TEATRO: FÓSFOROS, NUVENS E PASSARINHOS, HISTÓRIAS SOBRE INFÂNCIA E LIBERDADE

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Espetáculo voltado para toda a família mexe com o espectador pela forma e conteúdo ao mostrar histórias de crianças com infâncias difíceis e ser encenado parte em espaço cultural, parte em parque público de São Paulo

Há algum tempo soube da grande novidade: A Casa Tombada (espaço onde trabalho, veja aqui) receberia seu primeiro espetáculo também voltado para crianças. E mais: parte dele seria encenado em um espaço vizinho, do outro lado da rua, o Parque da Água Branca, na região oeste de São Paulo.
Ainda em processo de criação, ninguém conseguia me explicar a empreitada a (meu) contento. Eu tentava visualizar, mas não compreendia como se daria tudo. Um dia o Chico (o ator, produtor, criador da companhia, e muito mais) me contou sobre o título: Fósforos, Nuvens e Passarinhos. Claro que um sorriso e um suspiro (dos profundos) nasceram em mim, na hora. Mas eu sabia. Eu sabia que o tema merecia um suspiro, dos bem profundos, sim. Afinal, fala de crianças e infâncias roubadas. Tem ferida social maior que esta?
Eis que chegou o dia e o Teatro da Travessia estreou seu espetáculo. Como eles explicam no programa, a peça mostra “histórias de crianças de diferentes cantos do mundo que, ao enfrentarem a realidade de suas vidas, podem ter seus sonhos roubados”. Mas e se essas histórias fossem narradas no dia em que a esperança de tempos melhores alcança seu auge, na véspera de Ano Novo?

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Dirigido por Simone Grande (educadora e criadora do grupo As Meninas do Conto que conta com Paulo Arcuri, do grupo, como assistente de direção), texto de criação coletiva e canções compostas por Heidi Monezzi, Lucélia Machiavelli e Tibério César (que também assina a direção musical), o espetáculo é baseado em três contos: “O Menino das Capas de Chuva”, de João Anzanello Carrascoza, “A Pequena Vendedora de Fósforos”, de Hans Christian Andersen, e um fato real: o “menino-passarinho”, aquele garoto que instalou moradia em uma árvore no bairro Higienópolis, em São Paulo, e causou surpresas e polêmicas.

FOTO DE YUMI SAKATE, DIRETORA DE ARTE DO ESPETÁCULO
FOTO DE YUMI SAKATE, DIRETORA DE ARTE DO ESPETÁCULO

Ele é itinerante e começa com um grupo pequeno de espectadores, dentro d’ A Casa Tombada, um lugar de arte, cultura e educação que, de fato, é uma casa tombada pelo patrimônio histórico. As tantas portas, salas e janelas ganham novos contornos e significados quando o grupo que assiste segue pelo ambiente conduzido por pessoas-nuvens-narradoras que costuram as três histórias de forma tão dinâmica quanto poética.

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O elenco (Bruno Cordeiro, Fernanda Stein, Francisco Wagner, Heidi Monezzi, Lucélia MachiavellI e Roberta Stein) se alterna nos personagens. De lá da Casa, o público é convidado a atravessar a rua, entrar no Parque e esperar que tudo continue. Emoções fortes os aguardam. As crianças não tiram os olhos (há uma recomendação para “a partir de 8 anos”, mas minha filha Clarice, de 4 anos, ficou bem… acredito que a partir de 5, 6 anos já aproveita bastante a experiência). Os adultos tentam segurar as lágrimas. Todos ficam envolvidos, com as emoções confusas enquanto percorrem grande parte do parque atrás da peça que, conforme ocupa o espaço público, vai tomando parte do domingo que já acontecia ali. No final, mais de 100 pessoas estão reunidas para perceber ali o que une as três histórias. Qual seria o sonho em comum das crianças ali retratadas? O grupo tem uma palavra: liberdade.

Conversei com Francisco Wagner, um dos idealizadores do Teatro da Travessia, que completa 10 anos. Confira aqui que lindeza acontece por ali:

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Bem, existe uma coisa linda que qualquer um pode já ler no programa da peça: o texto está como “criação coletiva”. Como é que isso se dá em um grupo?

Francisco Wagner: É lindo mesmo, querida. É uma experiência real de pertencimento, de coletivo, de ser ouvido. Quando as três histórias foram sendo improvisadas, todos estavam tão tomados pela beleza das histórias que no momento de sentar e transformar os contos e a reportagem de jornal em texto teatro foi lindo demais. Não foi fácil, preciso dizer. E talvez por isso a felicidade de ver o resultado (que está em constante mudança por causa da relação com o público) sejá enorme. O Teatro da Travessia sempre teve esse pensamento de trabalhar com várias mãos, todas que tivermos acesso. Acreditamos que para o trabalho que fazemos no grupo, que não tem um líder, um diretor que manda, etc, mas onde todos opinam, fazem e tem as responsabilidades no processo, escrever o texto juntos é fundamental. Faz parte de todo nosso processo até aqui nesses dez anos. Um dos nossos pontos de pesquisa é justamente a adaptação de textos não dramáticos, que não foram feitos para o teatro, em textos teatrais. E fazer isso com todos que estão na criação é muito rico. É um texto dito com muitas vozes. Tem coisa mais bonita?

Conta aqui pro Esconderijos a história dos 10 anos do Teatro da Travessia. Como vocês se encontraram, quais e como eram as três peças encenadas antes desta.

Nos encontramos em um núcleo de pesquisa do Grupo XIX de Teatro, lá na Vila Maria Zélia, lugar incrível. Isso foi no início de 2006. Nós quatro (Lígia Borges, Paulo Arcuri, Roberta Stein e eu) víamos no trabalho do outro algumas afinidades e começamos a conversar sobre a possibilidade de um grupo. A Lígia sempre dava carona até o metrô e aproveitávamos o tempo para colocar as ideias. Em meados de 2006 o grupo já estava formado, já nos apresentávamos como coletivo. Aí começamos a nos reunir semanalmente para pesquisar textos para o primeiro espetáculo. Sabíamos que queríamos trabalhar com adaptação de texto não dramático, pois era a referência do núcleo do XIX. Um dia a Lígia encontrou por acaso o livro Dias Raros do Carrascoza e levou para o grupo. Quando lemos o primeiro conto, todos começaram a chorar com tamanha beleza. Não tínhamos dúvida de que aquele era o material, mas precisávamos conversar com o autor, que ainda não conhecíamos. Mandamos e-mail e o João Anzanello Carrascoza respondeu, para nossa felicidade. No início de 2007 marcamos um café com ele no Centro Cultural São Paulo e pronto, a partir daquele dia nossos caminhos se encontraram e até hoje mantemos uma relação afetiva e de criação. Ele liberou os direitos autorais e assim começamos os ensaios. Chamamos outro parceiro de longa data, o querido Luiz Fernando Marques, o Lubi, para dirigir a peça. Ele topou. Foram 2 anos de ensaio, pois não tínhamos nenhum auxílio financeiro. Em 2008 Dias Raros estreou na Vila Maria Zélia (o Lubi é diretor do Grupo XIX), e foi lindo. Até hoje o espetáculo existe.
Em 2010 conseguimos o nosso primeiro edital público, o Bolsa FUNARTE de Residência em Artes Cênicas. Fomos desenvolver o segundo espetáculo do grupo na França, em Montpellier, onde ficamos 6 meses em 2011. Com direção de Philippe Goudard, estreamos lá na França o “Colóquio Internacional sobre o Amor”, que depois fez algumas apresentações no Brasil. Também dentro do projeto na França apresentamos Dias Raros traduzido para o francês. Foi uma experiência transformadora esse projeto.
Em 2014 começamos o processo de criação do terceiro espetáculo, em uma nova criação intercultural, agora com o Canadá, a parte francesa do país. Foi uma troca intensa entre o nosso grupo e a Cie. Singulier Pluriel, com direção de Julie Vincent. Também fomos para lá e ficamos dois meses. Apresentamos em casas de cultura e em residência artística em um teatro. O espetáculo “Conto sobre Mim” veio para o Brasil e fez temporada no Teatro Aliança Francesa.
E agora estamos com este espetáculo, o quarto do grupo e o primeiro para o público infantil. Ele só foi possível graças ao Prêmio Zé Renato de Teatro para a Cidade de São Paulo, que fomos contemplados no final do ano passado. E, também, graças a parceria com a Casa Tombada, dos queridos Giuliano Tierno e Angela Castelo Branco. Nossa trajetória, felizmente, é repleta de encontros, o que nos possibilitou estar firmes até hoje.

Como surgiu a ideia do espetáculo? O que nasceu primeiro: a ideia das três histórias ou o formato de ser na Casa e no Parque?

A ideia surgiu em 2014 quando tomamos contato com a notícia de jornal sobre o Menino-passarinho. Na verdade o embrião surgiu naquele momento. Guardamos a reportagem pois sabíamos que em algum momento ela seria usada. No final de 2015 surgiu a ideia de juntar a reportagem sobre o menino-passarinho com mais duas: A Pequena Vendedora de Fósforos, do Andersen, e um conto que seria escrito especialmente para o projeto pelo Carrascoza, o que gerou o conto “O Menino das Capas de Chuva”. Com a ideia das três histórias, e mais a vontade de fazer algo itinerante, começando na Casa Tombada e terminando no Parque da Água Branca, escrevemos o projeto no edital Prêmio Zé Renato. O projeto foi escrito para comemorar os dez anos do grupo, realizando a primeira criação para o público infantil e, também, verticalizando na nossa pesquisa com a utilização de espaço alternativo. Felizmente foi aprovado e conseguimos concretizar essas ideias.

Quais foram os principais desafios, claro, depois do prêmio e a verba para viabilizar a ideia?

O principal desafio foi, sem dúvida, a itinerância. Nunca tínhamos feito um espetáculo itinerante dentro do grupo. Nossa pesquisa consiste em trabalhar em espaços alternativos, mas a itinerância proposta pelo projeto era algo bem radical tendo em vista os outros espetáculos da companhia. Isso era um desafio grande, e, talvez por isso, a motivação gerada também foi enorme. Não desistimos em nenhum momento da ideia, e conseguimos concluí-la. Outro desafio, também dentro da itinerância, era como fazer essa itinerância com crianças. Sabíamos por algumas experiências de outros grupos que a própria itinerância com adultos já era complicada. Não tínhamos nenhuma referência de espetáculos itinerantes para o público infantil, ou seja, o desafio ficava ainda maior.

Com o espetáculo estreado houve mudanças? Esta dinâmica orgânica (não sei se é a palavra ideal), mas esta dinâmica de o espetáculo ir acontecendo junto a tantas outras ações da vida de um parque em dia de domingo, o que precisou ser mudado ou repensado?

Sim, muitas mudanças aconteceram. E ainda acontecem. São mudanças pequenas, nada muito grande no que se refere a estrutura do espetáculo, mas sim, as mudanças acontecem nessa dinâmica orgânica (gostei disso rs). Um exemplo claro é a cena da pequena vendedora. Nosso desafio todo domingo é fazer com que o público consiga acompanhar a cena sem perder o que queremos contar. Como é uma cena que acontece em deslocamento pelo parque, e como nesse momento o público espontâneo do parque já é grande (chega no fim a mais de 150, por exemplo), o desafio é manter a qualidade da cena e ao mesmo tempo fazer com que todos consigam assistí-la. Esse exemplo é claro para explicar o que você chama de dinâmica orgânica, pois todo dia o público é diferente, todo dia a movimentação do parque é diferente. O que é gostoso nisso tudo é que o espetáculo está sempre vivo, estamos sempre em estado de mudança, de aceitação do cotidiano. Os nossos corpos precisam estar todo momento atentos ao corpo do outro, pois estamos ocupando um espaço que é de todos, meu e da família que vai ao parque fazer pic nic. Uma delícia essa relação viva com a cidade.

Indo fundo no tema: vocês se questionam se é um espetáculo para crianças ou sobre crianças? Por quê?

Temos a convicção de que é um espetáculo para crianças e adultos, sobre crianças e adultos, pois os temas apresentados dizem respeito a toda a sociedade. A criança precisa ter consciência de que, por exemplo, ainda existem outras crianças como ela no mundo inteiro que trabalham duro ao invès de brincar e estudar. Isso precisa ser dito, ser conversado com nossas crianças. E o retorno que estamos tendo nos mostra que estamos no caminho certo. As crianças são muito inteligentes e sacam o que queremos dizer. O adulto, por outro lado, precisa entender que temas sérios, fortes, tem sim que ser tratados com as crianças. Óbvio que depende da forma, mas o tema precisa ser discutido. É importante para nós que o adulto que leva seu filho para assistir o espetáculo também faça essa reflexão e fique junto da gente. Precisamos parar de tratar a criança como ser inferior, que ainda não consegue falar sobre determinados assuntos. É claro que existe uma forma (várias, por sinal) de se colocar essas questões para as crianças. O espetáculo é apenas uma dessas formas. E estamos felizes com as devolutivas. É um espetáculo para e sobre crianças. Damos vida a crianças que sofrem pelo mundo todo, falamos sobre essas crianças, e as mostramos para nossas crianças, para que elas reflitam juntas com todos e tentem, da forma delas, mudar isso também.

Falando nelas, alguma reação do público que foi especial e já dá para contar?

Todo espetáculo tem alguma reação maravilhosa. Por exemplo, as crianças na cena do Menino-passarinho sempre ficam contra o Sr. Pio e a favor da Dona Dulce. Ele quer tirar a árvore e diz que o menino é uma poluição visual; ela quer ajudá-lo a manter sua liberdade. As crianças entendem perfeitamente do que se trata, e isso é lindo. Um dia um aluno de uma das escolas que assistiram a peça falou durante a cena: “ele só quer ser livre, como aquele passarinho ali”. E outro concluiu, falando para o Sr. Pio: “Fora Temer!”. Elas realmente sabem do que se trata.

Depois do dia 14 de novembro (final da primeira temporada), qual o futuro do espetáculo?

Ainda não sabemos. O que sabemos é que a vontade de todos é que a peça continue e tenha uma vida longa. Precisamos compartilhar essas histórias com o maior número possível de pessoas, esse é o nosso desejo como artistas. Sentimos que o espetáculo fala sobre coisas fundamentais para o coletivo, e por isso a continuidade é tão importante para nós. Que assim seja, que “Fósforos, nuvens e passarinhos” continue seu voo por muito tempo!

A véspera do Ano Novo, um Brasil em uma situação tão temerosa, uma era da incerteza… em meio a tudo isso, Chico, o que é liberdade para você?

Liberdade para mim é algo bem simples, porém cada vez mais difícil nos tempos que vivemos. Liberdade é você poder escolher e ficar feliz com a escolha, sem que ninguém te obrigue a mudar e escolher outra coisa. Se você mudar a escolha é sua, e não do outro. Simples, não? Mas tão difícil em nossos tempos. Como eu posso escolher e ser feliz com minha escolha se o que manda é o capital? Como escolher algo sem que o outro, mais poderoso, não interfira em meu ir e vir? E como escolher algo e ser feliz com essa escolha se isso interfere na escolha do outro? Sim, a minha liberdade pode ser a prisão do outro, por isso o estar atento é fundamental para não reproduzirmos o que há de mais cruel nas relações humanas. Fazer as próprias escolhas e ser feliz com elas não tem nada a ver com ser sozinho, pelo contrário. A liberdade só é plena, ou seja, liberdade de fato, quando é vivida em coletivo, com o outro, em sociedade. Se fosse para ser só talvez a liberdade fosse mais possível, não? Aí é que está o ponto: Liberdade é escolher os caminhos da própria vida sem que isso boicote, mate, o caminho do outro, mas a partir das relações que criamos com os outros, com os outros caminhos que estão do nosso lado. É nessa liberdade que eu acredito. E é essa Liberdade que pode salvar o mundo.

ELENCO, DIREÇÃO, CRIAÇÃO, APOIO, PRODUÇÃO, TODA A TURMA TODA REUNIDA: DURANTE A ITINERÂNCIA DO ESPETÁCULO, UMA ESPECIAL EQUIPE DE APOIO CONDUZ OS ESPECTADORES PARA OS CAMINHOS DA HISTÓRIA
ELENCO, DIREÇÃO, CRIAÇÃO, APOIO, PRODUÇÃO, TODA A TURMA TODA REUNIDA: DURANTE A ITINERÂNCIA DO ESPETÁCULO, UMA ESPECIAL EQUIPE DE APOIO CONDUZ OS ESPECTADORES PARA OS CAMINHOS DA HISTÓRIA

ESPETÁCULO FÓSFOROS, NUVENS E PASSARINHOS
COM TEATRO DA TRAVESSIA
QUANDO: ATÉ 14 DE NOVEMBRO — DOMINGOS ÀS 16H E SEGUNDAS ÀS 15H (este horário é reservados para escolas agendadas)
ONDE: A CASA TOMBADA (RUA MINISTRO GODÓI, 109, PRÓXIMO AO METRÔ BARRA FUNDA, SÃO PAULO)
ENTRADA GRATUITA, COM RESERVAS NO NÚMERO (11) 99555-1386

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