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NOVO ESPAÇO NO RIO DE ARTES E HISTÓRIAS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

 

Sábado que vem, dia 1 de abril (e, claro, não é uma mentira!), a Urca, bairro no Rio de Janeiro, vai receber um novo espaço de artes. O Espaço Cultural Lago de Histórias pretende acolher uma programação que envolva oficinas de criação literária e de atividades regulares de artes para crianças e adultos. A raridade é projeto de Helena Lima, pedagoga e autora de livros infantis.

No dia da inauguração, a equipe promove uma programação gratuita, com oficina de ilustração com a roteirista, ilustradora, cenógrafa e quadrinista Thais Linhares, às 15h; contação de histórias com Ilana Progrebinschi, com fantoches e violão, às 16h15; sarau de poesia com a psicóloga e escritora Luiza Benevides, às 17h30; e a oficina “Educação para o Encantamento”, com o jornalista e escritor Márcio Vassallo, às 19h.

A partir de abril, as oficinas de criação literária para crianças estão previstas para acontecer de segunda a sexta-feira, de manhã e também à tarde. Nas segundas e quartas, quem conduz a atividade será a própria Helena Lima; às terças e quintas, assume Luisa Benevides, e, nas sextas pela manhã, Márcio Vassallo. Os cursos visam chamar a atenção para um possível olhar do escritor. “Pra isso, vale desde ler poesia até passear pelo bairro e tomar banho de mangueira”, divz Helena, referindos-se também a um terraço no último andar do lugar. Já as oficinas de ilustração para crianças, por sua vez, serão oferecidas às sextas-feiras e têm o objetivo de desenvolver a criatividade e a técnica com o uso de nanquim, aquarela, lápis de cor e giz de cera, colagem, entre outras. Uma oficina de histórias em quadrinhos também está previsto.

Helena pretende reservar janelas na grade de horários da Lago de Histórias para atividades gratuitas para as crianças das escolas públicas do bairro. Toda a programação do espaço também está aberta para crianças portadoras de necessidades especiais.

Já para os adultos, a programação para os adultos também está prevista para iniciar em abril, com os cursos “Escrita criativa para adultos” e “Escrita criativa para jovens” com Luisa Benevides e “Educação para o encantamento – para que serve a fantasia na vida da gente?” e “Oficina de criação literária”, com Márcio Vassallo.

Conversei por email com a Helena para saber mais sobre o espaço e contar para vocês!

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ESCONDERIJOS DO TEMPO Helena, você poderia contar para o Esconderijos um pouco da sua história com livros e leitura para crianças?

HELENA LIMA Sou professora do ensino fundamental há mais de vinte anos. Minha trajetória com os livros e com a leitura começa enquanto professora, na sala de aula. Há pouco mais de dois anos, comecei a dar vida a um projeto antigo de escrever e publicar literatura infantojuvenil. Meus alunos acompanharam o nascimento de meus quatro primeiros livros e fizeram parte da minha inspiração para escrevê-los. Com o lançamento dos livros e a concretização deste desejo, nasceu a Editora Lago de Histórias.

O que lhe provocou essa ideia de abrir um espaço como este? Qual a sua expectativa de impacto? Pode detalhar qual será a dinâmica inicial de cursos e o que pretende depois?

O que me provocou a ideia de abrir o espaço cultural da Lago de Histórias foi o desejo de estar sempre perto das crianças, afinal elas são a minha grande inspiração. Meus livros existem por e para elas. Espero despertar nas crianças o desejo pela literatura, por ler, contar e criar histórias, num ambiente desafiador e “abridor” de ideias. A proposta é que possamos despertar a poesia nas crianças, desenvolvendo a criatividade, estimulando a produção literária e escrita, com cada vez mais autenticidade e originalidade, tudo isso através de atividades dinâmicas, lúdicas e bem diversificadas.

Pensando nas oficinas no dia da inauguração, dá para notar como você e o Espaço levam em consideração texto, imagem e mediação em um patamar de igualdade. Se temos hoje um patamar tão elevado de obras que respeitam esta tríade com qualidade, quais são, na sua opinião, os maiores equívocos na relação com a produção e mediação de livros para crianças e jovens no Brasil?

Acredito que subestimar a capacidade do leitor seja um desses equívocos. Outro grande equívoco, a meu ver, é segmentar a literatura e classificar os leitores de acordo com essa segmentação. Cada leitor, de acordo com a própria maturidade e subjetividade, pode fazer lindas e diferentes interpretações de uma história, enriquecendo o valor do próprio livro. A multiplicidade de interpretações, as possibilidades infinitas da fantasia e da imaginação podem levar os leitores a lugares inimagináveis. Os livros infantis despertam infâncias adormecidas, acordam memórias perdidas e sonhos esquecidos, têm um grande poder terapêutico. Deveriam ser lidos por pessoas de todas as idades.

LAHOHISTORIAS

Como escritora, editora, pedagoga e, claro, leitora de livros ilustrados também para a infância, qual o papel de um espaço como este no Brasil, no Rio, principalmente partindo da sua intenção de também abrir encontros gratuitos para crianças de escola pública?

Um espaço que apresenta a literatura como uma oportunidade de despertar a fantasia, a ludicidade, a criatividade e a possibilidade de viajar livremente com um livro nas mãos já responde a pergunta que questiona, na realidade, a importância dos livros e da leitura para as crianças. Meu desejo é levar um pouco desse encantamento que as histórias provocam para toda e qualquer criança, inclusive àquelas que não poderiam frequentar as oficinas pagas.

 

LAGO DE HISTÓRIAS

Local: Rua Marechal Cantuária 18, sobrado – Urca

Informações: (21) 3518-5549

As inscrições para todas as atividades podem ser realizadas pelo

email contato@lagodehistorias.com.br e pelos telefones: (21)

3518-5549 E (21) 99110-4239.

PROGRAMAÇÃO GRATUITA DE INAGURAÇÃO: 1 DE ABRIL DE 2017

15h – Oficina de ilustração – Thais Linhares

16h15 – Contação de histórias – Ilana Progrebinschi

17h30 – Sarau de

poesia e música – Luisa Benevides e André Tavares

19h – Oficina “Educação para o encantamento” – Márcio Vassallo

O Caderno da Avó Clara

 

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Eu não acredito que a gente está na estrada. Não acredito. Eu vou acordar, eu vou acordar, eu vou acordar…

Não acordei. E paramos num posto na estrada. Não vou comer nada, não vou comer, não quero. Não vou comer mais, nunca mais. Minha mãe me olha e eu acho que ela está desesperada. Mas não estava desesperada quando decidiu fazer isso comigo, me abandonar. Viajar para me abandonar. Não é viagem, é um engano, e não existe ninguém para me defender.

“É um engano”. “É um engano”. “É um engano”.

Parece que Mari, a adolescente de O Caderno da Avó Clara nos joga esta sentença o livro inteiro. Primeiro, a angústia de uma viagem que nos é anunciada neste início de livro que eu reproduzi acima. Depois, a narradora-protagonista sugere ao leitor uma comparação a o roteiro de um filme, expostos em cenas, confundindo-nos, colocando-nos no lugar dela, nos sentimentos, na revolta, na raiva. É quando lemos:

Cena 6:

Ela está dando a notícia horrível: “Mari, você vai ter que ficar seis meses com seu pai. Eu não posso levar você. Não tem infra. A bolsa não dá”

A bolsa é de um instituto de pesquisa que a mãe, antropóloga, acaba de conseguir. A viagem é para a Itália. Mari ficará em Brodowski, interior de São Paulo, com um pai desconhecido. Nova escola e novos colegas. Nova cidade. Nova vida.

Como uma típica adolescente, o tempo é só presente. As dificuldades não apontam um fim, muito menos, feliz. Desde o primeiro instante com o pai que ela nunca conviveu, Mari observa detalhes, conclui o que pode e se empenha em uma colcha de retalhos de porquês: a razão dos pais terem um dia se apaixonado, gerado uma filha e viverem separados há tantos anos.

Aos poucos, a menina vai tentando entender quem é aquele homem. Conhecê-lo para conhecer mais a si mesma, como se desvendasse um enigma. Da arrumação do quarto, a menina finca seu lugar naquela casa. Até que…

Opa, tem um caderno aqui atravancando no fundo. Capa dura. Cadê aquele pano? Pronto, agora está limpo. Caderno de Clara. Clara, mãe do meu pai? Deve ser… Está todo escrito à mão. Folheio um pouco até perceber que é um caderno de histórias. Estou mesmo cansada, vou parar e dar uma olhada. Tem uns versos também, logo no começo: Conde Daros. O que será? Vou ler.

Ah, pronto. É aí que você tem certeza que tudo que se revelou “típico” de um livro dito como “infantojuvenil” é só pretexto. O que a escritora Susana Ventura quer mesmo é nos levar a uma viagem no tempo. No tempo em que as histórias nos fascinam, nos faz ler com a alma e o coração. Ora, mas este tempo não seria todo ele, o de sempre? O que importa é que está feito. Está feito o convite à leitura! A outras e outras. Como se Susana nos soprasse aos ouvidos: “vem”.

Assim que Mari encontra o caderno, o projeto gráfico do livro se transforma: temos uma página pautada e, nas linhas, uma letra cursiva. Um poema português segue narrando um conto. Somos, então, dois leitores.

História estranha aquela do Conde Daros. Dei uma olhada na internet e descobri que é bem antiga, foi escrita em Portugal no século XIX. Mas era muito mais velha e aparece também no Nordeste do Brasil. Achei um vídeo de Ariano Suassuna no Youtube contando a história quase do jeito que a Clara colocou no caderno.

É assim que sentimos vontade de não mais largar as mãos de Mari nesta viagem. Com ela, nos envolvemos num tecido de descobertas literárias que costura as revelações da menina sobre sua própria história de vida. O caderno da avó parece encontrar a menina de maneira aleatória: mas sabemos que nenhum tipo de literatura nos chega à toa. Não seria diferente com Mari.

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As belas ilustrações de Carla Irusta aparecem em menor quantidade, condizendo com uma leitura com mais texto-palavra do que texto-imagem. Ela consegue, assim como as costuras com as imagens poéticas do caderno, criar ambientes e referências acolhedoras, assentando o conforto da leitura – ou aventura – vivida.

Como nós, a menina não rejeita origem nem forma literária.

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Tem história indígena, conto popular argentino, poema. Reis, rainhas, princesas, animais, amor, traição, esperança, lealdade. Um espaço com obras de Cândido Portinari compõe um dos cenários da história e nos acolhe em conhecimento e sentidos. Vemos Mari estabelecer com a avó uma relação intensa de vida, mesmo que seja após sua morte. Vemos um pai que vai tomando novos contornos de afeto para a menina. Vemos nós conhecendo tramas e personagens marcantes, nos envolvendo com versões de histórias já conhecidas, degustando as interpretações de Mari. É assistir aos efeitos da boa literatura na vida de alguém. E, quando menos percebemos, somos nós a nos entregar ao poder (destas) das boas histórias.

O Caderno da Avó Clara (Ed. Sesi-SP)

Textos de Susana Ventura

Ilustrações de Carla Irustra

2016

BICHOLÓGICO, bobices e brincadeiras

 

A primeira coisa que posso falar sobre o livro Bichológico, da artista gaúcha Paula Taitelbaum e lançado pela Editora Piu, é urgente: ler antes de dormir não é recomendado, sob o risco de espantar o sono para longe, bem longe.

Aconteceu comigo e Clarice, minha filha de 4 anos, ontem. O livro já vive na minha casa desde o ano passado, mas foi ontem que ele encontrou a Clarice. Comecei a ler. A primeira página narrativa tem uma círculo amarelo. Ao lado, o início da história:

 

Era uma vez um gato chinês.

 

Em volta desta segunda página, recortes de papel em vários formatos e cores espalhados. Virando a página, o tal gato aparece:

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Na página que forma a dupla, a outra:

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Na terceira dupla que se segue, de um lado vemos o gato com recortes, do outro, vemos os recortes faltantes e a frase:

 

Era uma vez um gato chinês vampiro

Com bigodes longos como um longo suspiro

E sobrancelhas vermelhas de tanto dar espirro.

 

Virando a página pela quarta vez, vemos o gato com mais detalhes à esquerda e, à direita, menos papéis e:

 

Era uma vez um gato chinês caipira

Com um nariz que mais parecia alvo de mira

E franja pontuda cor de safira.

 

E segue:

 

Era uma vez um gato chinês metaleiro

Com suíças iguais às de um roqueiro

E um charmoso chapéu de cozinheiro.

Era uma vez um gato chinês.

Quer que eu desmanche e conte outra vez?

 

E lá fui chacoalhar o livro…

Para quê? Clarice começou a gritar! Pensam que eu contei o livro todo? Que nada!

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Tudo recomeça mais algumas vezes e formando novos animais bem diferentes e engraçados (como este macaco acima). As rimas, o estranhamento das ilustrações, as palavras que ela não entende o significado como “bisonho”, “marquês” e “olheiras” e, claro, a situação repetitiva de entender o bicho e depois ver ele se desmanchar e formar outro faziam Clarice berrar a cada virada! A menina acelerou a toda com tanto divertimento e com a cadência que eu firmava na leitura. Foi uma delícia e mostra que a projeto do livro de Paula cumpre seu papel, deixando uma vontade de repetir no dia seguinte depois, claro, de finalmente a noite de sono começar!

No final, um dicionário seleciona palavras para os leitores mais velhos tirarem as dúvidas. Mas, sem dúvida, o compasso provocado pelo Bichológico chega completo, principalmente sob a leitura em voz alta.

 

Bichológico (Ed. Piu)

Textos e ilustrações de Paula Taitelbaum

2016

8 RAZÕES PARA NÃO PERDER OS BEATBUGS

 

A animação de produção da Netflix inspirada nos Beatles está na segunda temporada e faz a melhor mistura possível de INSETOS, BEATLES E (boas) MEMÓRIAS

Já adulta, dando valor à memória de infância, uma vez comentei com meu irmão: por que será que o que eu mais me lembro de Beatles na infância é o álbum Abbey Road? E ele respondeu rápido: porque por muito tempo este era o único LP que a gente tinha em casa.

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Hoje está tudo bem diferente. Naquela época, meu irmão Jonas ia escutar os outros discos nas casas dos amigos ou se embrenhava pelas coleções e raridades do fã-clube Revolution, do superfã dos Beatles, o Malagoli. Voltava para casa com fitas K-7 que mais pareciam tesouros, cheias de gravações piratas, tudo datilografado na capinha branca. Os outros discos foram chegando e eu fui crescendo para entender o que aquilo ali significava, ao mesmo tempo em que ia criando certa independência para mexer nesses e em outros LPs: a fabulosa arte de colocar um disco na vitrola e manusear a agulha para ouvi-lo.

É, hoje está bem diferente. Temos todos os Cds dos Beatles disponíveis em várias plataformas. As “gravações piratas” estão todas em Cds oficiais. Minha filha Clarice, aos 4 anos e meio, tem Beatles na sua lista de canções criadas no celular do pai, compartilhadas ao celular da mãe, via Spotify. Estão ali, ao lado da Palavra Cantada, dos forrós com produção de Zé Renato, a trilha de Os Saltimbancos, Better When I’m Dancing (de Megha Trainor, a canção principal de Snoopy & Charlie Brown – Peanuts O Filme), UpTown Funk com Bruno Mars, Sugar e outras do Maroon 5…

Ela ouve Beatles desde antes de nascer, uma vez que já fazia parte da vida da família toda. Mas a primeira canção que ela pediu para “ouvir de novo” foi “Blackbird”, “a música do passarinho”, dizia ela, acredito que com pouco mais de 2 anos. Pouco tempo depois ela encanou em “Yellow Submarine” (ou “sambaurine”, como ela ainda diz) e “Hello Goodbye”, ambas parte do repertório de educação musical da escola. Tempos depois, uma viagem à praia foi regada a muito “Hey Bulldog”, e por aí foi…

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… e foi até quando a Neftflix lançou a série de animação BeatBugs, uma parceria Austrália-Canadá, criada pelo australiano Josh Wakely. A turma de amigos-insetos que vive aventuras – e algumas desventuras inclusive – tomou conta do repertório da Clarice, tanto no que diz respeito ao vocabulário, argumentos para situações de conflitos do dia-a-dia, brincadeiras e diversas ações entre amigos, quanto, claro, às canções dos 4 garotos de Liverpool.

Aqui vão meus 8 motivos para vocês assistir aos Beatbugs!

  1. A cada episódio, uma música diferente

O desenho atende a dois tipos de espectadores: o fã dos Beatles – que quer ter contato com tudo que aparece a partir das música da banda-mais-importante-do-planeta -, e também daquele que não conhece bem o repertório (como são 2 canções por episódio, ao todo temos até então 52 músicas disponíveis!).

  1. Personagens fortes e em equilíbrio para a questão “educativa” das tramas

Os cinco personagens principais – há muitos outros que encontram os protagonistas ao longo das temporadas – Jay, Kumi, Crick, Walter e Buzz são especiais, com potências em suas diferenças, fáceis de a criança se identificar e com conflitos e virtudes. O besouro Jay faz o garoto destemido sempre pronto para a aventura; a joaninha Kumi é a menina que mistura prudência e espírito fraternal com uma imaginação inspiradora; o grilo Crick é o inventor que, mesmo sendo um pouco inseguro, está sempre pronto para encontrar soluções; a lesma Walter interpreta o dramático do grupo mas sempre o mais amoroso e, por fim, a mosquinha Buzz é a pequenininha da turma, que arranca as risadas do espectador com suas reações cheias de ingenuidade. Todos se ajudam e gostam, como uma boa turma de crianças pode ser na TV, mas também se estranham, se magoam e erram… como uma boa turma de crianças PODERIA ser na TV.

  1. Arranjos criativos e respeitosos

Um pânico de fã dos Beatles é como as canções possam ser apresentadas. Eu já abominei alguns Cds para crianças que diminuíam a potência musical das músicas em nome de ser “mais simples pois é voltado para bebês”. Aqui não: os arranjos são belíssimos – a abertura pertence a All You Need Is Love e há uma vinheta que entra vez ou outra no desenho, de alguns segundos, com um vocal emocionante! – e com participações de grandes nomes do pop e rock, como Eddie Vedder (em Magical Mystery Tour), Pink (em Lucy in The Sky With Diamonds), Chris Cornell (em Drive My Car) e Rod Stewart (em Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band)!

Confira um trecho:

  1. Roteiro de qualidade

Quem é fã de Beatles (ou de qualquer grande ícone cultural) sempre teme que o motivo se sobreponha à excelência do que sai do, digamos, licenciamento. E a visão que algumas pessoas têm de infância também sempre pode resultar em um enredo empobrecido, com situações politicamente corretas ou tolas, como ocorre em tantos desenhos voltados para as crianças. Mas os Beatbugs esbanjam qualidade técnica e de histórias, propondo ao espectador boas reflexões, muita diversão e entretenimento de qualidade.

  1. Zelo na interpretação da canção e da história narrada

Até pelo motivo citado acima, o desafio dos produtores é gigantesco na escolha das canções. Isso porque se eu estou dizendo aqui que cada episódio traz uma música é justamente porque é a canção que influencia a história. Por exemplo: o primeiro episódio chama-se Help e a canção é interpretada pelo pequeno inseto Jay quando ele fica preso em uma garrafa de vidro esquecida no jardim. Em Drive My Car, a turma cruza o caminho com um carrinho de controle-remoto que eles não sabem quem o controla. Sim, os dois seriam um tanto literais à letra, mas há muito espaço também para a subjetividade, como em Lucy In The Sky With Diamonds que trata da capacidade de sonhar ou em Penny Lane, em que Crick se sente com pouca atenção do grupo e os amigos decidem criar um lugar para homenageá-lo.

Confira trecho de Lucy:

 

  1. Repertório além dos hits

Se você está pensando em encontrar só os grandes hits dos Beatles, fique feliz, eles estarão lá! Tem estes que eu já citei, tem Come Together, tem Blackbird, tem Strawberry Fields Forever, tem Ticket to Ride! Mas há surpresas incríveis que, talvez, as crianças viessem a conhecer depois, os “lados B” como Doctor Robert, Why Don’t We Do It In The Road?, I Call Your Name (um dos meus arranjos preferidos!) e And Your Bird Can Sing! É demais ver essa meninada cantando isso na sala, acredite!

  1. “Ecologia” sem ser chato

Se tem um tema que as pessoas adoram atazanar as crianças é o “cuidar do planeta”. Meu mau humor é porque, na maior parte das vezes, o que se produz para inspirar as crianças a ter uma relação sustentável com o mundo é sempre de uma chatice sem fim. Não à toa, os pequenos crescem e tudo se esvai. Os Beatbugs, claro, têm esta preocupação e colocam na perspectiva dos insetos – daquele que é menor, do desprezado, etc – a complexa relação com os humanos, que aparecem algumas vezes nos desenhos e que são o grande perigo para os pequenos bichos. No entanto, a menina que mora na casa sempre deixa um gostinho de fantasia na história, nos permitindo a dúvida de se ela sabe ou não o mundo de aventuras que existe tão perto de onde mora.

  1. Só aqui, no Brasil, você ouve a Buzz e seu “INCRÍIIIIIIIIIIIVEL!”

Os episódios, claro, têm uma ótima dublagem em português. As canções, não: tudo no original, sem perder a beleza de da oportunidade de aprender um idioma além do nosso. Mas por mais que o original tenha criado o “Awesome” como bordão da pequena Buzz, é só na dublagem brasileira que ela ganhou o INCRÍIIIIIIIVEL, na voz de Flora Paulita. Já virou mania na minha família toda!

Ps para o futuro: Josh Wakely tem, além dos Beatles, direitos para a TV também das canções da Motown e Bob Dylan. Vamos torcer para que venham mais novidades por aí?

Bastidores e entrevistas:

Trailer oficial

 

Beatbugs, de Josh Wakely

Série exclusiva Netflix

2016

SING vale demais a ida ao cinema! 

Música. Animais. Obstáculos para o sucesso. Superação. Diversão. Parece uma receita de ingredientes comuns, mas Sing Quem Canta Seus Males Espanta é a delícia de história que você vai querer ver com as crianças! Dos estúdios da Universal – com direito a insubstituível introdução dos Minions e seu “lá lá lá” -, o enredo é criativo, dinâmico, engraçado, emocionante e com uma trilha musical especial pra quem se diverte no repertório diverso, a la The Voices da vida.


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Tudo começa com um coala herdeiro de um tradicional teatro decadente. Mal administrador, vai perdendo tudo que conquistou com o pai, em shows sem público. Até que ele tem uma ideia de promover um concurso de talentos oferencendo dinheiro e público.

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Claro que muita coisa dá errado, mas, uma turma de amigos bem improváveis se forma, com interpretações inesquecíveis. O trailer já parecia divertido, mas o filme me surpreendeu! Os personagens são fortes e muito diferentes: tem uma dona de casa frustada, uma menina extremamente tímida e até um adorável jovem que tenta um destino diferente de uma família de ladrões. E todos são animais!

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Os detalhes das caracterizações dão vontade de assistir várias e várias vezes!

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Nas cenas e referências ao público adulto – marca registrada das animações atuais de grande bilheteria – não há piadas de gosto duvidoso ou humilhantes. Tudo vem na medida para ser engraçado, sem constrangimentos e sem ser politicamente correto.
Os primeiros minutos são incríveis: a forma que o diretor Garth Jennings apresenta os protagonistas (temos vários, não apenas um!), conquista a plateia e lança à curiosidade pelo desenrolar da história. Depois, não sentimos o tempo passar. E só queremos que a cantoria – de Frank Sinatra a Stevie Wonder, costurado a Golden Slumbers dos Beatles – não acabe mais!

SEGUE TRAILER (tem outros)

 

POUCO É MUITO

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Por encontros da vida, alguns livros lançados eu já tenho algumas informações sobre eles um pouco antes de chegar às livrarias. Eu sabia um pouquinho sobre Pouco É Muito, novo livro da escritora Ana Lasevicius, desta vez em parceria com Ionit Zilberman, uma das ilustradoras mais presentes no livro ilustrado brasileiro. A novidade vem embalada pela Editora Nós e o que eu sabia era o seguinte: narra um conto de tradição judaica e é dividido em duas partes.

 

Dividido em duas partes? Sim, uma parte se folheia para a esquerda, outra parte para a direita.

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Lembrei de uma coleção de livros da Eva Furnari, dos anos 1980, chamada Ping Póing com títulos como Quem Cochicha, o Rabo Espicha ou Quem Embaralha, Se Atrapalha, que eu adoro, mas que saiu de catálogo.

Mas Pouco É Muito é um pouco disso e muito, muito mais. Primeiro, o livro tem um doce formato de 16 cm X 12cm e a delicadeza continua: pegamos na mão duas brochuras interligadas pela capa e guardas, em que, à primeira abertura, símbolos desenhados nos convidam a continuar. Abrindo do lado esquerdo, biografia dos autores, do lado direito, ficha catalográfica… espere, começamos o livro pelo final? Não se sabe. É ao folheá-lo que notamos que ele pode ser lido ao mesmo tempo com os dois lados, abrindo cada um ao mesmo tempo.

Ou…

Abrindo primeiro texto e depois ilustração. Ou vice-versa.

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Fui começando a história, quando a edição chamou a atenção da minha filha Clarice, 4 anos, que brincava na sala. “Quero ver, mãe”.

Sentamos no sofá, eu sem saber se ela poderia compreender a história toda: eu já sabia que o conto narra a história de uma vida de um menino e seu avô.

Tudo começa com um cobertorzinho que o avô alfaiate faz para o neto e presenteia-o ao nascimento. O cobertor, assim como a vida, se transforma e muda: primeiro casaco, depois colete e por aí vai. Diversos bordões surgem na história, entre eles, do avô: “nem tudo está perdido, pois com pouco se faz muito…”. E assim vamos vendo o avô refazer o uso do cobertor até que, no final, uma surpresa aguarda menino e o leitor.

Comecei a folhear com Clarice os dois lados. Ela decidiu assumir o lado direito, o das ilustrações, e como narrando a história junto comigo. Foi uma delícia. Mesmo em um projeto gráfico com tipo e fontes tradicionais de livro para leitores já fluentes, o texto de Ana Lasevicius é ritmado em tom de fácil compreensão para os pequenos, com as repetições já prazerosamente antecipadas pelo leitor. O jogo dos bordões provoca uma ansiedade para o final. As ilustrações, no entanto, são um contraponto: têm uma leveza da passagem do tempo bem degustada, como se estivéssemos folheando com vagar um álbum de fotografias de alguém desde os seus primeiros dias. O tecido do cobertor se destaca aos riscos em nanquim e o pequeno leitor vai se desapegando dos formatos das roupas, no mesmo exercício que faz o personagem principal.

Já pelas tantas, folheávamos no mesmo ritmo, como uma metáfora do próprio ato de ler para crianças: o encontro a dois, a história compartilhada e vivida ao mesmo tempo, cada um com sua leitura diferente.

Conforme o cobertor se transformava em outros recortes, e atenta ao que eu lia em palavras, Clarice foi notando a mensagem do conto tradicional: a possibilidade de transformação e a garantia de que, mesmo diante dos estragos não resistentes ao tempo, sempre podemos ficar com o essencial.

No final, uma conclusão. “Clarice, o que você mais gostou do livro?”

“Eu adorei os dois lados. Tudo”.

E um bom livro ilustrado é para gostar de partes ou do todo? Nele cada pouco é sempre muito, não?

 

Pouco É Muito (Editora Nós)

De Ana Lasevicius e Ionit Zilberman

2016

MONSTROS DO CINEMA (para crianças e adultos de todas as idades)

 

Livro ilustrado retoma ícones da monstruosidade dos cinemas de forma divertida com informação e muita participação do leitor. Confira entrevistas com os autores e uma receita maravilhosa de, juro, DEDOS DE ZUMBI

Quando fiquei sabendo do lançamento do livro Monstros do Cinema (Sesi-SP Editora), de Augusto Massi e Daniel Kondo eu, claro, achei que poderia ser algo bem divertido. Fiquei na expectativa de logo encontrá-lo. Algum tempo depois, o Daniel me procurou para saber se eu já havia lido. A minha resposta era negativa e fui tratar de apressar minha leitura. Demorou um pouco mais – um típico suspense de filme destes filmes que nos tiram o fôlego – e eis que finalmente eu estava com o livro na mão. Estava jantando com a Clarice, horário que algumas vezes leio livro para elas, quando ela viu o Monstros na mesa. Pediu para olhar e eu expliquei que eram monstros de filmes, mostrei qual eu gostava mais e tal. “Monstros, mamãe? E isso é o que?”, apontava ela para as letras. “Os nomes dos monstros. Estes são os conhecidos mas, veja, você criar novos. Está com medo?”.

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Pronto. Ela arrancou o livro das minhas mãos e começou a folhear sozinha. Primeiro pediu que eu lesse o nome de todos, com a formação “correta”. Depois começou a misturar as páginas. Sim, misturar as páginas. O livro está cortado em três partes e você pode misturar cabeça de um, tronco de outro e pernas de outro e, o mais legal: as sílabas que montam o nome do monstro também podem se misturar, criando novos nomes.

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Diante daquela monstruosidade toda, em alguns minutos Clarice enlouqueceu e começou a gritar. Ela lia, gritando. Claro: como seria a leitura de um livro como este se não assim??

Fiz uma foto e mandei para o Daniel. E foi assim que esse post começou.

Bem, o livro circulou aqui na família toda: tios e primas se divertiram cada um por seu motivo, ou reconhecendo o monstro preferido ou criando um novo. Por isso o “para toda a família” na capa da edição. Para os mais velhos, no final, uma incrível linha do tempo nos dá a informação precisa sobre cinema, história, literatura e muitas curiosidades. Mas o que não termina mesmo é a diversão!

Quer ver mais: clique aqui e Buuuuuu!

Conversei com os autores via email e Facebook (Daniel mora no Uruguai e Massi em São Paulo!), que têm muito a dizer sobre os bastidores do livro (levou quase 4 anos da ideia ao produto final!) e sobre o papel destes monstros em nossas vidas. E, para completar este dia 31 de outubro de Haloween, o Daniel Kondo nos forneceu uma receita criada especialmente para ele: DEDOS DE ZUMBI! Preparem-se!

Afinal, é respirar fundo e fazer o que o poema de abertura sugere:

Cabeça, tronco, membros

Misture bons e maus elementos

Monte teu próprio monstrengo

Liberte os monstros aí dentro

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DANIEL KONDO, O SUPERFÃ DE FRAKENSTEIN

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Você pode contar para o Esconderijos como o livro começou? 

DANIEL KONDO: O livro começou de uma ideia de juntar dois temas que foram muito presentes na minha infância: livros interativos e o tema monstros. O livro-objeto –que eu lia-brincava na na minha infância– em que você juntava partes das imagens e recombinava aleatoriamente formando nova figuras. E os monstros dos filmes de terror que passavam tarde da noite, normalmente em horários impróprios para crianças estarem acordadas. Esta foi a gênese do livro: de alguma maneira preservar este imaginário que me acompanhou no começo da minha vida de leitor.

Quanto tempo vocês levaram para produzi-lo? Quais foram os maiores desafios: editar os monstros ou a proposta de projeto gráfico?

O livro foi concebido inicialmente como um jogo lúdico de combinar as “Criaturas” ( nome original do “Monstros do Cinema”), ou seja, estava “abrigado” em um formato de livro, mas ainda faltava uma elaboração editorial, como por exemplo o posicionamento para um público (ainda que para monstrinhos de 0 a 99 anos), e suas potenciais leituras e possibilidades pedagógicas. Essa elaboração editorial somente poderia ser feita pelo editor mais monstruoso com quem já trabalhei: Augusto Massi. E que tenho a sorte de ser amigo. Convite feito, levamos quase quatro anos entre a primeira conversa e o resultado final. Neste processo o livro teve sete versões. Recriamos o “monstruário” inúmeras vezes, alterando proporção das figuras, texturas, paleta de cores e o imaginário de cada um dos monstros. Mas acredito que o maior desafio tenha sido conceber editorialmente um produto que reunisse ao mesmo tempo o livro objeto e o livro de conteúdo. O primeiro pela proposta lúdica, e o segundo pelo Augusto Massi ter realizado toda a pesquisa de filmes e origem da cada um dos monstros e relacioná-los em uma linha do tempo que posiciona os Monstros nos principais eventos da história.

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Deu muito medo na hora de reviver monstro a monstro, assim, um seguido do outro?

Como bem explica o Massi, os Monstros são uma representação do medo, é o medo do desconhecido, agora já domesticado. Ter pelos ou dentes ponteagudos, apesar de ser apavorante, é mais palpável que um medo que não tem forma.

Quando você era criança, qual monstro você gostava (ou odiava ou temia) mais?

Acredito que o Frankenstein seja meu monstro preferido. Fez parte da minha infância brincar com kits de laboratório, experimentos com fogo, eletricidade e elementos químicos. Quando eu assisti ao filme Frankenstein,  tive uma identificação imediata, aquele universo de cientistas animando tecidos mortos para recriar a vida. A criatura de Frankenstein era um monstro que padecia de todo o drama humano, com questionamentos sobre a imortalidade, o amor, a rejeição e a redenção. Na minha vida adulta, quando tive a oportunidade de ler o conto escrito por Mary Shelley, a alquimia se completou. Frankenstein, na minha opinião, é o mais humano dos monstros.

Nas suas redes sociais você tem postado muitos leitores com os livros: tem alguma história especial para contar de retorno do livro?

Foi muito curioso isto: vários amigos começaram a enviar fotos dos filhos lendo o livro e reagindo de modo espontâneo, fazendo cara de susto ou fazendo cara de monstro. Quem começou a brincadeira foi a Clarice, filha de uma amiga querida (nota da Cris: é esta mesma Clarice que estão pensando, rsrs). Essa ação em rede social disparou dezenas de outras, todos interagindo com o livro, mostrando as combinações possíveis e impossíveis envolvendo as sílabas dos monstros e as respectivas cabeças, troncos e membros. Outras pessoas começaram a combinar o poema da abertura com as sílabas dos monstros. Uma festa para quem gosta de análise combinatória e um verdadeiro laboratório de monstruosidades. Outra coisa interessante é que o livro tem um aplicativo gratuito desenvolvido pelo SESI que pode ser baixado na APP Store. A brincadeira se amplia da realidade palpável (livro) para a realidade virtual. Diversão garantida ou seu dinheiro de volta!

Conta um pouco sobre a sua história e sua relação com o livro ilustrado! 

Sempre fui questionador no meu trabalho, tanto que, não tenho um estilo definido, um traço particular. Gosto de interpretar os textos, de ser múltiplo na leitura e na abordagem. Isso me permitiu transitar por diversos gêneros literários, do infantil ao adulto. Bruno Munari, foi quem mais me influenciou nesse processo, de fazer uma leitura tridimensional o objeto livro, que acaba impactando sobre a experiência da leitura.

Iniciei minha carreira na Cia das Letrinhas, quando era comandada pela Lilia Schwarcz, a mais brilhante de todas as editoras com quem trabalhei até hoje. Era uma portinha em que ela recepcionava os autores e aspirantes, como se todo o tempo do mundo estivesse à disposição daqueles encontros.

O primeiro livro que ilustrei foi “Lá vem história”, com texto de Heloisa Prieto, hoje já na 40ª edição. Um sucesso retumbante de vendas há quase vinte anos. Um trabalho que tenho muito carinho por ter sido uma estreia com o pé direito! (e isso que sou canhoto)

Depois, vieram outros livros com grandes nomes da literatura infantil, como José Paulo Paes, Flavio de Souza, Marcelo Duarte, Leo Cunha, entre outros. Fui finalista do Jabuti em 1997 com o livro ‘Domingão Joia’, Cia. das Letrinhas, texto de Flavio de Souza. Outra vez finalista em 2009, na categoria ilustração juvenil com ‘Surfando na Marquise’, texto de Paulo Bloise (Cosac Naify, 2009), e com ‘Minhas Contas’, texto de Luiz Antonio (Cosac Naify, 2009).

Em 2010 recebi o prêmio literário New Horizons em Bologna, com o livro TCHIBUM!, texto do nadador Gustavo Borges (Cosac Naify, 2010).

Em 2012, com o livro PSSSSIU!, com texto de Silvana Tavano, (Callis, 2013), vencedor do Prêmio literário João de Barro, um dos mais importantes da Literatura Infantil no Brasil. Neste mesmo ano, foi finalista do Jabuti na categoria Livro Infantil.

O autor que mais me influenciou sobre minha relação com o livro ilustrado foi o crítico literário, professor e poeta Augusto Massi, que tenho a sorte de ser amigo. Aprendi muito sobre o processo de leitura e interpetação do livro, a história da literatura infantil, e o diálogo perfeito do texto com a imagem. Considero que nosso trabalho em parceria (Massi & Kondo Labs.) ainda vai dar muito o que falar, desenhar, escrever e sentir.

Com o Monstros do Cinema, acredito que avançamos um pouco nesse sentido. Boa leitura, seus monstrinhos!

 

augustomassiAUGUSTO MASSI, O MÃOS DE TESOURA

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Como a ideia do livro lhe pareceu, assim em um primeiro momento? O projeto gráfico foi um desafio ou um atrativo irrecusável?

AUGUSTO MASSI: Tudo começou com um convite do Daniel Kondo que já havia publicado livros comigo no período em que dirigi a Cosac Naify [2001-2011]. Em outubro de 2013, ele me mostrou o boneco de um livro no qual vinha trabalhando: Criaturas. Disse que gostaria muito de ouvir a minha opinião. Ele gostou tanto de algumas sugestões que acabou generosamente me oferecendo parceria. De lá pra cá, trabalhamos num regime de total co-autoria.

Depois de sete versões, chegamos ao formato e ao título final: Monstros do cinema. Mas, verdade seja dita, o Daniel tirou da cartola todo o esqueleto conceitual: a divisão em três partes, os monstros da sétima arte, etc. Eu tratei de potencializar a ideia original: criei o poema de abertura, realizei a pesquisa histórica, etc. Sempre em diálogo com o projeto gráfico do Daniel. Tudo sob o signo do três: três partes do corpo [cabeça, tronco, membros]. três gerações de leitores [avós, pais, filhos], três formatos de livro [livro tradicional, livro brinquedo, aplicativo]. etc.

Nunca é demais registrar: Kondo foi um amigo e um interlocutor incansável. Não estou jogando confete. Ele possui uma capacidade monstruosa de retrabalhar e reinventar cada ilustração. Os desenhos ficaram um espanto.

Estamos na era da segmentação e dos extremos, quero dizer, na era do “você gosta disso ou daquilo”. Como você une a paixão por literatura e cinema? O que as duas artes têm em comum?

Como você pode ver, na própria “linha do tempo” que figura no livro, a literatura alimentou boa parte do imaginário do cinema nos seus primeiros cinquenta anos de história: Frankenstein, Corcunda de Notre Dame, Drácula, etc. Por outro lado, as adaptações cinematográficas ampliaram radicalmente o público da literatura. Ambas as artes estão umbilicalmente ligadas pelo mito. E, de certo modo, minha atividade de professor de literatura me possibilita transitar e estabelecer relações entre as duas artes. Todo grande poema, conto ou romance nos faz “ver” a realidade. A força da palavra se traduz em impacto visual, nos transporta para mundos desconhecidos, nos permite revisitar o passado e, simultaneamente, imaginar o futuro.

Você acredita que a ficção nos é fundamental? Então qual o papel dos monstros em nossas vidas?

A ficção está por detrás de tudo. As descobertas científicas, o discurso religioso, a filosofia, a antropologia, a psicanálise só existem a partir de uma lógica narrativa. Todos os grandes pensadores escrevem bem: Platão, Montaigne, Darwin, Marx, Freud, Lévi-Strauss, etc. Tudo no mundo se organiza a partir de narrativas. A própria vida cotidiana também precisa de pequenas narrativas diárias: boato, piada, diário, reportagem, blog.

Os monstros desempenham vários papéis em nossas vidas. No entanto, o principal deles talvez seja o de domesticar o medo. Tudo que o homem teme está relacionado ao território do desconhecido, do incompreensível, do estranhamento. Por isso, o medo precisa, antes de mais nada, ser descrito, adquirir uma forma, assumir uma figura. Isso corre desde o tempo das cavernas quando o homem pintava a caçada aos bisontes, está presente nos primeiros relatos das grandes navegações repleta de monstros marinhos ou, até hoje, nos relatos sobre seres vindos do espaço. É a forma que o homem encontrou para enfrentar, estudar, assimilar, superar o medo. É desse ponto de vista que Monstros do cinema procura mobilizar tanto a criança quanto o adulto. Ambos podem rir, brincar e revisitar os seus medos mais infantis.

Você tem algum monstro preferido?

Uma das coisas mais fascinantes que pude comprovar escrevendo esse livro é que, no geral, as pessoas têm uma necessidade compulsiva de elaborar listas dos melhores filmes de monstros. Existem centenas de sites especializados, discussões intermináveis, debates acalorados sobre as tais listas. Talvez isso se deva justamente à dificuldade de eleger um monstro preferido. Nossos medos são infinitos. E ninguém em sã consciência pode eleger o seu medo predileto. O medo não gera uma sensação propriamente agradável.

Arrisco dizer que para mim um dos monstros mais intrigante é o Hannibal. Seria muito complicado inclui-lo num livro dirigido às crianças. No entanto, eu e o Daniel Kondo já temos em vista um livro de monstros voltado para o leitor adolescente, quando já é possível lidar com uma ideia bastante incômoda e desconfortável: dentre todos os seres do planeta, o homem é aquele que revela a face mais humana e também a mais monstruosa.

Quando o livro foi ficando pronto… deu muito medo na hora de reviver monstro a monstro, assim, um seguido do outro?

Não, pelo contrário, ao longo do processo, que durou três anos, fui gradualmente perdendo o medo. A experiência de revisitar os monstros do cinema me permitiu reler vários romances e ensaios históricos, ver e rever um bocado de filmes e até desenhos animados, ao final, fiquei tentado a escrever um longo ensaio a respeito do tema. É interessante como os monstros nos permitem criar pontes e conexões para pensar os principais debates contemporâneos, por exemplo, em torno do feminismo [Malévola], com relação a gravíssima situação dos refugiados na Europa [Zumbi, A volta dos mortos-vivos], sobre a corrida espacial e a colonização do espaço [Aliens, E.T, etc.]. É visível como o cinema pautou e ainda pauta ideologicamente as grandes discussões. O raciocínio é extensivo a Netflix, embora pertencendo a um gênero recente, as séries seguem na mesma direção: moldam o imaginário político e cultural de toda uma geração.

E a ideia do Daniel, das páginas cortadas, faz com que seu trabalho de identificar e contar a história dos monstros fique como um ponto de partida, certo? Tem leitor inventando outros monstros a partir disso… Os pensadores sobre literatura falam sobre o livro “só terminar mesmo nas mãos do leitor”. Com Monstros do Cinema, isso é levado ao extremo, não?

Se prevalecer a lógica do criador e da criatura, do médico e do monstro, diria que um bom livro pode dar ao leitor a sensação de que, em última instância, ele também é o criador. Apesar da crescente valorização teórica em torno do papel do leitor, ainda sou daqueles que conferem certos privilégios ao autor. O leitor pode até inventar monstros mas, no fundo, sempre a partir da seleção, organização e sugestões do autor. Nenhum monstro imaginou criar um médico.

Dentro desta perspectiva, sempre costumava provocar o Daniel dizendo que meu papel no livro era ser uma espécie de “Massi, mãos de tesoura”. Em outras palavras: um escritor só deve viver numa ilha de edição. Mais que escrever, é importante saber cortar. Todo autor que se preza deve ser o melhor editor de si mesmo. É preciso sacrificar boas passagens, cortar belas imagens, limar excessos. Frente às tarefas do escritor, a função do leitor é bastante civilizada.

Você poderia contar um pouco de sua biografia ao Esconderijos?

Diria que a minha biografia é marcada por uma curiosidade infinita e diabólica. Mas, em tudo que faço, a poesia é o eixo central. Na condição de professor, crítico literário ou jornalista nunca privilegiei a profissão, sempre o projeto. Desde 1990, dou aulas de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, com ênfase na em nossos principais poetas modernos: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Luís Aranha, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Raul Bopp, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Dante Milano, etc. Sinto necessidade de contemplar a variedade, o panorama, a diferença.

Não me considero um editor no sentido profissional da palavra. De tempos em tempos, realizo intervenções pontuais. Com prazo de validade. Dentre as coisas que fiz, creio que vale a pena destacar a coleção de poesia brasileira contemporânea, Claro Enigma, que coordenei e editei pela Editora e Livraria Duas Cidades, entre 1988 e 1990 [publiquei poetas como Francisco Alvim, José Paulo Paes, Orides Fontela, Paulo Henriques Britto, Alberto Martins, etc], além de dirigir a revista de poesia Inimigo Rumor [juntamente com Carlito Azevedo, pela editora carioca 7Letras]. Depois, pela Editora 34, idealizei a coleção Espírito Crítico, voltada para obras clássicas da crítica literária brasileira e internacional, entre outros nomes poderia citar, Erich Auerbach, Walter Benjamin, T. W. Adorno, G. Lukács, Antonio Candido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci, etc. Num plano bem mais amplo, fui diretor editorial da Cosac Naify, entre 2001 e 2011, quando pude construir um catálogo de referência em diferentes áreas: arquitetura, moda, design, artes plásticas, literatura, antropologia, cinema, dança. Porém, gostaria de frisar que me encantei profundamente com a fotografia e, principalmente, com a literatura infantojuvenil, com a qual ainda penso em voltar a desenvolver projetos.

Por fim, no próximo ano, vou reunir num único volume meus três livros de poesia – Negativo [Companhia das Letras, 1991], A vida errada [7 Letras, 2001], Gabinete de Curiosidades [Luna Parque, 2016] – acrescido de um livro novo: Mal-entendido [7 Letras, 2017]. De resto, como não pretendo amolar ninguém, posso dizer resumidamente que perdi meu pai muito cedo, gosto de conversar com minha mãe, tenho muito carinho pelo meu irmão e pelas minhas duas irmãs. Vivo há quinze anos com a Paola Poma, companheira pra lá de inspiradora e, recentemente, ganhamos uma gatinha, chamada Zazie. Poesia em movimento. Espero ser um bom amigo dos meus amigos. Também espero ser um bom inimigo. Embora fique arrasado ao lembrar que maltratei algumas pessoas. Continuo matando muitos monstros dentro de mim. Paro por aqui.

Receita do chef Gonzalo Giusta para o Halloween

FOTO DO DANIEL. GENTE, PARA CRIANÇADA FICAR DOIDA NE? E QUE TAL HOJE À NOITE? NO LANCHE DE AMANHÃ?
FOTO DO DANIEL. GENTE, PARA CRIANÇADA FICAR DOIDA NE? E QUE TAL HOJE À NOITE? NO LANCHE DE AMANHÃ?

INGREDIENTES

  • Farinha de trigo branca_165 gr
  • Farinha integral fina_165 gr
  • Açúcar demerara_120 gr
  • Essência de baunilha_c/n
  • ovos_1 un
  • Amêndoas_100 gr
  • Manteiga fria_130 gr
  • geleia de morango_c/n

PREPARO

Coloque em uma tigela a farinha com o açúcar e a manteiga fria em cubos. Peneirar. Incorporar a essência de baunilha e ovo. Unir a massa até formar um bolo liso e homogêneo. Cortar a massa em pedaços pequenos e cilíndricos.

Corte no comprimento do dedo anular e pressione duas vezes a cada 1,5 cm para formar as “juntas”. Com a ajuda de uma faca para formar as dobras, colocar uma amêndoa na ponta para formar uma cavidade como se fossem “unhas”. Retire as amêndoas e leve ao forno a 170 ° C por 20 min. Deixe esfriar sobre uma gradinha. Preencha a cavidade com um pouco de geléia e coloque uma amêndoa em cada ponta do “dedo de zumbi”.

Divirta-se à vontade!

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MONSTROS DO CINEMA (ED. SESI-SP)

De Augusto Massi e Daniel Kondo

2016

TEATRO: FÓSFOROS, NUVENS E PASSARINHOS, HISTÓRIAS SOBRE INFÂNCIA E LIBERDADE

Espetáculo voltado para toda a família mexe com o espectador pela forma e conteúdo ao mostrar histórias de crianças com infâncias difíceis e ser encenado parte em espaço cultural, parte em parque público de São Paulo

Há algum tempo soube da grande novidade: A Casa Tombada (espaço onde trabalho, veja aqui) receberia seu primeiro espetáculo também voltado para crianças. E mais: parte dele seria encenado em um espaço vizinho, do outro lado da rua, o Parque da Água Branca, na região oeste de São Paulo.
Ainda em processo de criação, ninguém conseguia me explicar a empreitada a (meu) contento. Eu tentava visualizar, mas não compreendia como se daria tudo. Um dia o Chico (o ator, produtor, criador da companhia, e muito mais) me contou sobre o título: Fósforos, Nuvens e Passarinhos. Claro que um sorriso e um suspiro (dos profundos) nasceram em mim, na hora. Mas eu sabia. Eu sabia que o tema merecia um suspiro, dos bem profundos, sim. Afinal, fala de crianças e infâncias roubadas. Tem ferida social maior que esta?
Eis que chegou o dia e o Teatro da Travessia estreou seu espetáculo. Como eles explicam no programa, a peça mostra “histórias de crianças de diferentes cantos do mundo que, ao enfrentarem a realidade de suas vidas, podem ter seus sonhos roubados”. Mas e se essas histórias fossem narradas no dia em que a esperança de tempos melhores alcança seu auge, na véspera de Ano Novo?

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Dirigido por Simone Grande (educadora e criadora do grupo As Meninas do Conto que conta com Paulo Arcuri, do grupo, como assistente de direção), texto de criação coletiva e canções compostas por Heidi Monezzi, Lucélia Machiavelli e Tibério César (que também assina a direção musical), o espetáculo é baseado em três contos: “O Menino das Capas de Chuva”, de João Anzanello Carrascoza, “A Pequena Vendedora de Fósforos”, de Hans Christian Andersen, e um fato real: o “menino-passarinho”, aquele garoto que instalou moradia em uma árvore no bairro Higienópolis, em São Paulo, e causou surpresas e polêmicas.

FOTO DE YUMI SAKATE, DIRETORA DE ARTE DO ESPETÁCULO
FOTO DE YUMI SAKATE, DIRETORA DE ARTE DO ESPETÁCULO

Ele é itinerante e começa com um grupo pequeno de espectadores, dentro d’ A Casa Tombada, um lugar de arte, cultura e educação que, de fato, é uma casa tombada pelo patrimônio histórico. As tantas portas, salas e janelas ganham novos contornos e significados quando o grupo que assiste segue pelo ambiente conduzido por pessoas-nuvens-narradoras que costuram as três histórias de forma tão dinâmica quanto poética.

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O elenco (Bruno Cordeiro, Fernanda Stein, Francisco Wagner, Heidi Monezzi, Lucélia MachiavellI e Roberta Stein) se alterna nos personagens. De lá da Casa, o público é convidado a atravessar a rua, entrar no Parque e esperar que tudo continue. Emoções fortes os aguardam. As crianças não tiram os olhos (há uma recomendação para “a partir de 8 anos”, mas minha filha Clarice, de 4 anos, ficou bem… acredito que a partir de 5, 6 anos já aproveita bastante a experiência). Os adultos tentam segurar as lágrimas. Todos ficam envolvidos, com as emoções confusas enquanto percorrem grande parte do parque atrás da peça que, conforme ocupa o espaço público, vai tomando parte do domingo que já acontecia ali. No final, mais de 100 pessoas estão reunidas para perceber ali o que une as três histórias. Qual seria o sonho em comum das crianças ali retratadas? O grupo tem uma palavra: liberdade.

Conversei com Francisco Wagner, um dos idealizadores do Teatro da Travessia, que completa 10 anos. Confira aqui que lindeza acontece por ali:

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Bem, existe uma coisa linda que qualquer um pode já ler no programa da peça: o texto está como “criação coletiva”. Como é que isso se dá em um grupo?

Francisco Wagner: É lindo mesmo, querida. É uma experiência real de pertencimento, de coletivo, de ser ouvido. Quando as três histórias foram sendo improvisadas, todos estavam tão tomados pela beleza das histórias que no momento de sentar e transformar os contos e a reportagem de jornal em texto teatro foi lindo demais. Não foi fácil, preciso dizer. E talvez por isso a felicidade de ver o resultado (que está em constante mudança por causa da relação com o público) sejá enorme. O Teatro da Travessia sempre teve esse pensamento de trabalhar com várias mãos, todas que tivermos acesso. Acreditamos que para o trabalho que fazemos no grupo, que não tem um líder, um diretor que manda, etc, mas onde todos opinam, fazem e tem as responsabilidades no processo, escrever o texto juntos é fundamental. Faz parte de todo nosso processo até aqui nesses dez anos. Um dos nossos pontos de pesquisa é justamente a adaptação de textos não dramáticos, que não foram feitos para o teatro, em textos teatrais. E fazer isso com todos que estão na criação é muito rico. É um texto dito com muitas vozes. Tem coisa mais bonita?

Conta aqui pro Esconderijos a história dos 10 anos do Teatro da Travessia. Como vocês se encontraram, quais e como eram as três peças encenadas antes desta.

Nos encontramos em um núcleo de pesquisa do Grupo XIX de Teatro, lá na Vila Maria Zélia, lugar incrível. Isso foi no início de 2006. Nós quatro (Lígia Borges, Paulo Arcuri, Roberta Stein e eu) víamos no trabalho do outro algumas afinidades e começamos a conversar sobre a possibilidade de um grupo. A Lígia sempre dava carona até o metrô e aproveitávamos o tempo para colocar as ideias. Em meados de 2006 o grupo já estava formado, já nos apresentávamos como coletivo. Aí começamos a nos reunir semanalmente para pesquisar textos para o primeiro espetáculo. Sabíamos que queríamos trabalhar com adaptação de texto não dramático, pois era a referência do núcleo do XIX. Um dia a Lígia encontrou por acaso o livro Dias Raros do Carrascoza e levou para o grupo. Quando lemos o primeiro conto, todos começaram a chorar com tamanha beleza. Não tínhamos dúvida de que aquele era o material, mas precisávamos conversar com o autor, que ainda não conhecíamos. Mandamos e-mail e o João Anzanello Carrascoza respondeu, para nossa felicidade. No início de 2007 marcamos um café com ele no Centro Cultural São Paulo e pronto, a partir daquele dia nossos caminhos se encontraram e até hoje mantemos uma relação afetiva e de criação. Ele liberou os direitos autorais e assim começamos os ensaios. Chamamos outro parceiro de longa data, o querido Luiz Fernando Marques, o Lubi, para dirigir a peça. Ele topou. Foram 2 anos de ensaio, pois não tínhamos nenhum auxílio financeiro. Em 2008 Dias Raros estreou na Vila Maria Zélia (o Lubi é diretor do Grupo XIX), e foi lindo. Até hoje o espetáculo existe.
Em 2010 conseguimos o nosso primeiro edital público, o Bolsa FUNARTE de Residência em Artes Cênicas. Fomos desenvolver o segundo espetáculo do grupo na França, em Montpellier, onde ficamos 6 meses em 2011. Com direção de Philippe Goudard, estreamos lá na França o “Colóquio Internacional sobre o Amor”, que depois fez algumas apresentações no Brasil. Também dentro do projeto na França apresentamos Dias Raros traduzido para o francês. Foi uma experiência transformadora esse projeto.
Em 2014 começamos o processo de criação do terceiro espetáculo, em uma nova criação intercultural, agora com o Canadá, a parte francesa do país. Foi uma troca intensa entre o nosso grupo e a Cie. Singulier Pluriel, com direção de Julie Vincent. Também fomos para lá e ficamos dois meses. Apresentamos em casas de cultura e em residência artística em um teatro. O espetáculo “Conto sobre Mim” veio para o Brasil e fez temporada no Teatro Aliança Francesa.
E agora estamos com este espetáculo, o quarto do grupo e o primeiro para o público infantil. Ele só foi possível graças ao Prêmio Zé Renato de Teatro para a Cidade de São Paulo, que fomos contemplados no final do ano passado. E, também, graças a parceria com a Casa Tombada, dos queridos Giuliano Tierno e Angela Castelo Branco. Nossa trajetória, felizmente, é repleta de encontros, o que nos possibilitou estar firmes até hoje.

Como surgiu a ideia do espetáculo? O que nasceu primeiro: a ideia das três histórias ou o formato de ser na Casa e no Parque?

A ideia surgiu em 2014 quando tomamos contato com a notícia de jornal sobre o Menino-passarinho. Na verdade o embrião surgiu naquele momento. Guardamos a reportagem pois sabíamos que em algum momento ela seria usada. No final de 2015 surgiu a ideia de juntar a reportagem sobre o menino-passarinho com mais duas: A Pequena Vendedora de Fósforos, do Andersen, e um conto que seria escrito especialmente para o projeto pelo Carrascoza, o que gerou o conto “O Menino das Capas de Chuva”. Com a ideia das três histórias, e mais a vontade de fazer algo itinerante, começando na Casa Tombada e terminando no Parque da Água Branca, escrevemos o projeto no edital Prêmio Zé Renato. O projeto foi escrito para comemorar os dez anos do grupo, realizando a primeira criação para o público infantil e, também, verticalizando na nossa pesquisa com a utilização de espaço alternativo. Felizmente foi aprovado e conseguimos concretizar essas ideias.

Quais foram os principais desafios, claro, depois do prêmio e a verba para viabilizar a ideia?

O principal desafio foi, sem dúvida, a itinerância. Nunca tínhamos feito um espetáculo itinerante dentro do grupo. Nossa pesquisa consiste em trabalhar em espaços alternativos, mas a itinerância proposta pelo projeto era algo bem radical tendo em vista os outros espetáculos da companhia. Isso era um desafio grande, e, talvez por isso, a motivação gerada também foi enorme. Não desistimos em nenhum momento da ideia, e conseguimos concluí-la. Outro desafio, também dentro da itinerância, era como fazer essa itinerância com crianças. Sabíamos por algumas experiências de outros grupos que a própria itinerância com adultos já era complicada. Não tínhamos nenhuma referência de espetáculos itinerantes para o público infantil, ou seja, o desafio ficava ainda maior.

Com o espetáculo estreado houve mudanças? Esta dinâmica orgânica (não sei se é a palavra ideal), mas esta dinâmica de o espetáculo ir acontecendo junto a tantas outras ações da vida de um parque em dia de domingo, o que precisou ser mudado ou repensado?

Sim, muitas mudanças aconteceram. E ainda acontecem. São mudanças pequenas, nada muito grande no que se refere a estrutura do espetáculo, mas sim, as mudanças acontecem nessa dinâmica orgânica (gostei disso rs). Um exemplo claro é a cena da pequena vendedora. Nosso desafio todo domingo é fazer com que o público consiga acompanhar a cena sem perder o que queremos contar. Como é uma cena que acontece em deslocamento pelo parque, e como nesse momento o público espontâneo do parque já é grande (chega no fim a mais de 150, por exemplo), o desafio é manter a qualidade da cena e ao mesmo tempo fazer com que todos consigam assistí-la. Esse exemplo é claro para explicar o que você chama de dinâmica orgânica, pois todo dia o público é diferente, todo dia a movimentação do parque é diferente. O que é gostoso nisso tudo é que o espetáculo está sempre vivo, estamos sempre em estado de mudança, de aceitação do cotidiano. Os nossos corpos precisam estar todo momento atentos ao corpo do outro, pois estamos ocupando um espaço que é de todos, meu e da família que vai ao parque fazer pic nic. Uma delícia essa relação viva com a cidade.

Indo fundo no tema: vocês se questionam se é um espetáculo para crianças ou sobre crianças? Por quê?

Temos a convicção de que é um espetáculo para crianças e adultos, sobre crianças e adultos, pois os temas apresentados dizem respeito a toda a sociedade. A criança precisa ter consciência de que, por exemplo, ainda existem outras crianças como ela no mundo inteiro que trabalham duro ao invès de brincar e estudar. Isso precisa ser dito, ser conversado com nossas crianças. E o retorno que estamos tendo nos mostra que estamos no caminho certo. As crianças são muito inteligentes e sacam o que queremos dizer. O adulto, por outro lado, precisa entender que temas sérios, fortes, tem sim que ser tratados com as crianças. Óbvio que depende da forma, mas o tema precisa ser discutido. É importante para nós que o adulto que leva seu filho para assistir o espetáculo também faça essa reflexão e fique junto da gente. Precisamos parar de tratar a criança como ser inferior, que ainda não consegue falar sobre determinados assuntos. É claro que existe uma forma (várias, por sinal) de se colocar essas questões para as crianças. O espetáculo é apenas uma dessas formas. E estamos felizes com as devolutivas. É um espetáculo para e sobre crianças. Damos vida a crianças que sofrem pelo mundo todo, falamos sobre essas crianças, e as mostramos para nossas crianças, para que elas reflitam juntas com todos e tentem, da forma delas, mudar isso também.

Falando nelas, alguma reação do público que foi especial e já dá para contar?

Todo espetáculo tem alguma reação maravilhosa. Por exemplo, as crianças na cena do Menino-passarinho sempre ficam contra o Sr. Pio e a favor da Dona Dulce. Ele quer tirar a árvore e diz que o menino é uma poluição visual; ela quer ajudá-lo a manter sua liberdade. As crianças entendem perfeitamente do que se trata, e isso é lindo. Um dia um aluno de uma das escolas que assistiram a peça falou durante a cena: “ele só quer ser livre, como aquele passarinho ali”. E outro concluiu, falando para o Sr. Pio: “Fora Temer!”. Elas realmente sabem do que se trata.

Depois do dia 14 de novembro (final da primeira temporada), qual o futuro do espetáculo?

Ainda não sabemos. O que sabemos é que a vontade de todos é que a peça continue e tenha uma vida longa. Precisamos compartilhar essas histórias com o maior número possível de pessoas, esse é o nosso desejo como artistas. Sentimos que o espetáculo fala sobre coisas fundamentais para o coletivo, e por isso a continuidade é tão importante para nós. Que assim seja, que “Fósforos, nuvens e passarinhos” continue seu voo por muito tempo!

A véspera do Ano Novo, um Brasil em uma situação tão temerosa, uma era da incerteza… em meio a tudo isso, Chico, o que é liberdade para você?

Liberdade para mim é algo bem simples, porém cada vez mais difícil nos tempos que vivemos. Liberdade é você poder escolher e ficar feliz com a escolha, sem que ninguém te obrigue a mudar e escolher outra coisa. Se você mudar a escolha é sua, e não do outro. Simples, não? Mas tão difícil em nossos tempos. Como eu posso escolher e ser feliz com minha escolha se o que manda é o capital? Como escolher algo sem que o outro, mais poderoso, não interfira em meu ir e vir? E como escolher algo e ser feliz com essa escolha se isso interfere na escolha do outro? Sim, a minha liberdade pode ser a prisão do outro, por isso o estar atento é fundamental para não reproduzirmos o que há de mais cruel nas relações humanas. Fazer as próprias escolhas e ser feliz com elas não tem nada a ver com ser sozinho, pelo contrário. A liberdade só é plena, ou seja, liberdade de fato, quando é vivida em coletivo, com o outro, em sociedade. Se fosse para ser só talvez a liberdade fosse mais possível, não? Aí é que está o ponto: Liberdade é escolher os caminhos da própria vida sem que isso boicote, mate, o caminho do outro, mas a partir das relações que criamos com os outros, com os outros caminhos que estão do nosso lado. É nessa liberdade que eu acredito. E é essa Liberdade que pode salvar o mundo.

ELENCO, DIREÇÃO, CRIAÇÃO, APOIO, PRODUÇÃO, TODA A TURMA TODA REUNIDA: DURANTE A ITINERÂNCIA DO ESPETÁCULO, UMA ESPECIAL EQUIPE DE APOIO CONDUZ OS ESPECTADORES PARA OS CAMINHOS DA HISTÓRIA
ELENCO, DIREÇÃO, CRIAÇÃO, APOIO, PRODUÇÃO, TODA A TURMA TODA REUNIDA: DURANTE A ITINERÂNCIA DO ESPETÁCULO, UMA ESPECIAL EQUIPE DE APOIO CONDUZ OS ESPECTADORES PARA OS CAMINHOS DA HISTÓRIA

ESPETÁCULO FÓSFOROS, NUVENS E PASSARINHOS
COM TEATRO DA TRAVESSIA
QUANDO: ATÉ 14 DE NOVEMBRO — DOMINGOS ÀS 16H E SEGUNDAS ÀS 15H (este horário é reservados para escolas agendadas)
ONDE: A CASA TOMBADA (RUA MINISTRO GODÓI, 109, PRÓXIMO AO METRÔ BARRA FUNDA, SÃO PAULO)
ENTRADA GRATUITA, COM RESERVAS NO NÚMERO (11) 99555-1386

AS COISAS INCRÍVEIS DE ANDRÉ NEVES

Da mesma necessidade de dar voz ao não dito, o autor de livros ilustrados para a infância lança duas obras completamente diferentes: uma sobre a liberdade de expressão e outra sobre a tragédia de Mariana, em parceria com o escritor mineiro Léo Cunha

A Estrela

Vi uma estrela tão alta,

Vi uma estrela tão fria!

Vi uma estrela luzindo

Na minha vida vazia.

 

Era uma estrela tão alta!

Era uma estrela tão fria!

Era uma estrela sozinha

Luzindo no fim do dia.

 

Por que da sua distância

Para a minha companhia

Não baixava aquela estrela?

Por que tão alto luzia?

 

E ouvi-a na sombra funda

Responder que assim fazia

Para dar uma esperança

Mais triste ao fim do meu dia.

 

O poema de Manuel Bandeira encaixa-se bem, por várias razões, para iniciar este post. Fala de sonho e conquista. Fala de olhar o longe como vida e esperança. Utopia? Talvez. Digo talvez porque quem sou eu para definir poesia? Escolhi esta porque é um dos poemas mais amados por André Neves, um artista pernambucano que se tornou necessário nos acervos literários nossos de todo canto do país. Necessário mesmo. Premiado e reconhecido no Brasil e internacionalmente, é autor de Obax, Tom, Lino, A Caligrafia de Dona Sofia, Casulos, Mel na Boca… além de ter seu traço em outras dezenas de obras com diversos escritores. São mais de 20 anos de carreira, muitas mudanças como artista, muito rabisco, muita imagem, colagem, muita poesia. E, mais do que nunca, André está de olho na estrela, alta, fria, sozinha, quem sabe para olhar nela um pouco de si ou convidar o leitor a fazer o mesmo.

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Morando atualmente no Rio Grande do Sul, André pousa essa semana em São Paulo. Vem iniciar a jornada de dois livros: Nuno e as Coisas Incríveis, de sua autoria e lançado pela Editora Jujuba, e Um Dia, Um Rio, em parceria com o escritor Léo Cunha, lançado pela Editora Pulo do Gato. Livros diferentes, que nascem de necessidades diferentes, mas que se encontram na força artística de André, na potência de não fazer concessão aos leitores mais jovens para falar de incômodos e perdas. Não é planejamento ou intenção pedagógica: é necessidade artística de expor em suas obras o que sente para entrelaçar leitores a conversar sobre o que não vem sendo dito.

Perguntado, certa vez, sobre que tipo de literatura faz, ele respondeu: “é uma nova literatura, uma literatura para a infância de adultos e crianças também.” Arrisco dizer que esta “infância” de André está muito próxima à “infância” que o autor moçambicano Mia Couto: A infância não é um tempo, não é idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demaziado tarde. É quando estamos disponíveis para supreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que prendemos o próprio sentimento do tempo. A verdade é que mantemos uma relação com a criança, como se ela fosse a maioridade, uma falta, um estágio precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maioridade. É uma janela que fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.”

As janelas de André estão abertas. O espanto é possível. E tudo o que vê está pronto para conversar com o que for tecido mais adiante. Assim nascem seus livros e também assim nascem suas parcerias com outros autores e editoras. “Eu crio uma imagem e esse visual é para qualquer olhar. Gosto quando a arte possibilita uma leitura universal para qualquer leitor. Eu produzo um livro para qualquer leitor. Mas a estrutura do que eu faço é na vivência da infância e não da criança. Na infância de qualquer leitor”, disse ele em entrevista.

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Em Nuno e as Coisas Incríveis, o autor nos revela um garoto de sentimentos encolhidos no olhar, mas longos na imaginação. Uma linha vermelha nos alinhava o livro inteiro e um garoto que desenha sem parar. Cada tom, cor, textura nos parecem existir só para servi-lo: estão ali para dar conta de Nuno. Ou fazer Nuno dar conta de si mesmo. A inspiração do menino parece inabalável, forte, única, até que um encontro faz questionar se o que ele faz é suficiente. Se é o certo. O melhor. E quando ele pensa em desprezar tudo o que fez, algo incrível – realmente incrível – acontece.

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Nuno é livro de se olhar para dentro. De se olhar para dentro e enfrentar angústias, de se olhar para dentro e encarar a esperança como ato revolucionário. Ato revolucionário e, incansavelmente, diário. Por isso, há que se ter liberdade e coragem (da editora Daniela Padilha inclusive, em tempos que as vendas de livros para crianças de jovens caem e os custos sobem) para publicar um livro como este, apostando que uma obra de arte pode transformar ou, simplesmente, tem o direito (dever?) de dizer algo. A todas as infâncias.

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Um Dia, Um Rio também surge às prateleiras como um grito de dor. Fala de uma tragédia tão concreta quanto de abstrata compreensão: o livro é inspirado na catástrofe ambiental de Mariana, a cidade mineira que viu seu Rio Doce invadir ruas, casas, vidas. Todo o tipo de vida. Um acontecimento que nos deixou perplexos em frente à TV, indignados a cada notícia, detalhe, e impunidades, um ano depois. Qual a importância de falar isso para crianças? Absolutamente toda.

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A ideia surgiu da editora Márcia Leite que pensou na dupla de autores para construir algo que fizesse deste momento algo a se falar para sempre. Convidou o escritor Léo Cunha, mineiro e apaixonado pelo barulho dos rios, que narrasse este vergonhoso episódio ambiental. “Tentei escrever a história como um lamento e, ao mesmo tempo, como um grito de alerta, uma homenagem ao Rio Doce e a todos os rios que ainda banham ali, alimentam e enriquecem o nosso povo”. As palavras de Léo – um de nossos grandes autores, outro poeta necessários às nossas infâncias – nos tocam tão profundamente como se fôssemos nós mesmos levando o banho de lama, sentindo a dor das perdas incalculáveis.

“MINHA ALDEIA MORA SUBMERSA DENTRO DE MIM.

COM LÁGRIMAS DE MINÉRIO, VOU SANGRANDO ATÉ O MAR”.

A poesia em texto encontrou a poesia de André na imagem. Para o ilustrador, o grito era de socorro e tardio. “O Rio Doce, indefeso, já havia aceitado sua tragédia. Só restava-me gritar também”. (depoimentos publicados ao final do livro)

As naturezas diferentes das duas obras nos ampliam, sem dúvida, a possibilidade de se olhar um livro ilustrado para a infância. É leitura de se voltar várias vezes. Os detalhes das escolhas das palavras, os cantos do projeto gráfico, a cor aqui, o branco ali, o tipo de letra, os tamanhos e intensidades dialogam com nosso encontro com o livro. É leitura em texto, imagem e projeto gráfico: a gente nota que só naquele objeto poderia-se contar estas histórias. Nos dá um último alerta: há de se preservar que, seja qual for a natureza, de onde vier a ideia e por qual seja a razão, nunca se perca em uma obra de arte literária a característica de surpresa, estranhamento, de que se está saindo do lugar diante daquela leitura: de que jamais seremos os mesmos. Nada mais é do que um compromisso ético com o que somos ou poderíamos ser. Perseguir a estrela de Manuel Bandeira. Daí o porquê da arte (nos) existir.
ps – Os dois livros serão lançados na Livraria NoveSete (são Paulo), sábado dia 22, a partir das 10h. Uma mesa-redonda com os autores, seguida de inauguração de exposição com os originais acontecem junto. Imperdível! Inscrições aqui.

Nuno e as Coisas Incríveis (Ed. Jujuba)

De André Neves

2016

 

Um Dia, Um Rio (Ed. Pulo do Gato)

De Léo Cunha e André Neves

2016

DRUFS E A INCESSANTE REINVENÇÃO DO RISO DE EVA FURNARI

 

Livro expõe diversos tipos de família da nossa sociedade, mostrando que isso talvez não seja o mais importante

“Tudo que não invento é falso”. Esta é uma das frases, para mim, mais inquietantes da poesia de Manoel de Barros. Mexe comigo há tantos anos, faço releituras delas em mim a todo instante (algumas vezes conscientemente, outras não). Do que ele está falando? É um tamanho convite ao que temos dentro da gente que, quando saímos de lá, parece a volta de um mergulho buscando o ar novamente. Renascemos.

Suspeito que seja por aí o que caminha entre Eva Furnari e seus personagens: é tão ela e tão eles que o mergulho é individual e termina coletivo. Ela volta ao lado de todos eles, todos os personagens e histórias inventadas e busca o ar, o ar que é dela, deles e de todos nós, os leitores. Ela renasce e renascemos com ela.

Drufs (Ed. Moderna), o mais recente livro lançado por Eva, com sua história de cerca de 70 livros e mais de 35 anos de carreira, tem, ao mesmo tempo, força de uma autora experiente e leveza de um frescor de quem acaba de brotar uma novidade. O leitor desavisado pode até achar que se trata de mais um livro engraçado, ou até mesmo que ela só quis, desta vez, abordar uma questão atual. Mas, preparem-se: tem em Drufs muito mais do que você pode imaginar.

Há algum tempo, nos trabalhos que temos feito em parceria com a formação de educadores (nos Sescs de São Paulo e nos cursos que ela foi muito parceira n’ A Casa Tombada, onde trabalho, na cidade de São Paulo), ela me contou que estava criando um livro novo e que ele falava sobre famílias (ela chegou a contar e pedir opinião aos alunos, veja só!). Ela queria falar sobre estas questões das diversas formações e eu via que ela buscava ali, em algum lugar do mundo de Eva Furnari, não só a melhor maneira, mas a melhor maneira para ela. Parece simples. Mas não. Assunto tabu em uma sociedade que já É diversa. E há muitos livros que tratam do assunto, claro. Como não cair no didatismo da interpretação única? Uma maneira de fazer isso é, então, uma de maiores habilidades da autora: provocar o riso. Mas o riso da gente diante da obra da Eva, é aquele riso de suspiro, sabe? A gente se solta. Não é riso da ofensa, da humilhação, é riso de liberdade.

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Mas o que é Drufs? Na capa o título, o nome da autora e uma porção de fotos… Figuras engraçadas, diversas, cheias de detalhes, texturas… mas, peraí, você reconhece aquilo… são dedos! São dedos caracterizados. Na primeira dupla, o convite:

Os Drufs são seres parecidos com a gente, só que menores.

Os começos de livros de Eva são muito preciosos (aqui falando com a poeta portuguesa Maria Gabriela Llansol, apresentada a mim por outra poeta, a Angela Castelo Branco: “O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo perseguindo.”). Ficamos ansiosos para o que vem a seguir. Ela nos apresenta a professora Rubi que adora dar tarefas diferentes aos seus alunos. A narrada pelo livro é:

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O livro é uma sucessão destes trabalhos apresentados por alunos e aí vem o toque de delicadeza da autora mais uma vez: são as crianças que narram como são as suas famílias. Não são os pais, nem os avós, nem os professores, nem os psicólogos, nem os jornalistas, nem os deputados federais, nem os senadores, nem os advogados, nem os juízes…

Se “Drufs” não sugere nada sobre o tema do livro, muito menos os nomes das famílias: Família Gorrinho, Família Ui, Família Balum, Família Brong, Família Padoca. Mas estão ali famílias com pai, mãe, filhos, cachorros e gatos; com um dos filhos adotado; com pai já falecido; com pais separados e irmãos de outro casamento; com dois pais e com duas mães (e muitos, muitos avós!!); com crianças cuidadas pelas tias; com gêmeos, filhos únicos e com perguntas que não são respondidas. Nos detalhes também as semelhanças, as características de comportamento comuns. Quando menos percebe, o leitor está no assunto por deleite, não por informação ou função. Mas, claro, esta entrega ao livro é uma escolha do adulto, principalmente diante dos possíveis incômodos provocados pela leitura. A criança? Acredito que ela não esteja nem um pouco preocupada com isso.

Eva tece maravilhas como:

Da Família Ui, que tem uma fábrica de um item perigoso e se machuca muito: “Meu nome é Fifi e a Zizi é minha irmã gêmea. Nós duas estudamos na mesma classe. Por fora nós somos idênticas, mas por dentro somos diferentes”.

Da Família Balum, que trabalha com festas: “O único que não fala de festa é o tio Murchun. Ele tem depressão. O tio Bum também trabalha em festas infantis (como meus pais), mas detesta. Ele não tem paciência com crianças. Qualquer coisinha ele estoura.”

Da Família Suflê: “Meu pai tem um restaurante de comida Fritemburguesa. Ele é um chefe de cozinha famoso, mas quem faz comida aqui em casa é o meu outro pai, o Croassan. Quando eu crescer, quero ser chefe de cozinha.”

Da Família Zum: “Minha família tem três pessoas, contando eu e descontando meu pai, que já morreu. No ano que vem vai ter quatro pessoas de novo, porque a minha prima do interior vem morar com a gente.”

O livro mexeu muito com a minha filha Clarice, de 4 anos. Primeiro o nome: brinquei com ela para ver se ela adivinhava quem eram eles. Quando os conheceu, agiu muito naturalmente e disse: “são dedoches!”. Continuamos a brincadeira de que a palavra “drufs” estava invadindo as nossas frases a todo o momento, como se eles tivessem “entrado” nos nossos pensamentos. Ela adorou. Gosta de ouvir o que leio em voz alta, mesmo que não compreenda tudo (li e reli muitas vezes já). Percebeu as ausências nas famílias e quis elaborar sobre elas. E amou cada uma das crianças como se falasse dos amigos da escola. Suspeito que a conexão também venha de uma definição belíssima que aprendi com um outro autor de livros para crianças, Claudio Thebas que, como Eva é na palavra e na imagem, ele é na profissão: palhaço. Em “O Livro do Palhaço” (Ed. Companhia das Letrinhas), ele diz: “Todo mundo nasce palhaço. Sem exceção. Basta observar as crianças pequenas para perceber que elas têm todas as qualidades que um bom palhaço deve ter: são atrapalhadas, sinceras, espontâneas e, por tudo isso, muito engraçadas. Elas não têm o menor medo do ridículo, até porque não fazem ideia do que seja isso.”

Ah, claro, vocês viram na capa aquela porção de dedos fotografados. Esta foi mais uma reinvenção da autora que desta vez focou sua destreza para caracterizar personagens decorando dedos com lãs, botões, tampinhas, pedaços de comida, massinha, miçangas e muito mais. E as tipografias e outros recursos gráficos também variam muito.

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Nada está à toa. Tudo completa a ideia do livro.

Como em Umbigo Indiscreto, Nós, Lolo Barnabé, Cacoete, Marilu e tantos outros livros, Eva está ali revelando cada de um de nós em pensamentos, gestos, costumes e jogando com as nossas possibilidades de acolher diferenças e limites. É como se ela nos lançasse a um jogo em que avançar ou não seja uma questão de fazer escolhas.

Drufs (Editora Moderna)

De Eva Furnari

2016

VEJA TAMBÉM:

e uma entrevista com Eva, sobre Drufs feita pela Bia Reis, no blog Estante de Letrinhas.