estrela e outro poemas

A vida seria mais fácil se eu fosse um monstro

UMA CARTA DE GRAMSCI PARA CRIANÇAS (sobre o livro O Rato e a Montanha)

DEZEMBRO

QUINTAIS DO BRASIL (sobre o livro Lá no Meu Quintal)

(JAJÁ POSTO OS 5 LIVROS DO MÊS DE DEZEMBRO!!)

Uma primeira vez na Feira de Bolonha

CONVIDADA DO ESCONDERIJO

Do planejamento pré-viagem às surpresas acumuladas, a autora de livros ilustrados e especialista em livro para a infância, Liliana Pardini, conta um pouco aqui o que foram os seus dias passados na mais importante feira do livro infantil do mundo

A ideia desta viagem partiu da Anna Luiza Guimarães, uma jornalista e pesquisadora e apaixonada por livros como eu. Quando terminamos o curso de Pós-Graduação O Livro para a Infância, n’A Casa Tombada (em São Paulo), ela sugeriu: nossa viagem de formatura tem que ser para Bolonha.

Era daquelas ideias que são tão audaciosas que assustam, concluir todo aquele percurso na principal feira de livros ilustrados do mundo. No meu medo confortável, achei distante do real: “Viajar para longe da família por um motivo meu, só meu?”.

Em novembro de 2018, Anna me mandou uma mensagem: “Liliii vamos para Bolonha???? Já comprei minha passagem pra não desistir.” E a ousada pergunta veio do frio na barriga: “E por que não?”

Conversas daqui, ajustes dali, pesquisas e cálculos depois, no dia 30 de março eu estava abraçando marido e filhos no aeroporto, dizendo que os amava e já já estaria de volta. Encontrei minha professora de narrativa visual (curso que me deu a chance de continuar estudando n’A Casa Tombada!) na sala de embarque, a autora Aline Abreu, e a Daniela Padilha, da Editora Jujuba. A Daniela me perguntou: “É a sua primeira vez em Bolonha? Então não vou te contar nada, é um mundo aquilo.”E lá fui eu para o mundo. Doze horas de viagem até Milão e mais duas de trem para chegar no abraço de realização de sonho na Anna.

Depois de jantar um tagliatelle al ragù com vinho local, tiramisù de sobremesa e uma boa noite de sono na horizontal, chegamos à feira.

 

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No Brasil, não são muitas as pessoas que têm essa loucura por livros ilustrados. É uma tribo pequena que, aos poucos, vai contagiando quem se deixa encantar. Chegar em um lugar com seis pavilhões, mais de 500 expositores, 250 eventos, entre workshops, debates, análises de portifólios, mostra de originais de ilustradores e enormes murais onde os visitantes artistas podem expor seus trabalhos é um susto e um alívio. Há mais malucos no mundo.

Deparar-se com tudo isso pode causar ansiedade. Anna e eu conversamos sobre isso e concluímos o óbvio: não dá para ver tudo. Então decidimos “rallentare”, desacelerar o ritmo e saborear o que o acaso iria nos colocar nas mãos.

Permitimos que os livros fizessem seu flerte. Uma piscada de uma ilustração, um beijo soprado por um título e íamos nós transportadas a universos paralelos. Por vezes sozinhas, compartilhando os achados mais preciosos, ou mesmo folheando o livro uma para outra e trocando impressões.

Assim conheci as obras de Anna Paolini, Beatriz Martín Vidal, Davide Calì, Monica Barengo, Daniel Fehr, Bernardo P. Carvalho, Quint Buchholz, Taeeun Yoo, Laura Carlin, Helene Rice, Ronan Badel, Mauro Bellei. E revi as de Jimmy Liao, Gabriel Pacheco, Eva Montanari, Bruno Munari, Kveta Pacovska e tantos mais.

Quando a fome nos fez lembrar que não somos feitas só de devaneios nos demos conta de ter perdido as palestras selecionadas da manhã e que precisávamos comer urgentemente. O fato de ter pego uma fila enorme (quantos livros mais poderíamos ter visto neste tempo?) e ter conseguido quase à força um sanduíche seco com poucas fatias de mortadela de uma italiana determinada a só atender clientes do sexo masculino, nos fez decidir trazer nossos próprios sanduíches a partir do dia seguinte.

Em 2019 há espaço para ler escritas à mão?

Fomos para a palestra sobre Handwriting in children´s books (Escrita à mão nos livros para crianças). Foi estranho ouvir uma das palestrantes defender a não utilização da escrita à mão nos livros ilustrados. Disse que a tipologia deve ser familiar, espaçada e “preto no branco”, pois a criança pode se cansar facilmente na leitura. Até posso concordar com isso em um livro didático, onde a informação importa mais do que a tipologia e ela deve ser útil e discreta. Mas no livro ilustrado? E quando é que a criança vai poder ser desafiada a decifrar uma letra escrita à mão? Depois de crescida?

Os outros palestrantes fizeram o contraponto, dizendo que a escrita à mão traz características do discurso para o papel, como tom, volume, velocidade, contexto emocional. Defenderam a escrita à mão como presença humana, movimento do corpo. Foi quando ela apareceu, uma autora holandesa chamada Harriet Van Reek, a heroína da tarde.

Disse que não vê diferença entre desenhar a letra e desenhar a ilustração. Defendeu que é possível que a criança não consiga ler, mas que ela pode sentir o que a letra transmite. “Você deve ter aventuras com as letras. Como pedir para o ‘K’ ser o seu cavalo ou sugerir um corte de cabelo para o ‘H’”.

Ao final de sua fala não pudemos resistir e fomos falar com ela. Eu, no meu inglês de pé quebrado, disse que fiquei apaixonada. E ela, no maior bom humor: “mas eu sou muito velha pra você!”. Tiramos fotos, trocamos abraços, pegamos dicas de onde conseguir seus livros e deixamos a impressão do nosso jeito brasileiro para a talentosa holandesa.

Entre minhas vontades pesquisadas com antecedência estava ver o autor japonês Katsumi Komagata, um grande ídolo. Antes de sair da feira neste primeiro dia, fomos ver onde era o stand de sua editora, a One Stroke. Encontramos uma senhora japonesa escrevendo apontamentos e um senhor, também japonês, em seu notebook. Em silêncio, admiramos alguns livros. Quase caí de costas quando vi o livro da arvorezinha — Little Tree — à venda. Um antigo sonho de consumo. Tomei coragem de perguntar à senhora se aquele era Komagata. Ela disse que sim, na maior naturalidade. Parecia “brincadeira de primeiro de abril”, bem a data que estávamos lá. Cumprimentei-o, perguntei se ele poderia autografar o livro para mim e ele, em sua doce gentileza, pediu para que eu me sentasse e escrevesse meu nome em um papel. Ele perguntou de onde eu era e conversamos um pouco sobre as diferenças e pontos em comum entre Tóquio e São Paulo. Tiramos uma foto e me segurei para não dar um abraço, achei que seria demais para a reserva nipônica dele. Admirei a elegância tranquila da Anna, perfeito oposto da minha empolgação de adolescente diante de seu astro de rock preferido. Atribuí isto ao fato dos cariocas estarem acostumados a encontrar celebridades em seu cotidiano. “Na verdade, estou em choque.” ela confessou. Saímos flutuando deste primeiro dia.

 

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O bebê e o direito à literatura

Começamos o dia seguinte, 2 de abril, o Dia Internacional do Livro Infantil (por conta do aniversário do dinamarquês Hans Christian Andersen) e aniversário da Anna, com a exposição de originais de ilustradores do mundo todo (mostra que completou 50 anos e o Instituto Emília trouxe uma versão especial ao Brasil em 2018, no Sesc Bom Retiro). Ver o traço próprio de cada artista e sentir o contexto de cada obra me deu a sensação de viver cinco anos em uma hora. (e ver o Fernando Vilela, nosso autor paulistano, entre eles, é uma alegria imensa).

Encontramos a Aline na palestra sobre livros para a primeira infância, dedicada a pensar os livros para os bem pequenos. Entre os palestrantes, dois me impressionaram mais. Uma foi a editora da Les Grandes Personnes, Brigitte Morel. Ela produz livros para bebês que são verdadeiras galerias de arte ambulantes. Faz questão de qualidade máxima em todos os detalhes, desde a definição de ilustrações fotográficas à escolha de autores, como Kveta Pacovska, para citar um exemplo de seu catálogo. Outro foi o psicólogo e psicolinguista Evelio Cabrejo Parra, cujo trabalho defende que os bebês que têm contato com livros infantis desenvolvem sua sensibilidade, seu cérebro, como nunca mais poderão desenvolver em outra fase da vida. E que esse acesso deveria ser um direito assegurado a todos.

À tarde encontramos uma amiga da Anna que ela só conhecia virtualmente, a Emilia Nuñes, autora e criadora do blog Mãe que lê. Uma soteropolitana super simpática (isso deve ser pleonasmo) que nos levou até o stand da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e nos apresentou à Maria Beatriz Serra, colaboradora da fundação. Cada uma de nós contou um pouco sobre o próprio trabalho, e Beatriz me recomendou vir no dia seguinte apresentar o boneco do meu primeiro livro no Portifólio Review com a Ciça Fittipaldi. Pudemos folhear os livros brasileiros selecionados pela Fundação para representar o Brasil em Bolonha, um catálogo super aguardado divulgado dias antes da feira. Entre os consagrados autores, como Marilda Castanha, Odilon Morais, André Neves, Carolina Moreyra, Roger Mello, Nelson Cruz, Rosinha, Stela Barbieri, Fernando Vilela, Lucia Hiratsuka e tantos mais – a lista é longa, maravilhosamente longa – o impactante A Coisa Brutamontes, primeiro livro da Renata Penzani (juro, que também se tornou especialista pela mesma pós que eu!) e o belíssimo e independente (sem ser lançado por uma editora) Das Árvores que Caminham Quando Nelas me Aninho, a poesia encantadora do João Proteti e dos traços da Daniela Galanti! Bonito de ver a produção independente do Brasil ganhar a merecida visibilidade.

Encontramos o autor André Neves no stand da Editora Projeto. A Cristiane Rogerio (autora deste blog e coordenadora da pós) nos apresentou a ele em São Paulo, quando fomos juntos, Cris, André, Anna e eu, a uma exposição de livros infantis antigos na USP. Conversamos sobre a possibilidade de ele fazer seu famoso workshop de ilustração de Sarmede (cidade italiana com tradição no estudo na ilustração) no Brasil (cruzemos todos os dedos!). Logo chegaram seus amigos ilustradores: o espanhol Miguel Tanco, a portuguesa Mafalda Milhões e as italianas Gabriella Santoro e Anna Laura Cantone. Foi inevitável (e divertido) observar a personalidade de cada um em relação a seus desenhos. Encerramos o dia de aniversário no famoso restaurante Da Nello, com vinho, alcachofras fritas e molta pasta.

 

Quem somos nós na Feira

No terceiro dia, já adaptadas ao fuso horário e cheias de coragem, foi o dia de nos apresentarmos. Anna divulgou sua fantástica Biblioteca Amarela. Vou contar um pouco aqui sobre esse trabalho de formiga atômica revolucionária: ela primeiro conhece a criança e sua família e, a partir dessa conversa, indica livros que possam proporcionar diálogos sobre os mais variados assuntos. Os livros podem ser emprestados por um mês ou vendidos. E ela também participa de eventos para onde leva sua biblioteca itinerante. Por enquanto…

E eu apresentei o boneco do meu primeiro livro para o Artur, da Editora Projeto e para a análise generosa da autora Ciça Fittipaldi, na FNLIJ. Recebi conselhos valiosos.

Assistimos à palestra da Editora Carthusia, uma editora que, segundo eles mesmos, “procuram ideias para livros tão estranhos que ninguém tem coragem de fazê-los”. Era uma palestra que eu já havia assinalado como favorita antes de viajar por conta da presença de um escritor: Alberto Casiraghy.

Seguindo a #livroobjeto no Instagram me deparei um dia com a editora artesanal PulcinoElefante. Descobri que há 40 anos este poeta, editor, ilustrador (e luthier, músico, entre outras mil artes) italiano imprime um livro inédito por dia na sua máquina de caracteres móveis na sala de sua casa em Osnago. Foi uma saga conseguir o DVD do documentário feito sobre ele – Il fiume ha sempre ragione (O rio há sempre razão) – que valeu o suor, pois está entre os filmes preferidos da minha vida. Conhecer um pouco de sua arte alimentou meus próprios propósitos.

Depois de ouvi-lo falar sobre a criação de aforismos sob o ponto de vista das crianças (“como os pais podem ser bravos e doces ao mesmo tempo?”) reunimos o que restava de coragem neste dia e fomos conversar com ele. Como fiquei feliz em poder usar o pouco italiano que tenho para dizer: Oi Alberto, sou uma fã brasileira do seu trabalho. Na mesma hora ele convidou a Anna e eu para visitá-lo em Osnago: “fica a meia horinha de Milão”. Dali dois dias eu teria mesmo que ir a Milão para pegar meu vôo de volta e perguntei se poderia ser nesse dia. “Sim, estarei livre. Anote meu telefone. Almoçaremos juntos.”

Muito para processar!

Último dia, plena consciência de que a mala iria pesar e a carteira já estava vazia, fomos ver apenas o que a Aline nos indicou vivamente no jantar da véspera: conhecer o designer “reencarnação” de Bruno Munari – Mauro Belei. Ele nos apresentou cada um de seus livros, com performance e tudo. O “Pop-op”, primo do Pop-up, é revelado quando envergamos o papel. O Sporcabili del 900 – sfregando le avanguardie (Sujeiras de 900 – esfregando o avant-garde) convida a criança a colocar uma folha em branco sobre oito matrizes impressas em relevo e esfregar o papel levemente com lápis para ver revelar desenhos inspirados na corrente artística dos anos 1900: futurismo, cubismo, abstracionismo, minimalismo, espacialismo etc. Sem informações teóricas, é para os pequenos terem contato com esta estética, de uma forma divertida e que permita a apreciação de uma obra desse gênero quando a virem mais tarde, mais crescidos, por já terem referências.

Isso para citar apenas dois de seus livros. Fizemos nossas compras comedidas e demos mais uma volta na feira. Depois de um café reflexivo, contamos os últimos euros e decidimos voltar lá. Quando chegamos, ele tentava se comunicar – por gestos – com sua editora chinesa para apresentar seus livros novos. Que angústia! Quando vi, lá estava eu com meu inglês e italiano macarrônicos intermediando a conversa dos dois, explicando a apreensão da arte abstrata de forma subliminar da criança para a chinesa que mal falava inglês. Falamos até sobre as diferenças de taxas entre livros e brinquedos na Itália. O que faltou em gramática sobrou em simpatia. Sei que essa conversa maluca terminou com todos se abraçando, tirando fotos, trocando presentes e convites para ficar em casa, seja em Bolonha, Pequim, São Paulo ou Rio de Janeiro.

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Fomos almoçar no centro de Bolonha, a uns 20 minutos de ônibus da feira, Aline, Anna e eu, e andar um pouco. Visitamos a igreja de Santa Maria della Vita, onde há o grupo de esculturas em teLILIBOLONHA5rracota do artista Niccolò dell’Arca, feita por volta de 1490. Cristo no chão acaba de morrer. E as testemunhas em torno, incluindo sua mãe e Maria Madalena, estão em um desespero aterrador. Ao vivo, parece que tudo está acontecendo naquele exato instante e que ouviremos os gritos a qualquer momento.

 

 

 

Depois visitamos uma pequena livraria independente chamada Mirabilia. Especializada em arte, ilustração e fotografia, orgulham-se em ter livros dark para a infância, que tratam de temas incômodos, como doenças, morte, perda, abandono.

Os livros são fantásticos, mas o que consegue impactar ainda mais é a decoração.

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Ao entrar no andar subterrâneo, chamado de o quarto das maravilhas, a impressão é de estar em um cenário de um livro do escritor e ilustrador norte-americano Edward Gorey. Para quem o conhece, pode imaginar o quanto isso pode ser perturbador e hipnotizante. Se não o conhece, vale permitir que a curiosidade supere o medo. No Brasil, há alguns anos, a editora Cosac Naify lançou o A Bicicleta Epiplética, divertíssimo.

O Último Dia

Um trem até Milão, uma confusão entre estações – o trem para Osnago parte de Milão Porta Garibaldi e não de Milão Central – metrô e outro trem para Osnago depois, lá estava ele, o poeta Alberto Casiraguy, de boina e cachecol, nos esperando na estação e caminhamos até sua casa-ateliê.

O curioso é que a própria casa já é uma obra em si. O ranger da porta de ferro anuncia a passagem para um outro correr do tempo. Objetos que atiçam a imaginação do artista estão por toda parte. Um caos lindo de esculturas, retratos, pinturas, papéis, livros, linhas, tipos (esses, organizados, cada um em sua gavetinha), pedras, estátua de Branca de Neve, instrumentos musicais feitos por ele e a coleção de máscaras africanas. Ah, as máscaras. Cada uma que ele apontava, dizia: “olha isso, é Picasso. E essa? Modigliani.”

Um espaço que reflete sua inquietação criativa, um universo próprio onde produziu mais de dez mil títulos do selo PulcinoElefante, obsessão apaixonada que o absorve tanto que ele não sente a menor vontade de se afastar de casa. Sua esposa, Grazia, que já visitou e morou em muitos lugares no mundo, recomenda que ele visite o Brasil. Mas ele desconversa.

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Cozinhou para nós um espaguete ao pesto e não nos deixou nem lavar a louça. Enquanto tomávamos um caffé d’orzo, imprimiu e pintou uma obra para cada uma. Seguimos de braços dados até a estação, conversando sobre Jorge Luís Borges e seu compositor favorito, Gustav Mahler. O inesperado nos tomou.

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De tudo vivido, penso que tive uma sorte imensa de ter tido a Anna Luiza como companheira de viagem. Alguém para quem perguntar de vez em quando: “Foi sonho ou foi de verdade mesmo?”.

 

ps – O CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO QUE EU, CRISTIANE, AUTORA DESSE BLOG, COORDENO N’A CASA TOMBADA E QUE LILIANA E ANNA LUIZA CURSARAM, ESTÁ COM INSCRIÇÕES ABERTAS PARA TURMAS NO SEGUNDO SEMESTRE DE 2019! VEJA MAIS AQUI NO SITE DA CASA:

 

LEIA MAIS NO BLOG SOBRE BOLONHA E A FEIRA:

Bologna 2014: Brasil, o País da Ilustração

 

FEIRA DE BOLOGNA 2015: O espanto como jeito de ler o mundo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A Coisa Brutamontes – poesia em temas difíceis

 

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Ele estava ali – impossível que não o vissem! Um rinoceronte enorme, desconjuntado, peixe fora d’água. Mesmo eu, que só tenho 11 anos, sei reconhecer alguma coisa fora do lugar. Estava ali para quem quisesse ver, bem no meio da sala, interrompendo o vaivém das pessoas, que agiam como se nada incômodo ocupasse aquele lugar com cheiro de flor; não queriam esticar a vista para nada além do que já conheciam. Não sabiam mexer nas coisas inexplicáveis, e ainda assim olhavam para elas de cima, com seus olhares adultos, distribuindo respostas onde não cabiam nem as perguntas. E então o rinoceronte: descabido, inesperado, sem sentido. Tanto as pessoas o ignoravam que o absurdo da história que eu vou contar quase que nem tem a ver com ele.

A primeira vez que me disseram “Maria morreu”, meu coração reclamou, quis pular fora do peito. Precisaram repetir: morta. Mas morta como, se para mim ela continuava?

 

É assim. É assim com esta potência que se inicia o texto de Renata Penzani, jornalista competente para olhar as pluralidades da infância, pesquisadora dedicada para entender as possibilidades de narrativa na contemporaneidade, mulher sensível que vê poesia e sentido em viver experiências e se relacionar com as experiências do outro. É assim que começa A Coisa Brutamontes, primeiro livro publicado da Renata, escritora talentosa que tenho o prazer de conviver desde 2015, quando nos conhecemos n’A Casa Tombada. Vi um pedaço de sua trajetória de estudo do livro ilustrado para a infância, na pós-graduação que coordeno lá, O Livro Para a Infância, em que Renata brilhou dois anos e me ensinou muito. O livro venceu o III Prêmio CEPE Nacional de Literatura 2017 – Infantojuvenil e foi lançado no final do ano passado pela CEPE Editora.

É assim. É assim que Renata nos fala de morte sob a perspectiva de uma criança. Um olhar tão poético quanto ingênuo; tão maduro quanto simples. A coisa brutamontes aparece ali na vida de Cícero, o menino de 11 anos, obrigando-o a lidar com uma dor que, ao contrário de outras questões do crescimento, os adultos nem sempre têm as melhores explicações. Este grito silencioso que é a perda de alguém. Este inexplicável susto que acontece com todos nós.

O texto de Renata é preciso e não fala sobre morte sem falar de outra coisa também bastante misteriosa: o amor.

 

Até então não era amor, eu acho. O que acontecia entre nós era sempre sem nome. E foi sendo assim até aquele dia, quando alguém chegou para mim e perguntou: “Quem é Dona Maria?”. E então pela primeira vez eu tive que encaixar uma Maria inteira numa palavra só.

(…)

Eu e Dona Maria somos um par. Não sei se me entendem quando eu digo, porque às vezes parece que é uma coisa assim que só a gente pode saber. Ter um par é ter alguém que escuta o que você não diz. É pelo menos uma vez por dia ter certeza de não estar sozinho.

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Dá vontade aqui de reproduzir o livro inteiro. Esta força toda que vai nos engasgando a leitura de tanta emoção é costurado com ilustrações de Renato Alarcão, importante artista brasileiro e professor de arte narrativa, que tem seu traço em dezenas de livros e outros trabalhos gráficos. Ele entra em inícios de capítulos e interfere com desenhos expressivos e emocionantes ao longo do livro. Cícero e Dona Maria vão sendo expostos em imagens para o leitor como um sonho, lembranças daquela narrativa em primeira pessoa, daquele menino que é um pouco de nós, um pouco de nossa infância em dúvida, em tristeza, em amor, em eterna busca de sentidos.

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Olhamos para o livro, olhamos pra dentro e nos perguntamos: e eu? Eu consegui estas respostas?

Na contracapa, a escritora e diretora da Pulo do Gato, Márcia Leite, ressalta belamente: “Renata traz na escrita a sua força brutamontes. O leitor se vê, a todo momento, surpreendido e arrebatado por sua inusitada prosa poética”.

Esta inesperada amizade leva Cícero e o leitor a pensar a si mesmo e o mundo: os sentimentos e as leituras das pessoas vão se costurando, ora cruzando, ora se afastando em um vaivém do que se entende em grupo e do que se entende sozinho. As reflexões de Cícero nos vêm como metáfora do crescimento. Um crescimento nem sempre fácil, nunca visível. Eu olho para Cícero, olho para Renata, me vendo criança e procurando “as Donas Marias” da minha vida; mas também me vendo mãe, elocubrando quem serão estas pessoas que já acompanham – ou vão acompanhar – minha filha. Desejando que as todas as crianças que enfrentam o mundo tenham chances de conversa e escuta. Acima de tudo, liberdade de pensamento.

 

A Coisa Brutamontes (CEPE Editora)

Textos de Renata Penzani

Ilustrações de Renato Alarcão

2018