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DA RESISTÊNCIA NASCE AMOR(A)

 

Bati um papo com o autor Jean-Claude Alphen sobre a criação dos desenhos da AmorA na rede social Facebook e como espalhar amor com profundidade

Cerca de um mês atrás, os amigos do Facebook do autor Jean-Claude Alphen um belo dia vêem saltar em sua timeline uma garotinha carregando livros. No desenho, bem em cima dela, uma espécie de título que dizia AmorA Pela Leitura. Dia 15 de novembro ela já tinha sua própria fanpage, em dias mil curtidas e já passa das 80 “charginhas”, como nomeia Jean-Claude.

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Não vou me esquecer da beleza que eu sentia ao ver as charginhas surgindo todos os dias, nos acolhendo de uma avalanche de brigas, ódio espalhado inclusive nestas mesmas redes sociais que o autor criou o AmorA Sim. As imagens eram sempre seguidas de muitos comentários, uma contágio de afeto e movimento. Era um projeto? Um sopro de paz? Um grito? O autor, que já colocou seu traços em dezenas de livros e vem se tornando esperado nas livrarias e bibliotecas cada vez mais, brinca com nossa raiva, ironiza as injustiças brasileiras e evidencia a todo o momento que, sem Amor(A) não vamos chegar a lugar algum.

Não resisti a esse amor todo e conversei com o autor, este brasileiro do Rio que passou a infância na França e que é o criador da porquinha Adélia (a premiada obra que ganhou Jabuti – entrou em listas importantes e pro coração de muita gente! – e chegou ao mundo pela editora Pulo do Gato) sobre esse fenômeno de afeto em tempo tão obscuros e estranhos. O que seria isso tudo… ah, uma brecha?

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Você diz “não é tirinha, não é livro para a Infância, não é charge, é charginha”… por que? O que caracteriza e não caracteriza? O que é AmorA Sim?

Cristiane, não é tirinha, nem livro para a infância e nem charge na idéia formal que fazemos das charges. Tem personagens, e charges têm poucos personagens fixos, tem mais nas tirinhas. Por isso é uma miscelânea de tudo isso. E para facilitar; eu as chamo de Charginhas…

 

Da impressão de quem te vê pelo Facebook, a AmorA me dá uma ideia de “desabafo”: um dia você não podia mais aguentar tanto peso e resolve espalhar “amor”A… foi mais ou menos assim que nasceu a ideia?

Minha experiência sintética e minimalista como autor para a infância é preponderante assim como minha formação em quadrinho e meu velho

sonho de fazer uma história com personagens carismáticos.

AmorA nasceu logo após a derrota da democracia no Brasil e partiu de uma necessidade de expressar minha frustração e meu desconforto com o Brasil que se avizinha.

É um desabafo mas que foi se transformando com o decorrer do trabalho. Porque foi um trabalho coletivo. Muita gente participou, o pessoal que me segue sugeriu nomes, personagens e muitas coisas rolam neste pequeno universo Amoriano. Sim, em vez de espalhar ódio e ressentimento pensei no que seria melhor naquele momento para mim e para muita gente. Seria importante não perdermos nossa humanidade.

 

E como foram inspirando cada personagem? Vi agora um com uma professora… tem inspiração na Lígia Pin*? Você poderia aqui contar algo sobre cada um deles? 

Cada personagem tem suas características e foram crescendo de acordo com o feedback dos seguidores ou melhor seguidoras… Tenho muito mais seguidoras, porque elas gostaram de AmorA e da sua postura forte, feminista e de paz e amor.

AMORAQUALETOUPEIRA

Mas têm muitos outros personagens: tem o Qualé que é um guaxinim que é o pet não domesticado dela. Ele é bem marrento , manipulador e interesseiro, como um adolescente é normalmente nessa época, mas é o filhinho dela. Ele também tem suas qualidades. Todos os personagens têm as duas faces da mesma moeda, fraquezas e forças…

 

Tem a Toupeira que simboliza o medo do que vai acontecer… Vou me esconder? vou sair do Brasil? O que muitos se perguntaram.

 

Tem O BiBi que é mais descolado, mais vivido e é músico e ele encerra a madrugada sempre cantando e tocando sua guitarra com trechos de músicas que eu gosto, e que às vezes cabem no momento que vivemos.

 

Tem o Bem-te-vi que é o cara atento e que chama pra briga mesmo sendo pequeninho.

AMORAINDIGENA

Tem o Krén que é uma homenagem aos Krenac, uma etnia de índios guerreiros, bem inteligentes e que podem nos dar lições de resistência e de como ser resiliente.

 

E vão chegando mais por aí…

Acabou de nascer a Seilá, uma jabuti do barulho, de casco duríssimo.

AMORAPROFESSORA

A professora é inspirada na Ligia Pin porque somos amigos de longa data e sempre falamos e trocamos experiências sobre crianças. Ela da sala de aula, e eu de autor de livros porque sempre acreditei que

nossas atividades se cruzam. Mas ela simboliza todos os professores do Brasil. Uma das profissões mas desprestigiadas que temos …E deveria ser bem o contrário.

 

Tem alguma pretensão a mais? Publicar impresso? Continuar? Nos dá uma sensação boa saber que sempre teremos novidades…. teremos?

Não vejo como imprimir, apareceram uns “loucos” no bom sentido da palavra pensando nisso mas acho que não vai passar pela censura.

E não seria uma produção fácil para fazer escoar. Só se fosse de graça.

E eu faço de graça no virtual e vou continuar trabalhando assim.

 

Mais de mil seguidores né?

Pois é, 1000 em duas semanas, e não impulsiono nada e nem compro estes pacotes que eles oferecem pra conseguir mais seguidores.

Naturalmente, essas charginhas se destinam a um público restrito, adultos que querem algo diferente do que só ataques e briga.

Naturalmente, eu dou uma boa pitada de críticas que não são ofensivas nem agressivas. São construtivas.

 

A gente fala e reclama tanto dos males das redes sociais, de que estamos mais isolados ainda, que vivemos uma ilusão com ela, de aparências e, o principal: que nossa convivência nas redes ainda há muito o que evoluir. Saber dialogar por lá, ouvir o outro é uma delas… 

Mas tem esse outro lado do engajamento social, da denúncia, de chamar atenção para o essencial nosso, manter amizades e forças de resistência… e agora você nos acolhe e nos dá sua arte pelas redes, criando uma atmosfera de afeto por meio destes personagens. Será que você encontrou uma fissura, uma brecha de sentido neste mundo virtual? 

Exatamente, concordo totalmente com você: é a brecha que ainda está aberta e que pode confortar muita gente. Inclusive, neste universo de seguidores , alguns já se tornaram amigos. E tem também pedidos de ajuda pra divulgar problemas, doenças, dicas para a comunidade.

AMORAMARIELLE

É uma pequena comunidade que nasceu como uma maneira de resistir mesmo.

Mas ela foi bem além do que imaginei, criou afetos, laços, amizades.

Acho que existe esta brecha sim desde que não seja uma coisa muito agressiva ou algo como um movimento de guerrilha. A intenção não é essa, a intenção é acolher. É espalhar AmorA por aí.

 

E temos outro projeto de livro novo?

Tenho livros que vão pra fora do Brasil, especificamente para o Canadá, alguns também daqui sendo traduzidos para o francês e para o mercado de lá. E continuo com alguns livros já programados para saírem em 2019 aqui no Brasil.

 

Obrigado e vamos continuar nesta luta divertida e séria nestes tempos sombrios que se avizinham..E todos estão convidados para seguir

A Fan-Page de AmorA https://www.facebook.com/AlphenJeanclaude/

*Lígia Pin é uma das (queridas) alunas da pós que eu coordeno, O Livro Para a Infância, n’A Casa Tombada!

“OLAVO” E O DIREITO DE SER TRISTE

“Olavo era um menino triste”.

Esta é a primeira frase, consigo passar mais algumas páginas, mas minha filha Clarice parece fingir não prestar atenção. Tento há alguns meses ler o livro todo para ela e, quando pergunto “ah, posso continuar?”, ela sempre diz “depois”. “Eu deixo ele aqui?”, perguntei para ela, apontando para uma das nossas pilhas fixas de livros para ler. “Sim, a gente vai ler”.

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Mas é incrível que, mesmo ela não sabendo como é o livro todo, ele já existe. Existe na vida dela. Outro dia falamos sobre algo que havia acontecido na escola, algum conflito, o gancho para a conversa surgiu e eu disse: “Algumas pessoas ficam mais tristes que as outras. São mais ‘sensíveis’, a gente pode usar esta palavra, Cacá. Assim como o Olavo, o menino daquele livro, sabe?”. E ela: “Sei, mamãe”.

Olavo, livro que o grande autor Odilon Moraes lançou com a Editora Jujuba há alguns meses é das emoções que a gente tem que respirar fundo e bancar. Não, não narra uma tragédia. Não tem final feliz ou infeliz. Ele “apenas” divide conosco a ideia de uma criança que, “não por algo que lhe faltasse, nem qualquer chance perdida”, simplesmente é triste.

Vamos acompanhando o cotidiano de um menino, de uma casa, de uma janela, que tem sua espera da vida repentinamente alterada quando, um certo dia, ele é surpreendido com uma caixa de presente na sua porta. De quem seria? De onde vinha?

“E quanto menos sabia o porquê ou do que se tratava, mais forte seu peito batia, mais leve seu corpo ficava”.

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É quando este azul se dá por inteiro e, quando menos esperamos, começamos a ver a cor como palavra. Ou como uma frase poética com nuvens e borboletas. É como se este azul nos gritasse: EI, VOCÊ ESTÁ VENDO AQUELE OLAVO, O MENINO TRISTE, AQUI?

O enredo e o “final” se alternam em importâncias. O final dá a calma de uma conclusão ou hipótese, daquele menino que o leitor sente o impulso de salvar. Mas é só voltar para o enredo que o peso do livro se torna evidente como sugestão de ampliar a nossa visão sobre uma criança, uma infância, uma melancolia. Odilon nos dá a chance de ver que palavra, imagem e até cor são narrativas. Cor é palavra. Texto são imagens. Imagens são narrativa, encadeadas em um ritmo que nega a pressa de um tempo que não parece mais nosso. Mas é. Tudo com um evidente cuidado do projeto gráfico de Raquel Matsushita e da editora Daniela Padilha, que sabe o livro de cor não somente no original, mas nos seus passos, nos seus tempos, em um processo artístico que, se olhado desde o início, se esperado até o final, nos dá tanta possibilidade de leitura e deleite.

De riscos a lápis preto a um azul-céu bastante específico, Olavo, o livro, propõe uma conexão com o outro, o outro Odilon, o outro Olavo, o outro leitor, eu, a criança que não precisa de pressa – e não terá certamente – de concluir nada. Principalmente se ela souber que há sempre uma janela para abrir.

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Olavo (ed. Jujuba)

De Odilon Moraes

2018

 

AQUI ESTAMOS NÓS, de Oliver Jeffers

Oi, este é o mundo.

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Eu poderia resumir assim Aqui Estamos Nós, novo livro do irlandês Oliver Jeffers e que a Salamandra traz ao Brasil. Lançado ano passado, o autor conta que escreveu esse livro quando o primeiro filho estava com 2 meses de idade.

Dois meses de idade. Por coincidência estava eu aqui mexendo e remexendo algumas lembranças da minha filha Clarice, hoje com 6 anos, e me veio à mente a pergunta: “o que eu pensava sobre o nosso futuro juntas quando ela era bebê?”… “o que eu pensava sobre mostrar o mundo? Fiz algo certo?”. Não sei as respostas. Oliver Jeffers, um dos mais sensíveis artistas do mundo que nós colocamos na categoria “literatura infantil”, decidiu que como artista de livro ilustrado ele apresentaria a seu bebê o mundo em forma de livro. Talvez ele também nunca saiba se “fez certo” ou não.

Mas o que quer que eu escreva aqui não será suficiente para falar de Aqui Estamos Nós. Farei de tudo para não estragar a experiência de quem pegá-lo pela primeira vez depois deste texto. Pode parecer óbvio, mas a emoção desta obra é a cada virar de página.

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Me peguei passando o dedo nas páginas para ver os detalhes, voltar às anteriores, rever, reler frases. Este vaivém de vasculhar informações me veio com tanta alegria! Porque você começa o livro achando que ele vai falar da Terra, dos outos planetas, do sistema solar, meio ambiente, mar, paisagens, corpo humano…. mas o “nós” é muito mais.

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O autor vai nos levando desenho a desenho, palavra a palavra para uma narrativa de diversidade que faz qualquer discurso fascista parecer tolo. (é, eu sei que todos são). Não tem discurso de “todos merecemos a nossa parte do planeta”. Nós somos nós, simplesmente. Basicamente. Elementarmente. Humanamente. Ou “almamente”, como diria Guimarães Rosa.

É aquela leitura que nos faz pensar “uau, que imensidão somos”, mas numa mistura de real e fantasia, no literal e na metáfora, de “eu e o outro” de forma tão intensa que é bom preparar o lencinho.

Como ele bem sabe jogar, Oliver nos faz dar risada, logo depois vem uma vontade de chorar…

No trecho: “Cuide bem do seu corpo. A maioria das partes não cresce de novo”, é aquele tom irônico dele, das suas características mais precisas. Depois, quando viramos a página, vemos:

“Existem pessoas de inúmeros formatos, tamanhos e cores. Podemos até parecer diferentes, agir diferente e falar diferente… mas não se engane: somos todos gente.”

Aí, é o nó na garganta.

Mas não é? Você aí, que pensa ser mais que o outro, vai ter uma surpresa: somos todos gente. Precisa de mais algum argumento?

E é também aí que o leitor pode se tocar de outra delícia do livro: como Oliver apresenta o mundo ao filho, não poderiam faltar personagens seus emblemáticos, como o menino e o pinguim, de Achados e Perdidos (será que tem mais algum e eu não achei?). Mas não é só: ler cada detalhe das ilustrações, cada caracterização, cada “gente” e seus particulares é traçar um combinado com o leitor de busca pela igualdade de direitos fenomenal. Porque os personagens não estão chapados em cores, formatos ou tamanhos: cada um têm sua expressão, um movimento, uma ação, que nos enchem de dúvidas ou elocubrações de quem são, para onde estão indo, o que estão pensando, o que desejam… quem é que conhece esses “nós” todos, afinal?

Desta emoção, ele pula para outras ao listar animais, depois expor as tantas perguntas que um bebê pode fazer antes de começar a falar. O bebê, sim, faz muitas hipóteses para ler o mundo! E o lê de diversas maneiras. Assim como nós: olha só aqui, a gente, lendo texto e imagem com Oliver, sentindo que tudo ali é palavra. Imagem ou texto, é palavra. Imagem ou texto, é leitura. Imagem ou texto, é arte. Imagem ou texto, é narrativa. Literatura.

Quando olho para o livro de novo ao escrever aqui, me parece que ele tem umas mil páginas. Ou seriam 7.327.450.667 páginas, uma para cada cidadão do mundo? (número de pessoas “até agora” segundo o autor). Quando você acha o livro está acabando de um jeito, vem o nó na garganta novamente: Oliver nos convida a olhar de volta para o livro, a reencontrar o que foi dito, pensado, sentido. Feito criança que começa a ler este mundo, apresentado por nós, numa alternância de possibilidades, encontros e desencontros, onde não podemos parar de lutar enquanto não houver dignidade e respeito.

Termino este post com uma foto de uma das duplas do livro, para mim, emblemáticas, e que me fizeram reler um trecho de O Enigma da Infância, capítulo do livro Pedagogia Profana (Ed. Autêntica), de Jorge Larrosa, professor da Universidade de Barcelona. “Pelo fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo, o tempo está sempre aberto a um novo começo: ao aparecimento de algo novo que o mundo deve ser capaz de receber, ainda que, para recebê-lo, tenha de ser capaz de se renovar; à vinda de algo novo ao qual tem de ser capaz de responder, ainda que, para responder, deva ser capaz de colocar em questão.”

se alguém não conseguir ler o que está na dupla: APESAR DE TODO O NOSSO PROGRESSO, NÓS NÃO ENCONTRAMOS TODAS AS RESPOSTAS, ENTÃO AINDA HÁ MUITO O QUE VOCÊ PODE FAZER. VOCÊ VAI DESVENDAR MUITAS COISAS SOZINHO. MAS LEMBREM-SE DE ANOTÁ-LAS PARA AS OUTRAS PESSOAS.
se alguém não conseguir ler o que está na dupla: APESAR DE TODO O NOSSO PROGRESSO, NÓS NÃO ENCONTRAMOS TODAS AS RESPOSTAS, ENTÃO AINDA HÁ MUITO O QUE VOCÊ PODE FAZER.
VOCÊ VAI DESVENDAR MUITAS COISAS SOZINHO. MAS LEMBREM-SE DE ANOTÁ-LAS PARA AS OUTRAS PESSOAS.

PS – mesmo sem informações de processos, tenho que dar um destaque para “edição de texto” de Marília Mendes e Lenice Bueno e tradução de Yukari Fujimura, pois o texto “deslizou” para mim… 

Aqui Estamos Nós (Ed. Salamandra)

de Oliver Jeffers

2018

Mais sobre ele? Eu já escrevi aqui (um texto sobre quem é ele) e aqui (resenha de Presos).

 

Os 50 anos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil


Elisabeth Serra, secretária-geral da entidade, conversou com o nosso Blog sobre a situação diante da perda da sede própria da instituição em 2017 e uma incessante luta pela valorização do poder público ao tema: “A gente não desiste”

Por Anna Luiza Guimarães (jornalista carioca e especializando-se no curso de pós-graduação O Livro Para a Infância, d’A Casa Tombada/Facon, aceitou meu convite para colaborar com o blog)

Elizabeth Serra     Ao entrar na casa em que Elizabeth Serra mora há décadas, em lugar bucólico do Rio de Janeiro, sou conduzida por um senhor simpático até uma escadaria em direção à entrada. Mas não sem antes reparar nas dezenas (talvez centenas?) de caixas empilhadas na garagem. Logo imaginei que se tratavam de livros, o que foi confirmado por Beth mais tarde. “Não tínhamos para onde levar tudo que recebemos”, explicou a secretária-geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). A entidade é uma das mais importantes representações da produção e propagação da chamada “literatura infantojuvenil” no Brasil, nascida em 23 de maio de 1968, como braço do IBBY (International Board on Books for Young People), organização mundial que representa uma rede de associações que promovem ações para a qualidade do livro para crianças e jovens no mundo. Em plena comemoração de seu cinquentenário, a entidade e sua equipe vivem uma situação bastante difícil: desde junho de 2017, o grupo e os livros deixaram o edifício Capanema, no Centro do Rio de Janeiro, por conta de uma restauração. Desde então, a FNLIJ teve seu escritório dividido entre a casa de Beth (como é mais conhecida) e um conjugado alugado em Ipanema. O acervo de mais de 30 mil livros – o maior da América Latina – ficou no prédio em obras. E é assim que a Fundação comemora seus 50 anos: refém de uma enorme burocracia para conseguir um novo espaço, possivelmente a Casa da Leitura, em Laranjeiras. “Esse foi o lugar escolhido para a nossa nova sede. Mas a papelada parou em Brasília e agora, parece, que falta pouco para resolver”, torce ela, em entrevista ao blog Esconderijos do Tempo, no início de março. “Se a literatura fosse valorizada, a gente não estaria nessa situação.”

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A luta por esta valorização é a essência da Fundação que, divulgando as histórias produzidas para crianças e jovens no Brasil por vários cantos do mundo começou sua própria história em 1964. Em início de ditadura militar brasileira chega aos ouvidos de um grupo de mulheres interessadas em livros e infância a possibilidade de se criar uma entidade dedicada ao tema no Brasil. Isso porque, neste ano, o IBBY realizou um congresso em Madri, Espanha, e convidou todos os países latino-americanos e não queria abrir mão da presença do Brasil. Quem fez a ponte é um membro do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), entidade extinta que fazia parte do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), órgão do Ministério da Educação). Uma destas mulheres era Laura Sandroni, que havia se formado em Administração, mas na época estava em casa com os filhos. Ela e um grupo de bibliotecárias e educadores realizaram várias reuniões até que, em 23 de maio de 1968, a FNLIJ nasceu oficialmente. Trata-se de uma organização de direito privado, com membros na diretoria que não trabalham na cadeia produtiva do livro, e editoras mantenedoras, além de possíveis parcerias com governos público ou outras entidades privadas. Por que fala-se tanto dela nesta área? Porque, como pode-se imaginar, a FNLIJ foi pioneira em determinadas ações no enfoque do incentivo à leitura no Brasil. De 1982 a 1985, por exemplo, a fundação coordenava o projeto Ciranda dos Livros, kits de obras que eram distribuídas nas escolas e que foram uma espécie de semente para outras ações de políticas públicas que se seguiram. Também é a Fundação que prepara o catálogo de livros brasileiros para serem expostos na Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália, a feira mais importante do mundo no setor. Desde 1974, a entidade se tornou uma referência na discussão de qualidade do livro infantil brasileiro ao criar uma premiação anual que foi de um único livro – com O Rei de Quase-Tudo, um clássico do artista mineiro Eliardo França – e hoje é dividido em diversas categorias, além de distribuir uma lista de contemplados com o selo “Altamente Recomendável”. Por último, é também do grupo que saem as indicações a artistas brasileiros para o Prêmio Hans Christian Andersen, uma espécie de Nobel da Literatura Infantil no mundo, concedido pelo IBBY desde 1956 e que o Brasil já levou três vezes: Lygia Bojunga em 1982, Ana Maria Machado em 2000 e Roger Mello, em 2014.

A escritora Ana Maria Machado no Salão da FNLIJ de 2016
A escritora Ana Maria Machado no Salão da FNLIJ de 2016

Estas ações ganham peso físico na casa de Beth, que me mostra um canto na sua sala para onde levou tudo do escritório, além de um quarto em que estão organizadas algumas das publicações que recebe para fazer a seleção dos melhores livros do ano. A lista, inclusive, foi divulgada no último dia 10, confira aqui! E, apesar do momento delicado, o Salão da FNLIJ chega à sua 20a edição, entre os dias 27 de junho e 5 de julho, no Centro de Convenções SulAmerica, no Centro do Rio de Janeiro, aberto ao público, mais informações neste link.

A seguir, trechos de nossa conversa.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Beth, qual é a sua história na Fundação?

ELIZABETH SERRA: Eu fui para lá em 1987, convidada por Eliane Yunes. A minha história anterior era ligada à arte popular. Eu casei com 17 anos e fiz supletivo para concluir o segundo grau. Eu me formei em pedagogia só depois que meus primeiros filhos nasceram (Beth tem cinco filhos).

Mas o livro é uma coisa muito presente na minha vida, sempre foi. E eu fui a primeira ligada a educação à frente da Fundação. Todas as outras eram ligadas ao curso de letras.

A FNLIJ foi uma iniciativa de mulheres (Laura Sandroni, Ruth Vilella, Maria Luiza Barbosa de Oliveira) e, por todos esses anos, teve mulheres à frente. Como você vê o papel da mulher na literatura para a infância?

As mulheres são maioria nesse meio. Mas não é só na literatura infantil brasileira, pois o IBBY tem uma imensidão de mulheres também pelo mundo. Talvez porque seja ligada a uma atividade que, socialmente, caiba a mulher: as crianças. Enfim, talvez tivessem mais tempo para se dedicar a isso, pois no início se tratavam de trabalhos voluntários. Atualmente, não. Eu consegui instituir na Fundação uma profissionalização, todos com carteira assinada.

São 50 anos da FNLIJ. Como era aquele Brasil de leitores crianças e jovens no início?

O livro para a infância não tinha a menor importância. Como, em plena ditadura, se instala um projeto como esse, revolucionário, e ninguém dá atenção? (os censores não se ocupavam dos livros para crianças na ditadura militar instalada em 1964) Os livros de qualidade, levam, sim, as sementes para uma educação transformadora. Mas eles não olhavam para isso. E é aí que os artistas começam a produzir literatura como arte, sem preocupação com os fins pedagógicos ou de passar mensagem. Então aparecem livros como O Rei de Quase Tudo, de Eliardo França, Flicts, de Ziraldo, entre outras coisas. Em plena ditadura, eles conseguem driblar a censura, mas sem essa intenção. Dão voz aos sentimentos da população em um livro voltado para crianças. Então a gente começa a instalar essas bases. E isso se expande, vai acontecendo.

E, então, a Fundação nasce antes do que chamamos de “boom” da literatura para a infância, com o lançamento da Revista Recreio, lançada em 1969 pela Editora Abril. Qual foi o impacto da publicação?

Nessa época, a Ruth Rocha faz parte da fundação da Revista Recreio que começa a trazer histórias de Ziraldo, Ana Maria Machado, Joel Rufino dos Santos, Jorge Miguel entre outros. Os editores começam a perceber que a revista faz sucesso nas escolas e chamam os autores para fazer os livros. Década de 70, todo mundo sendo censurado, e eles conseguem furar sem essa intenção, repito. É uma questão mesmo de criação, de dar a voz a esse sentimento.

E agora, 50 anos depois, a FNLIJ teve um 2017 conturbado. Como foi a saída da fundação do edifício Capanema?

Nós fomos os últimos a sair do prédio, que entrou em obras de restauração. Então, no dia 23 de maio, aniversário da fundação, fomos avisados que teríamos que deixar o espaço até dia 31. A princípio, iríamos para o edifício do Teleporto, próximo à prefeitura, para onde foram os que ocupavam o edifício Capanema, mas chegando lá para visitar fui informada de que não ficaríamos lá. Estamos pleiteando uma nova sede desde então. E o lugar é a Casa da Leitura (sede da Biblioteca Nacional em Laranjeiras, Rio de Janeiro), que já era cogitada para nos ceder espaço, e podermos trabalhar juntos, há alguns anos. Nós fomos atrás de uma documentação que dizia isso, para então solicitar essa mudança. A burocracia é inacreditável. Já existe um parecer favorável. Mas tem uma lei de 2014 que diz que para ceder o uso de prédios próprios, você tem que comprovar ou uma emergência ou a singularidade. Não há dúvida nenhuma de que a Fundação tem uma singularidade, mas eu tive que bater o pé. Teve gente dizendo para mim “Não Beth. Pode vir gente aqui, pedir, e fazer o mesmo que vocês”. E, então, tivemos cartas do IBBY, da Academia Brasileira de Letras e, principalmente, carta dos votantes falando da nossa importância. E são emocionantes os textos. Mandaram testemunhos do que representa ser votante da Fundação.

Conseguimos, provisoriamente, um apartamento quitinete em Ipanema. Mas era para ter ficado três ou quatro meses nesse espaço, que estamos pagando. Hoje vivemos uma situação muito delicada, com uma equipe bem reduzida de apenas seis funcionários fixos e dois prestadores de serviços. Além disso, é uma situação irregular. Estamos sem alvará. Ainda bem que já reportamos tudo ao Ministério Público.

E aí a gente lembra das dificuldades, da falta de formação de professores, da falta de importância das bibliotecas, da falta de valor dada à cultura escrita. Você vê uma instituição como a nossa, que chega aos 50 anos nessa situação… é um reflexo disso. Se a literatura fosse valorizada, a gente não estaria nessa situação. Você teria um apoio maior do governo, dos empresários.

E como está, hoje, a situação financeira da Fundação?

A Fundação tem um quadro de mantenedores, que com a crise, diminuiu uns 40%. E os projetos, que sempre têm uma remuneração. O Salão do livro foi pensado para ser uma fonte de recursos também. E foi, até o 15º salão, pois tínhamos apoio. A Petrobrás patrocinou por muito tempo. Mas nos últimos três anos, o desafio têm sido não deixar de fazer. E, ao contrário do que acontece em grande parte das ONGs, nós não recebemos recursos financeiros do IBBY. Na verdade, as seções no mundo inteiro é que pagam uma mensalidade para eles. Então, é sempre muito difícil essa parte financeira.

E, hoje, quais são as principais atribuições da Fundação?

A espinha dorsal é a seleção anual, que reflete no prêmio. A partir disso, trabalhamos a formação de professores, fazemos o trabalho de criação de bibliotecas, realizamos o Salão do livro todos os anos, produzimos o catálogo de Bolonha, que tem a parceria da editora FTD para impressão. Como Ibby, nós temos também uma série de tarefas que envolvem a internacionalização do livro brasileiro. A Fundação está há 44 anos levando nossos livros para a Feira de Bolonha. Somos pioneiros na internacionalização do livro infantil, nas indicações ao prêmio Hans Christian Andersen. O Ministério das Relações Exteriores tem nos apoiado muito nos últimos anos. Fizemos catálogos ilustrados que serviu como base para a exposição de 2014 do Brasil em Bolonha (todos os anos, a feira escolhe um país para ser homenageado e o próprio país tem que organizar a exposição). Com apoio do Instituto C&A, que não está mais conosco, fizemos três viagens com 50 professores de três municípios para a Colômbia no projeto “Escola de leitores”. Esse reconhecimento institucional, principalmente por parte do Itamaraty, é uma fortaleza para a gente.

E como é a dinâmica que envolve a seleção dos livros feita pela Fundação e quais foram as mudanças que a lista sofreu nesses anos?

A lista começa mesmo a ter importância em 1998, quando o MEC chama a FNLIJ para montar uma coleção para as escolas. Aí a nossa lista passa a ter um peso muito grande. A partir disso, vi a necessidade de criar um termo de compromisso para os votantes com algumas exigências. Para ser votante não pode trabalhar em editora, nem ter parentes que trabalhem, não pode ser autor, entre outras coisas. O objetivo foi ter mais transparência. E, aos poucos, consegui mobilizar os editores para mandar os livros para os votantes, pois eram enviados só para a Fundação e nós fazíamos a distribuição.

Hoje somos 21 votantes, distribuídos em cerca de dez Estados. Temos reunião mensalmente entre os votantes aqui do Rio para discutirmos os livros, as opiniões. Os votantes são pessoas que já têm alguma relação com a Fundação ou indicadas. É preciso apresentar um currículo, tem que ter profundo conhecimento, não só de literatura infantil, mas de literatura. A lista nos dá uma oportunidade única de acompanhar a produção, de ter uma linha do tempo, para saber com o que estamos comparando.

Como você analisa a pesquisa brasileira voltada para a literatura infantil feita hoje e seu impacto na qualidade das produções?

Eu acho que não impacta ainda. Não é relevante. Ela tem servido mais, em certa medida, para fundamentar e embasar o trabalho de professores interessados. Mas não que atinja o mercado. A questão da literatura infantil na universidade não é valorizada.

Como é o trabalho da Fundação com a formação de profissionais? O que vocês consideram essencial hoje em um mediador de livros?

Hoje, mediador tem em tudo que é lugar, ou seja, tudo é uma mediação nas nossas relações. Deixou-se de nominar o professor como esse profissional que lhe compete, primordialmente, formar leitores e se distribuiu para a sociedade essa função. Eu sou francamente contra. Acho que isso enfraquece a função do professor como leitor, que se perdeu há muito tempo. O professor tem que ser o conhecedor e o leitor. Sem isso, não adianta.

E qual é a posição da FNLIJ a respeito dos contadores de história como incentivadores de leitura?

Os primeiros quatro anos do PROLER (Programa Nacional de Incentivo à Leitura) foram muito marcados pela contação de histórias. Quando eu assumo o PROLER, em 1996, eu e a coordenação toda que chegou comigo levamos um susto. Era tudo contação de história! E uma coisa que a gente avaliava, e felizmente todos concordavam, é que você ter a atividade de contação de história na escola entre outras é uma coisa. Já dizer que cotnador de histórias é formador de leitor, é outra. Não é. Não existe essa substituição. Em alguns casos, ele é mais atrativo, os professores delegam a formação de leitor para o contador. Na minha opinião, você tirou do professor a competência que seria dele para delegar ao contador. No entanto, a gente com isso, mais uma vez, enfraquece a escola e a função do professor como formador de leitor. É claro que um tio, um avô… mas isso virou um meio de vida, uma profissão, que não necessariamente é o professor. Você vai ter as exceções, é claro, mas eu nunca falo das exceções, estou falando da coisa geral. Era uma coisa mesmo impressionante. Chegamos a ver pessoas para fazer curso dizendo que não era mesmo leitor, mas queria “só” aprender a contar histórias. A sociedade aceita isso. E há professores, porque facilita a vida, que delegam a literatura, já que tem contador de histórias. Então batemos muito de frente com isso para fortalecer a questão da biblioteca, da cultura escrita. Entre 1996 e 1997, a gente procura instituir um fortalecimento da cultura escrita, sem desprezar que a cultura oral tem, claro, um papel na nossa sociedade, mas é a cultura escrita que dá a autonomia à criança.

Em todos esses anos, avançamos muito na qualidade da produção brasileira de livros infantis. Temos autores premiados e consagrados fora do país. Porém, nos parece, a formação de leitores não avançou da mesma forma, uma vez que ainda temos tanta dificuldade do tal “Brasil de leitores”. Como você analisa esse cenário?

Primeiro, o Brasil não valoriza a cultura escrita, para a maioria. Por tabela, as famílias não têm livros em casa, não podem comprar livros. A formação de professores é super frágil. A constatação, que não é de agora, já estamos há 30 anos falando isso, de que você não tem o sistema de acesso ao livro. Você não tem um sistema de bibliotecas pensado de uma forma importante para a população brasileira. Nunca teve. Uma vez eu ouvi alguém falando que tinha que ter o Ministério das Bibliotecas, uma coisa assim, porque a biblioteca é, no mundo inteiro, o espaço onde você tem a possiblidade de democratizar o acesso, independentemente da tecnologia.

É um conjunto de ações e valores. A formação de professor é determinante. Mas a gente não está dizendo isso hoje, estamos falando isso há um tempão, com as pesquisas que comprovam que o professor tem uma formação deficiente. Porque a cultura escrita não está presente nessa escola para a maioria. Ela está presente para a elite, mas não está presente na formação de professores para a maioria das crianças brasileiras. Você vai ter exceções, de pessoas que metem a cara, que vão atrás e rompem isso. Mas não temos ainda um projeto político brasileiro para a cultura escrita. Reconhecemos que teve avanços. Porém, não foram suficientes para uma revolução, no sentido de dar um gás que seja permanente para mudar o rumo dessa história. Algumas oportunidades foram perdidas, mas a gente acredita. A gente não desiste.

A FNLIJ sempre teve um discurso contra a literatura como leitura complementar nas escolas. Por onde você acha que caminha a literatura nas escolas hoje?

Eu acho até que houve um retrocesso, de certa maneira. Há 25 anos, um dos problemas era não ter livros, nos anos 90, no governo Fernando Henrique, isso mudou. Passamos mesmo a ter livros e tem até hoje. Inclusive, quando ele endossa isso e amplia com o PNBE (Plano Nacional Biblioteca na Escola), por tabela alguns estados e municípios também vão ter os seus projetos de distribuição de livros. Mas em 2015, quando se suspendeu o PNBE (nota do blog: nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, mesmo com falhas apresentadas em levamentamentos e pesquisas, os programas de distribuição de livros nas esferas federal, estadual e municipal pelo país se aperfeiçoaram, expandiram e alteraram e ampliaram o mercado brasileiro), nós fizemos questão de fazer uma carta se posicionando do que era a perda para a educação dessa conquista e até hoje não está resolvido. Dramaticamente, incorporou à compra do livro didático. (Em 2018, o governo federal do presidente Michel Temer anunciou o Programa Nacional do Livro e do Material Didático e incluiu o termo “Literário” – PNLD Literário – para compras de livros de literatura para as escolas e bibliotecas, mas com diversas polêmicas nas regras que restringem tipos de livros por conta da materialidade gráfica). Não ficou um programa que trata só da questão da literatura.

O que deseja para os próximos anos da FNLIJ?

É manter o nosso trabalho, tratando a seleção, que se desenvolve para formação e as demais ações . O arquivo da Fundação é a memória dessa história. Hoje, gostaríamos muito de ter todos os arquivos e documentos digitalizados para consulta. Isso é um centro de referência, que tinha que estar disponível, não só na Biblioteca, que também está muito aquém. A função dela seria receber pesquisador, mas não temos equipe para isso. Temos um patrimônio indiscutível, que precisa ser cuidado. Quem sabe, com a ida para a Casa da Leitura, a gente consiga fazer algo que permita que os livros, os documentos históricos, fiquem disponíveis para pesquisa. O sonho também seria ter uma escola de formação para professores e de atualização. Ou seja, o que a gente presta de serviço, nós mesmos oferecermos. E, quem sabe, fazer novamente um congresso aqui no Brasil (Em 1974, aconteceu aqui no Brasil o 14º Congresso do IBBY). Talvez não para mim, mas para quem continue.

 

MAURICIO NEGRO: “Somos muitos. Plurais na singularidade”

ENTREVISTA: MAURICIO NEGRO

“Somos muitos. Plurais na singularidade”

 

Pode dar uma olhada no que temos no mercado brasileiro de “livro para a infância” que acolha temáticas africanas, afro-brasileiras, indígenas, povos antigos e vai encontrar o nome Maurício Negro em diversas edições. Paulistano, crescido próximo às belezas da Mata Atlântica e leitor desde cedo, seu traço nos evidencia ancestralidades e pesquisa em suas dezenas de livros ilustrados, alguns como escritor também.

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No final de 2017 tive acesso ao seu Gente de Cor – Cor de Gente, lançado pela FTD. Um livro com rostos em formas de retrato com uma porção de expressões e cores. Só imagens.

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Folheamos várias vezes, dá vontade de ir e voltar, vasculhar semelhanças, entender diferenças.

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Conversei com ele para saber a história por trás de querer colocar essas imagens em livro e lançar em livro para as crianças.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Bem, de início queria saber a história por trás do livro. Você o dedica às suas filhas e a uma certa menina… quem é? Que história é esta?

MAURICIO NEGRO: A ideia do livro nasceu de uma frase de sexta-feira, que ouvi em frente ao portão do nosso condomínio, numa roda de conversa entre adolescentes. Uma menina negra disparou: “Pois então, fulano. Você aí fica vermelho de vergonha e depois eu é que sou de cor?”. Todos riram. Eu também. Na manhã de segunda-feira montei meu material na área externa, para pensar e esboçar um livro que eu precisava ilustrar. Foi quando lembrei daquele comentário da menina, antes de iniciar o trabalho. Logo me lembrei de outras tantas expressões idiomáticas, que misturam cores, sensações e ideias pré-concebidas. Um livro sobre preconceito racial se anunciou num estalo. Aproveitei as folhas que tinha à mão, fiz um boneco em miniatura e reservei 32 páginas. Ao meio-dia o essencial estava pronto. Eliminei o texto literário; percebi que as imagens bastavam, davam mais pano para manga. E mais abertura para a reflexão. Ainda espero reencontrar e dar um exemplar do livro para aquela menina, cujo jeitinho altivo lembrou as minhas meninas.

A sequência de imagens sempre foi desta forma, esse jeito retrato também? 

Desde o início pensei em retratos binários, como fotos 3X4cm ampliadas na proporção. Preto no branco, diria. Ou branco no preto, por outro lado. Porque não poderia haver recados paralelos ou qualquer coisa que desviasse o foco de cada situação. Manter o foco era preciso. E tinham que ser meninos. Fossem meninas, haveria um outro viés adicional. Uma outra discussão, acho. Também evitei esticar demais a brincadeira, para manter a graça, o questionamento e a surpresa. Numa certa altura, esgotadas as expressões mais conhecidas, experimentei associações diferentes. É como a filosofia, quando aborda o assunto por diversos ângulos, muito embora os retratos pareçam ali mais ou menos estáticos. A narrativa nasceu visual, mas só notei no meio do processo criativo. E fiquei feliz demais. Apesar da nossa ampla vivência audiovisual, pelos caminhos mais formais, a palavra ganha status na mesma medida em que a imagem perde. Um livro sem palavras, ao contrário do senso comum, pode suscitar uma infinidade de comentários. E pelo menos nesse livro, meu interesse foi antes escutar os leitores do que obrigá-los a me ouvir.

Como foi encontrar o traço e os tons para esse livro? Tirando o motivo inicial, você tem uma vida dedicada à busca da representatividade africana, afro-brasileira, indígenas, não? E a mistura delas, dos povos que representam… Aí penso que desafio foi encontrar as formas, as situações retratadas, os tons… nós somos muitos tons!

Cris, penso que meu interesse é a infância. Digo, no sentido mais amplo possível. Se lido tão frequentemente com temáticas de raiz é por conta disso. Porque acredito que só é possível aspirar uma realidade melhor, uma sociedade mais justa e saudável, se a gente compreender onde, quando e como deitaram nossas raízes. Carece identificar os laços que nos unem, desde o início. Nossas filiações e linhagens, inclusive com a terra, com a água, com o ar. Eis aí minha motivação e trilha. Os povos antigos, indígenas, tradicionais, caboclos, caiçaras, ribeirinhos, quilombolas ainda estão próximos da infância da humanidade. A gente devia pegar nas mãos deles. Pelo nosso bem comum.

Somos muitos. Plurais na singularidade. Mas o binarismo nos prende, compreende? Preto ou branco. Certo ou errado. Direita ou esquerda. São tempos difíceis. Queremos falar pelos cotovelos, mas ouvimos muito pouco. Para começar somos muitos em um. Tem que investigar a geneologia para começar a se perceber. A gente herda muita coisa, inclusive ambiguidades. Tiramos selfie feito narcisos, mas raros encaram o espelho sem retoque digital. Quem não teme ser tachado? Conservador, eu? Preconceituoso, eu? Jamais! Pois bem, somos tanto uma coisa quanto a outra. Todos nós, na medida da sobrevivência. E é natural! Se passar do ponto, aí sim, o caldo entorna. A discussão começa assim, na honestidade, e sem panfletagem.

Quantos livros você já produziu, Mauricio? Você segue algumas temáticas no seu traço, é um pesquisador… como se deu isso? Por que faz? Como vê a representatividade de “gente” nos nossos livros para crianças e jovens? O que há a se fazer?

Sou um pesquisador espontâneo, digamos assim. Desde pequeno tenho um temperamento curioso e bastante crítico. Aceito remar contra a correnteza se for preciso, compreende? O que me interessa é o que pode dar certo. Mesmo que ainda não tenham chegado lá. Foi assim que ilustrei mais de uma centena e meia de livros, cuidei do projeto gráfico de outros tantos, fiz uma infinidade de capas, organizei coleções, catálogos e antologias, e escrevi um punhado de livros improváveis e até alguns ensaios. Há ainda uma grande desproporção temática e identitária na produção, crítica e fruição literária no Brasil. E também em outras áreas de expressão. Culturalmente nosso cabresto é eurocêntrico, apesar do modernismo, da semana de 22, do tropicalismo, da nossa nova, do samba esquema novo, do mangue beat, no armorial e outras tantas (re)existências de maior ou menor grau. Isso timbra absolutamente tudo. Até mesmo as políticas uniformizantes para a educação, o filtro cultural dominante, a orientação ideológica de nossas gentes, os assuntos de governo, as decisões estratégicas econômicas e sociais. Eu adoraria conhecer um redesenho de país capaz de equilibrar suas forças e riquezas em vez de apenas aclimatar modelos estrangeiros e interesses imediatistas de certos grupos. A sensação atual é de que perdemos o bonde… De todo modo, com muito suor continuo fazendo a minha modestíssima contribuição. Falamos de livros, né? O melhor da ascendência europeia, sem dúvida, mas ainda distante tão distante da moçada…

E do Mauricio “leitor criança”, quem te marcou mais? Que histórias ou que livros? Ou os dois… 

De bate-pronto, puxando pela memória, misturo leituras de infância e adolescência. Na infância com prazer li os clássicos dos irmãos Grimm, Oscar Wilde, Hans Christian Andersen, Lewis Carroll, Maurice Druon, entre outros. E também brasileiros, tais como as vacas da Edy Lima, Lygia Bojunga, Fernanda Lopes de Almeida, José Paulo Paes, Sílvio Romero. Fiquei chapado com o “O boi aruá”, escrito e ilustrado pelo Luís Jardim e lembro bem do impacto que me causou “Quando os rios morrem de sede”, do Wander Piroli. Nunca mais esqueci de “O menino do dedo verde”, do Maurice Druon. Acho que Tistu sou eu. Não tinham tantos livros lindos para criança como hoje. Eu antecipei leituras mais avançadas. Fui advertido uma vez por uma bibliotecária de que a “Piabinha Detetive”, da Lúcia Machado de Almeida, não era adequado a minha idade. Minha mãe, que era professora, foi até a minha escola tirar satisfação. Que absurdo, né? Imagine só. Tenho a coleção completa de Lobato, que herdei do meu avô. Capa dura, ultra conservada.

Lembro das maravilhosas descobertas juvenis e adultas mesmo: Raymond Bradbury, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Carl Sagan, Joseph Conrad, Júlio Verne, H. G. Wells, Mark Twain, Edgar Rice Burroughs, Mary Shelley, Agatha Christie, Conan Doyle, Robert Louis Stevenson, Mark Twain, Machado de Assis, entre outros. O primeiro livro português que li na juventude e que marcou foi “A confissão de Lúcio”, do Mário Sá-Carneiro. Entre os brasileiros, Murilo Rubião me cativou. Depois, acho, foi incrível ler Horacio Quiroga nas férias por acaso. E que delírio descobrir os argentinos! Teve um título juvenil relacionado ao universo indígena: “As aventuras de Tibicuera”, do Erico Veríssimo, só não me lembro se curti. Um dia fui tirar xerox na esquina e sob o vidro do balcão li um trecho do famoso discurso do Chefe Seattle (que eu nem sabia na época do que se tratava). E pensar que muitos anos depois lancei, em coautoria com meu amigo e parceiro de projetos Daniel Munduruku, uma versão adaptada e ilustrada daquele pronunciamento socioambiental tão inspirador! A vida dá voltas.

Como é contar ou ler histórias para as suas filhas? O que te preocupa ou que você foca mais na escolha de um livro para mostrar a elas? Quais são os desafios maiores?

Lá em casa temos uma biblioteca bastante razoável. Tem livros para muitos talheres. E tudo está ao alcance. Nas prateleiras mais altas é só pedir que a gente pega. Não há, nem houve, nenhum esforço para fazer as meninas lerem. Os livros estão por toda parte, pessoas mexendo com eles, eles mexendo conosco. São parte do cotidiano, a leitura acontece por osmose. Elas sempre nos flagram com livros nas mãos. E claro, frequentam o meu ateliê e têm o material de arte delas também. Tenho que fazer o contrário, dar uma vigiada pelo manuseio dos livros e paradeiro de pinceis, tintas e afins. De vez em quando, levam livros meus para a escola. E elas já têm também os próprios títulos no quarto e sempre que dá contamos histórias antes de dormir (tem vezes que o narrador pega no sono junto com o público).

Como temos livros bons, em geral, ficamos tranquilos com relação ao que elas estão lendo. Mas é claro que a preocupação maior é com a indústria, com a banalização da cultura de massas. Só que é impossível blindar a casa. As tranqueiras, pôneis, trolls e outros Barbietúricos entram pelas frestas. A TV é uma baita aliada estratégica. Embora apenas a Cultura e alguns programas específicos liberamos aqui. Importante dizer é que ninguém se esquiva de falar o que pensa. O papo lá em casa é reto. Ah, sim! Só regulamos tudo que é digital. Papel é liberado, estimulado e celebrado. Temos diálogo!

AQUI no link, um vídeo produzido pela editora em que Mauricio fala um pouco mais sobre o livro. 

Sobre morte, música e memória: Viva – A Vida É Uma Festa

viva-a-vida-e-uma-festa2“Mamãe, seria legal mesmo se eu pudesse ter um papai Ricardo e um papai Hector.”

Foi o que minha filha Clarice, 5 anos, me disse em uma noite destas antes de dormir. O papai Ricardo é o papai dela mesmo, que ela ama demais. O papai Hector… bem, Hector é uma caveira mexicana que “vive” atualmente no Mundos dos Mortos. Ela o conheceu no Viva – A Vida É Uma Festa, a mais recente produção Disney/Pixar que hoje concorre ao Oscar de melhor animação. Para sufoco da maior parte dos pais, é a morte que centraliza a história, as emoções e as lembranças. Conduzido por um personagem inesquecível, o menino Miguel e inspirado na maior das tradições mexicanas – a festa do Dia dos Mortos – mergulhamos em um universo recheado pela importância das memórias de quem encontramos pela vida. Seja por um retrato, seja por uma música, seja por uma história: a potência de olharmos para o nosso legado e o afeto (ou não) que deixamos com ele.

Mas o que faria uma menina de 5 anos querer uma caveira “assustadora” como um segundo pai? Só vendo mesmo…

Quem nos convidou para assistir ao filme pela primeira vez foi uma dupla maravilhosa, a minha amiga Daniela Tófoli e sua filha, Helena. Escrevi “primeira vez” porque Clarice foi ao cinema cinco vezes. Esta, depois levamos o pai, outra levamos tia, prima e primo de segundo grau (de 3 anos), outra ela foi com a avó e, a última vez, só ela e o pai. Na primeira vez ao cinema, a história nos pegou de jeito. Difícil o que laça melhor ali. Será Miguel e sua adorável família? Será o sonho de um lindo menino de ser músico? Seriam todas as referências estéticas – em formas e cores e texturas! – da cultura mexicana? Seria uma narrativa inicial fabulosa para localizar o espectador do grande drama familiar: uma mãe e uma filha abandonadas pelo marido que decidiu ganhar o mundo para ser músico? O filme é uma costura de sentimentos, referências, tradições e memórias, sejam da história de seus personagens, sejam de cada um de nós que cria identificações com vários cantos da trama.

Aqui em casa a coisa colou mesmo por conta do app Spotify. No dia seguinte à primeira assistida, procuramos a trilha sonora do filme. Pronto, não há um só dia que a Clarice não coloque pelo menos uma canção para tocar. Está lá em sua “Clalista”, que vai de Mundo Bita a Cabeça Dinossauro dos Titãs, passando por Frozen e Beatles. Embora o filme não tenha a pegada musical Broadway e, pelo menos para mim, fica longe do exagero vocal Disney, a música é a essência da história. O sucesso “Lembre de Mim” é quem faz Ernesto de la Cruz ser o grande ídolo de Miguel e sua cidade. Ele tem um santuário escondido sobre o cantor, que morre de forma tragicômica (e é aí que a ironia e um certo sarcasmo diante da morte aparece pela primeira vez). Por que escondido? Porque a avó de Miguel é responsável por manter uma das tradições familiares: ouvir música é proibido por ali pois o tataravô de Miguel abandonou a família para sair em turnê em busca de uma grande carreira como músico. A esposa deixada criou a filha sozinha, começou uma fábrica de sapatos e passou a mágoa e a superação adiante. Os descendentes só tiveram a chance de perpetuar a decisão, mas Miguel, um menino, só quer saber de convencer a todos que a música é seu destino.

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E é na famosa cerimônia mexicana de O Dia dos Mortos – onde os vivos lembram-se dos mortos – em que tudo acontece. Dos momentos inexplicáveis só possíveis na fantasia, embarcamos com Miguel para o outro lado, o outro lado da vida, o tal Mundo dos Mortos. A busca de Miguel é pelo seu ídolo Ernesto de La Cruz, mas quem ele encontra e quem cuida e o acompanha no filme é a engraçada caveira Hector, um morto sem rumo que lamenta não ter ninguém vivo para se lembrar dele. A dupla vira amiga pelo mais belo milagre que os seres humanos são capazes de fazer: o canto. É aí que temos contato com outras canções e conhecemos melhor todos os excelentes dubladores brasileiros – e evidencia belíssimos arranjos musicais -, como Nando Pradho (Ernesto), Arthur Salerno (Miguel) e Leandro Luna (Hector), todos maravilhosos cantores que Clarice tenta imitar. Aqui neste vídeo do canal Comentário Nerd tem tudo sobre eles, vale a pena ver:

Viva é riquíssimo em detalhes e personagens que se entrelaçam. Marcantes também são o cachorro Dante – da raça Xoloitzcuintli, típico do México – e uma participação especial de Frida Kahlo (que a Clarice também é apaixonada, então, imaginem a emoção! Aliás, ela tinha um cachorro destes…). Vejam aqui uma porção de curiosidades que a minha amiga Daniela trouxe lá da Cidade do México paa a Revista Crescer, quando a Pixar exibiu o filme aos jornalistas. É um filme sobre as relações humanas. A mais bonita e das mais importantes é a de Miguel com a Mama Inês, sua bisavó. Uma senhora fofa que fica em uma cadeira de rodas é o elo entre passado e futuro, e um dos momentos mais marcantes da trama – quando Clarice chorou em todas as cinco vezes.

Vejam um trailer-convite aqui:

Termino esse post meladíssimo com a canção preferida aqui nossa em casa. Desde que falei para a Clarice que era a minha preferida, toda a vez que ela põe para tocar ela me olha como se fizesse uma espécie de homenagem. Destas coisas que só as canções potencializam: memórias que vão além destas vidas. A música é ou não um milagre?

O CAMINHÃO e mais uma bela viagem de Lúcia Hiratsuka

Tem sido difícil encontrar tempo aqui para escrever aqui, por boas razões (muito trabalho com cursos e a pós-graduação O Livro para a Infância, n’ A Casa Tombada!). Mas como o prazer é enorme, algo que me faz parar tudo e sentar e começar a digitar. O Caminhão, recente livro da incrível Lúcia Hiratsuka e lançado pela Cortez Editora, me deu motivos! Primeiro, porque a própria autora estava na expectativa de ele ficar pronto e, com  a doçura que é tão particular de Lúcia, fiquei só à espera. Segundo, que algo me dizia que o tema mexeria comigo: o livro se inspirava em lembranças de infância, o que é um desafio importantíssimo para o autor, um desafio de tornar universal o que lhe é particular.

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Lúcia já nos impacta com a capa: três crianças espiam algo por uma cortina (?) e a vontade é de abrir o livro na mesma hora. O que será que elas estão olhando? A dedicatória, um toque na nossa alma: “Para aqueles que carregam o cheiro da terra e as cores de longe. Para as crianças que esperam”. O folhear só aceita delicadezas, vamos descobrindo devagarinho a história sobre Marina e as irmãs que estão à espera de algo chegar de caminhão. A ansiedade do “mãe, falta muito?” vai entremeando com as hipóteses do que é “ser” um caminhão. Depois, por onde ele passaria; mais adiante, que roupa elas vestiriam quando o caminhão chegasse… puxa, mas o que será que este caminhão tem de tão especial?

Histórias. O caminhão tinha suas histórias, a família de Marina tinha suas histórias, Lúcia tinha suas histórias. Todos temos, falamos, podemos. A beleza deste livro é a tamanha sutileza de uma narrativa que poderia ser de todas as crianças ou de cada um de nós. Para Lúcia contar esta história, somos convidados a estar em várias histórias: das perguntas das crianças, dos costumes e cotidiano da família, e das paisagens, ah, as paisagens por onde passam o esperado caminhão.

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O projeto gráfico (em parceria com Debora Barbieri!) emociona: uma dupla de páginas traz a perspectiva das crianças, a espera; a dupla seguinte é o caminhão seguindo sua jornada. Não sabemos onde ele está indo ou chegando, só vemos um mundo inteiro de cenários, como se estivéssemos diante de um filme, de um encontro, de uma diversidade. Da parte com as crianças, o fundo branco nos concentra nos riscos de lápis do delicado traço de Lúcia.

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Da parte com o caminhão, um amarelo-laranja vai nos formando com o olhar por este trajeto que encontra gentes, animais, construções, ventos e chuvas… Esta sequência alternada cria uma conexão com o livro que é impossível deixá-lo sem chegar ao fim. Feito uma espécie de dança, vamos num ritmo de um lado a outro, num balanço poético entre texto e imagem:

O caminhão subiu morro, desceu serra, passou sol, passou chuva, mata escura e muita lama. 

Chegou valente, carregado de caminhos. 

A gente só quer virar e virar e virar e seguir para a próxima parte, seguindo esta viagem até que todos nós – personagens e leitores – descobrimos juntos o final. O final? Quando cheguei nele, tive um riso nervoso: estávamos no livro, no caminhão. Fazemos todos parte desta lembrança.

O Caminhão (Cortez Editora)

de Lúcia Hiratsuka

2017

 

 

Livro ilustrado é arte para qualquer parte

 

Exposição Linhas de Histórias – O Livro Ilustrado em Sete Autores revela processos de criação de artistas de livros para a infância, coloca em evidência a complexidade destes trabalhos ao mesmo tempo em que questiona: a “inalcançável obra de arte” pode (e deve) estar mais perto do que se imagina

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Ilustrações. Desenhos. Rascunhos. Madeira. Vidro. Histórias. Placas-palavras que nomeiam e guardam ideias, sentimentos, encontros. Livros.

Muitos livros.

Livros dentro de redomas de vidros, feito exposição de arte. Ops! É uma exposição de arte.

De uma arte que é catalogada como “literatura infantojuvenil”. Da que a gente compra em livrarias, empresta na biblioteca, espalha pelos cômodos da casa, lê em sala de aula e presenteia infâncias de todas as idades.

Só que é uma arte-livro. De livro-suporte, objeto, que a gente pega na mão, folheia, cheira. De ler. Ler palavras, ler imagens, ler capa, ler cor, ler traço, ler poesia, ler arte. De conhecer personagens, de entender trama, enredo, voz. Para nos ajudar a ler o mundo. Uma exposição sobre a arte de narrar histórias em livros.

Alguns dos mais incríveis livros ilustrados que temos à nossa disposição estão expostos no Sesc Santo André (SP) até dia 26 de novembro na exposição Linhas de Histórias – O Livro Ilustrado em Sete Autores. Sim, há exemplares numa redoma de vidro, abertos em determinadas e importantes páginas, como uma mediação-arte. Os curadores Odilon Moraes, Fernando Vilela e Stela Barbieri – também grandes mestres artistas com dezenas de livros essenciais às infâncias – nos apresentam como um convite à leitura em tom de investigação, obras de Eva Furnari, Angela Lago, Nelson Cruz, Roger Mello, Renato Moriconi, Andrés Sandoval e Javier Zabala (este último, autor espanhol reconhecidíssimo pelos seus livros, como único estrangeiro da mostra).

Além dos livros e o que eles acham que não podemos deixar de saber em suas páginas, os criadores da exposição oferecem ao visitante um passeio inesquecível pelos processos de criação destes artistas. É mais do que os rascunhos: são caminhos traçados desde as referências (fotografias, pinturas, texturas diversas, poemas) para fazer a obra, até diálogos com clássicos do livro ilustrado no mundo, como Onde Vivem Os Monstros (Maurice Sendak), Fique Longe da Água, Shirley (John Burningham), e A Árvore Generosa (Shel Silverstein). É uma mediação de leitura atrás da outra.

foto de Nosso ABC
foto de Nosso ABC

Entendendo que cada artista tem seu universo bastante particular, os curadores dividiram os homenageados em estações-planetas. Cada um tem sua “cara”, claro. Mas, quando olhamos de longe, vemos a conexão, muito bem costurada pela designer Duda Arruk com construções verticais em madeira, onde é possível ao mesmo tempo ver o particular e o todo de forma impressionante. O visitante entra e sai destes mundos, sempre convidado a espiar o artista vizinho. Nas “pontes”, por exemplo, podemos ter o brasiliense Roger Mello apresentando o mineiro Nelson Cruz:

“É o artista da perspectiva expandida. Nelson reinventa técnicas, sabendo que a narração visual vem antes do simples exercício estilístico. E essa narração precisa ser feita de contradições, para que o leitor seja desafiado plenamente. Nelson entrega ao leitor de todas as idades o melhor de si, sua pesquisa, sua bibliofilia, das entrelinhas ao entretexto”.

Ou saber quem é que mora dentro de cada um deles. A mineira Angela Lago exibe sua relação com o também mineiro Carlos Drummond de Andrade.

“Drummond é dentro de mim”.

Na ponte entre Nelson e ela, vemos referências ao holandês Escher e ao norte-americano Saul Steinberg. Mas, sobre Angela, quem fala é Eva Furnari:

“É uma verdadeira artista. Desbrava versos e imagens. Reinventa tudo sempre. Às vezes, aparece com a delicadeza das minúsculas fadinhas dos bosques. Outras vezes, vem com o punho em riste para falar de injustiças. A alma dela conversa com a minha.”

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O planeta de Angela é um dos mais curiosos para pensarmos na materialidade do objeto: como é uma artista que trabalha com a dobra interna como elemento da narrativa, seus livros estão abertos em 45 graus justamente para que o leitor-visitante-leitor perceba a intenção da autora, que tipo de leitura ela quer nos provocar, característica muitas vezes despercebida em leituras dela de obras como Cenas de Rua e Chiquita Bacana & As Outras Pequetitas. Nunca notou? A exposição é para isso!

Entre Angela e Eva, temos Beatrix Potter e As Aventuras de Pedro Coelho. “Seus coelhos, criados com talento e poesia, espalham imagens de nós mesmos: sentem curiosidade, medo, tensão, buscam aventuras, amor e aconchego”, diz Eva. Já no planeta de Eva, autora italiana que está no Brasil desde muito pequena, painéis com seus personagens lado a lado nos revelam sua capacidade de criar identificações com o leitor a partir do feio, do humor e do nonsense. Não à toa, outro autor da mostra, o paulista Renato Moriconi, define: “Eva Furnari é um dos sinônimos da literatura infantil brasileira”. Do respeito possível e admirável de uma autora com mais de 30 anos de carreira, Eva devolve: “Ele conhece proporções, controla o traço, sabe das cores. Tem um domínio impecável da técnica. Aquarela? Guache? Tinta a óleo? Não conseguimos saber que material usou ou onde está a pincelada. Seus desenhos falam por si, dispensam palavras.”

Os curadores se apropriaram da bela imagem que nos diz que a palavra “planeta” vem do grego “errante”, aquilo que não tem lugar fixo. Como estes artistas e esta exposição, “a característica é a trajetória, não o ponto fixo”, diz Odilon. “Planetas diferentes com atmosfera própria, suas características e suas criaturas, os livros. E que se cruzam: vimos no processo que eles conversavam entre si”, continua.

Para que tudo não perca o sentido principal, no espaço uma biblioteca disponibiliza dos livros vistos nas redomas! Ou seja: obra de arte que podemos folhear! Em outro canto, um vídeo em que podemos ver partes das visitas dos curadores aos ateliês dos artistas!!

Curadores e homenageados todos juntos: Fernando Vilela, Renato Moriconi, Javier Zabala, Odilon Moraes, Andrés Sandoval, Angela Lago, Eva Furnari, Stela Barbieri, Roger Mello e Nelson Cruz (arquivo pessoal Nelson Cruz)
Curadores e homenageados todos juntos: Fernando Vilela, Renato Moriconi, Javier Zabala, Odilon Moraes, Andrés Sandoval, Angela Lago, Eva Furnari, Stela Barbieri, Roger Mello e Nelson Cruz (arquivo pessoal Nelson Cruz)


Tudo que está à mostra nos faz refletir sobre fronteiras e conexões: entre os autores, entre imagens e palavras, entre cidades e países, entre técnicas e invenções, entre o que é e o que não é considerado arte, entre os temas aceitos ou não, entre o que é para criança e o que é para adulto… Estas fronteiras nos dizem o que? E as conexões acontecem por que? Próprio da arte, é “transformação e acontecimento o tempo todo”, como citou Angela na abertura da exposição, em julho passado. Próprio da arte ou próprio da vida. Ou como poderia ser uma e outra: possibilidades de ler o mundo nas suas particularidades e no que temos melhor do coletivo. Nos museus, nas exposições, nos estudos acadêmicos, nas salas de aula, nas estantes de casa. De preferência, sempre em estado de conversa.

EXPOSIÇÃO Linhas de histórias – o livro ilustrado em sete autores

Onde: Sesc Santo André (r. Tamarutaca, 302, Vila Guiomar, Santo André/SP – f: (11) 4469-1200

Quando: até 26/11, terça a sexta, 10h/21h30; sábados, domingos e feriados, 10h/18h30.

Quanto: grátis

 

Vermelho de Dar Dó!

O contador de histórias paulista Cristiano Gouveia lança seu primeiro livro com um divertido reconto de Chapeuzinho Vermelho. Como é também músico e compositor, a obra carrega um CD para arrastar os móveis da sala e ouvir até (ou não) cansar! O projeto foi viabilizado por crowfunding e é uma sucessão de parcerias, confiram aqui

Vermelho.

Botão… vermelho. Árvore… vermelha.

Ops. Um pássaro azul? “Mamãe, olha o livro todo, parece que só ele é azul nesta história, né?”, observou Clarice, minha filha de 4 anos.

“Pela estrada afora…”, começo a ler. Conhecemos a história. Será? Voltamos para a capa: uma menina com chapéu vermelho. Claro, mas… ela parece mais velha do que a menina que geralmente vemos.

 

Pela estrada afora,

Seguindo pra casa da avó,

Ia uma pequena com um chapeuzinho

Vermelho de dar dó

 

Aí vai, pela floresta dos cafundó, um lobo com paletó, que convida a menina a dançar um carimbó, no caminho da casa da…? Você já sabe.

Este prazer entre “eu já conheço” e “que será que aqui tem de diferente” é um dos meus maiores deleites de abrir um novo reconto. Minha filha Clarice também topou a viagem. Com o livro em mãos, fui vivendo a história com ela até o final do livro. Achou engraçado demais esses ó,ó,ó,ó… “é tudo óóó, mamãe?!?”. Mostrei que tinha um CD e ela imediatamente colocou no aparelho da sala de casa. No primeiro acorde, colocou na cabeça uma coroa vermelha, feita com aquelas peças flexíveis de montar. Dançou. Ouviu, deu risada nas intervenções de voz e sons diferentes. Repetiu mais uma, duas, seis, dez. Acho que mais. Primeira coisa a ouvirmos no dia seguinte. Quis levar para a escola. Era semana de doação de livros e o livro foi parar em algum lugar da escola que demorou 3 dias para voltar, 3 dias para eu conseguir explicar à equipe que eu precisava dele para fazer este post, contar ao mundo. A professora já estava fã, mas eu precisava contar que a história criada pelo paulistano Cristiano Gouveia e ilustrada pela portuguesa Sónia Borges não deixa Clarice de jeito algum: descansa e volta, com ela cantando tudo em voz alta, procurando vermelhos pelo caminho. Este vendaval vermelho que habita aqui a minha casa é um livro-CD que o autor buscou realizar por crowfunding, ou seja, pedindo a colaboração das pessoas via web para viabilizá-lo. Contador e cantador de histórias, Cristiano é um pesquisador da linguagem narrativa com a música, faz diversas apresentações de seu repertório, mas nunca havia se lançado em livro. Aqui abaixo, ele responde a algumas perguntas do Esconderijos do Tempo. Confiram aqui!

crisgouveiap

Esconderijos do Tempo: Tem muito vermelho de dar dó na sua vida? Começou com a Chapeuzinho? Tem algo vermelho de memória? A gente lê o livro e ouve o CD e só vê vermelho por aí!

Cristiano Gouveia: Muito! Quem nunca teve a conta bancária no vermelho de dar dó? (risos). Brincadeiras à parte, essa frase foi a primeira coisa que nasceu nesse reconto da chapeuzinho. O vermelho não me chamava muito a atenção a ponto de construir alguma memória de infância. Mas ele surge mais intensamente na vida depois que meu filho nasceu, e e ele descobre que vermelho é a cor preferida dele! Aí é uma coisa de pedir suco de morango, amar tomate, sorvete com calda de frutas vermelhas, roupa vermelha…(risos)

Esconderijos: De onde vem o início desta versão? Quando quis que ela virasse Livro-CD?

CG: Como disse antes, a história nasce com a frase “vermelho de dar dó”. Achava a frase muito sonora, e que daria algum caldo musical bacana. Com ela na cabeça, resolvi então criar a história cantada. E não há como não associar uma história para crianças que tenha a palavra “Vermelho” com o conto clássico da Chapeuzinho. Daí foi misturar música e narrativa, e o reconto nasceu! Mas ele não nasceu como livro inicialmente, e sim como repertório para as apresentações de contação de histórias que faço. Nas apresentações fui percebendo que as pessoas gostavam muito da história. E foi esse retorno das pessoas que alimentou a vontade de transformar em livro.

E aí entra em cena uma pessoa muito importante para este projeto acontecer de fato, que foi a Clara Haddad. Ela fez a ponte entre mim e a ilustradora portuguesa Sónia Borges. A Clara que vislumbra e abre caminhos para essa possibilidade de parceria. A Soninha é apaixonada pela Chapeuzinho (que em Portugal recebe o nome de Capuchinho!). Apresentei meu sonho para Soninha, que de imediato resolveu sonhar esta história junto comigo, e logo nasceu uma parceria incrível!

Esconderijos: Você partiu para o crowdfunding. Foi uma decisão difícil? Tinha o projeto pronto? Como foi esse encontro de projeto gráfico”: textos, imagens, design e a produção do CD?

CG: Nunca é uma decisão fácil buscar concretizar um projeto. Mas a vontade era maior que a dificuldade! Quando conversamos, Sónia e eu, já tinha em mente a possibilidade de lançar o projeto em um financiamento coletivo. A música já estava pronta, só faltava transformar em projeto literário. Quando fui a Portugal, nós já desenhamos o projeto, como seria inicialmente, e ela logo apresentou os traços primeiros para as personagens da história. Daí foi um caminho de diálogo intenso entre a gente. O livro foi para o crowdfunding e foram 45 dias de frio na barriga! Mas tivemos muitas pessoas que acreditaram no projeto e nos apoiaram! Mais de 130 pessoas!

Além disso, tivemos outras colaborações incríveis: além da Clara, tivemos ajuda da Vanessa Balula, que acompanhou a gente por um tempo, e olhou o projeto com carinho e com importantes colocações. O livro quase saiu pela editora Bolacha Maria, mas acabou tomando outros caminhos. A querida Ana Paula Mathias que fez o projeto gráfico e a diagramação, a Raquel, o Ale e o Marcelo do estudio Luppi Arts que me recebeu de braços abertos pra gravar o cd lá.

Aliás, a produção do CD também foi uma delícia de fazer! Porque é muito bacana tentar pensar os sons que ajudam a contar esta história. Pensar cada instrumento, cada som que se relaciona com o que está sendo contado. Um assovio que é inspirado em um canto de pássaro, um instrumento que se liga ao lobo, outro que se conecta com a chapeuzinho. São pequenos detalhes que fazem toda a diferença pra mim. E que se tornaram realidade com a ajuda de muita gente incrível: Erica Navarro, Simone Julian, Flavio Rubens, Helder Lúcio e o Marcellus Meirelles que também arranjou junto comigo a música.

Esconderijos: Quanto tempo durou o processo? Você cuidou de todos os detalhes desta produção?

CG: Eu era marinheiro de primeiríssima viagem nessa história de conceber um livro! Ainda sou, na verdade. Não me dei conta, no início, do caminho árduo que era tornar esse projeto realidade. Do início do projeto até a chegada do livro em mãos foram mais de dois anos. Muitos aprendizados, muitos erros, alguns acertos, mudanças e mais mudanças durante o caminho. Mas uma vontade enorme de fazer acontecer! Muita gente cuidou comigo de cada detalhe da produção. A Sónia teve papel fundamental nessa produção. É um projeto em parceria mesmo. Ela trouxe o olhar literário pra história, deu visualidade à música.

VERMELHODODENTROP

Esconderijos: …um influenciou no trabalho do outro… e é uma dúvida sempre tão forte dos novos autores, esse entrosamento entre os artistas…

CG: A parceria com a Sónia foi deliciosa! A história cantada que criei originalmente acabou mudando muito depois que ela foi propondo as ilustrações. E imagino que o caminho inverso é verdadeiro. Ver o modo como ela trouxe seu olhar pra história me fez mudar alguns versos, acrescentar ali, cortar acolá! E mesmo no arranjo da música, sonoridades nasceram a partir das propostas de ilustração dela. Tenho certeza que a música teria outra cara se fosse apenas para estar em um CD.

Acho que esta parceria teve este lugar tão especial, pois de fato eu e Sónia nos tornamos bons amigos, e fizemos este projeto com muito carinho. Colocamos nossa história neste conto. Desde o traço da casa da avó que é inspirado na casa da avó de Soninha, ao som de um curió que ouvia muito. Tudo tem sentido. Estávamos na mesma sintonia pra compor o livro e o cd.

Esconderijos: Minha filha Clarice já decorou tudo e, prestes a completar 5 anos, se relaciona mais com o CD do que com o livro. Mas fica com os dois juntos, pra cima e pra baixo. Ficou intrigada com as palavras terminando em ó, aceitou a brincadeira, gosta das intervenções… Cris, que infância é esta que não se cansa de ver versões da Chapeuzinho Vermelho? Como você decidiu pelas semelhanças e diferenças na história que as tornam única mas, ao mesmo tempo, com esse tempo de referência, memória e afeto?

CG: Elas, as crianças, nos ensinam tanto ,né? Eu aprendo muito com meu filho, observando as maneiras dele estar no mundo. Nos ensinam a não ter medo, inclusive, da repetição. E que, na verdade, não se repete totalmente. É como uma visita a um ente querido. A gente sabe quem é, como está, onde mora, qual o nome. Mas cada visita é uma descoberta e também uma confirmação que as coisas continuam. Tem um lugar que é parecido com a música. A música precisa assim de um lugar que caminha (a melodia inicial) e um lugar de repouso (como um refrão, por exemplo). Acho que as histórias são assim também. Um lugar onde a gente possa caminhar por estradas novas, mas também possa se reconhecer em lugares de descanso. Eu queria que isso fosse um brinquedo, sabe? E o conto da chapeuzinho é quase um quintal que a criança conhece e aceita brincar. Uma história de brincar cantando. Que brincasse de “agora eu era”, que brincasse com os sons das palavras. Mas que também mostrasse que a criança pode se permitir brincar de inventar novos olhares, novos jeitos de contar. Instigar o olhar curioso mesmo. Tem casa da avó, tem celular, mas tem curió, tem quiprocó, tem até glossário! Meu filho, quando ouvia as palavras, perguntava o que era! (risos). A escolha por ter um glossário no livro nasce assim, para tentar inventar, do nosso jeito, uma resposta às possíveis perguntas “o que isso quer dizer?”.

Esconderijos: Você está lançando o livro independente. Qual o próximo sonho agora?

CG: Como escreveu o Fernando Pessoa, “tenho em mim todos os sonhos do mundo!” Agora é deixar a Chapeuzinho seguir pela estrada, e quanto mais pessoas puderem se encontrar com ela por aí, ficarei feliz! Agora é outra batalha dura, que é conseguir levar este livro pra mais e mais pessoas. Empolgação e alegria não faltam pra tornar esse encontro realidade!

Tenho escrito cada dia mais e mais histórias, e pesquisar o casamento da música com a narrativa tem me instigado cada vez mais. Meu sonho é assim: Brincar de inventar novas histórias. Tenho algumas na gaveta (ela anda cheia!), e tem até outras em fase de produção. Fui aprovado no Edital PROAC de Literatura Infanto-juvenil do ano passado, para criação de um novo livro infantil. Vai se chamar “Pequenos Sambistas”. As histórias estão quase prontas, e nasceram da ideia de misturar a obra de grandes sambistas ao universo dos contos tradicionais. Peguei quatro figuras importantes do samba: Clementina de Jesus, Cartola, Chiquinha Gonzaga e Adoniran Barbosa. Tenho a honra de ter a incrível Tatiana Móes como ilustradora desse projeto. Logo mais teremos novidades.

VERMELHO DE DAR DÓp

Vermelho de Dar Dó

textos Cristiano Gouveia e ilustrações Sónia Borges

2017 

Mais informações e como adquirir o livro aqui no site do autor

Birigüi e a aridez-esperança de uma infância

Na capa, alguém montado em um cavalo olha para algum lugar que não podemos ver: a pessoa está de costas. Abrimos e a guarda-capa nos mantém no universo árido do lápis preto em cima de tons de bege e marrom. Um cacto, um céu que não consigo precisar a cor. Mais uma página e, do lado direito, uma família em uma mesa de jantar. Do outro lado:

– Você vai com a gente amanhã – disse o pai, olhando da cabeceira da mesa. Tomou outra colher de sopa e limpou o bigode com a mão. Estendeu o prato vazio para a mulher.

Ele ainda é muito pequeno – falou a mãe em voz baixa, servindo o marido.

-Passou da hora de ele aprender a caçar, Antônia – insistiu o pai, a voz grave. Esse menino tem de tudo. – Olhou novamente o filho, partiu o pão com as mãos peludas.

-Ele não vai dar conta – caçoou o irmão mais velho, com um risinho.

-Vou sim – disse o pequeno e se encolheu na cadeira.

-Vai deitar, Birigüi, vamos sair cedo – mandou o pai. Tinha os olhos decididos.

O menino se levantou da mesa e, de cabeça baixa, passou o lado do homem.

-Bença.

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Este é o início de Birigüi, história de Maurício Meirelles ilustrada por Odilon Moraes e lançada ano passado pela editora mineira Miguilim. Os textos e imagens em papel kraft parecem um convite à coragem. A coragem de enfrentar algo que sentimos mas não entendemos, à primeira dupla, o que é exatamente. Pensei em Abril Despedaçado, o filme de 2008. Pensei nos livros de Wander Piroli, com suas infâncias de acolhimento mas de muitos desafios.

O progama do dia seguinte era caçar veados. O menino pergunta ao irmão se é atividade perigosa esta. Pode ter onça no caminho. O sono não vem. Ou é sonho? E o menino vai para mais um dia de seu destino. A mãe se despede na varanda.

O pai mostra as espertezas de caçador enquanto o menino deseja ficar na ignorância, só ouvindo latidos. Um dos latidos não tem mais: “Onça é bicho excomungado”. “Que mata sem dó.” Mas aí, Birigüi vê o pai matar um pássaro.

Onça mata por precisão de comer; Pai à toa, por divertimento.

Sem dó.

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A próxima dupla é correria. Em uma fabulosa ilustração-movimento, Odilon nos dá a sensação de estarmos embaixo do cavalo. Somos caça? Caçador? Terra batida? Dá vontade de tocar o livro. E vemos que o tal veado chegou. O destino vai seguindo seus minutos, o menino pula, bate o lombo, pensa, deseja.

O texto continua preciso, claro, forte, de extrema força narrativa que as páginas parecem pesadas: queremos evitar como Birigüi. As ilustrações nos permanece em um misto de infância e sonho, em que destino e esperança se fazem ora contraponto, ora possíveis. Mas é a história que nos espreita, assim como a espingarda.

O destino? Só lendo esta beleza.

“São dois poetas nos alertando claramente para o momento seguinte de uma história que não termina na última página”, diz Nelson Cruz, grande autor mineiro, no posfácio do livro. E ficou sendo.

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Birigüi (Ed. Miguilim)

Textos de Mauricio Meirelles e ilustrações de Odilon Moraes

2016