AS COISAS INCRÍVEIS DE ANDRÉ NEVES

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Da mesma necessidade de dar voz ao não dito, o autor de livros ilustrados para a infância lança duas obras completamente diferentes: uma sobre a liberdade de expressão e outra sobre a tragédia de Mariana, em parceria com o escritor mineiro Léo Cunha

A Estrela

Vi uma estrela tão alta,

Vi uma estrela tão fria!

Vi uma estrela luzindo

Na minha vida vazia.

 

Era uma estrela tão alta!

Era uma estrela tão fria!

Era uma estrela sozinha

Luzindo no fim do dia.

 

Por que da sua distância

Para a minha companhia

Não baixava aquela estrela?

Por que tão alto luzia?

 

E ouvi-a na sombra funda

Responder que assim fazia

Para dar uma esperança

Mais triste ao fim do meu dia.

 

O poema de Manuel Bandeira encaixa-se bem, por várias razões, para iniciar este post. Fala de sonho e conquista. Fala de olhar o longe como vida e esperança. Utopia? Talvez. Digo talvez porque quem sou eu para definir poesia? Escolhi esta porque é um dos poemas mais amados por André Neves, um artista pernambucano que se tornou necessário nos acervos literários nossos de todo canto do país. Necessário mesmo. Premiado e reconhecido no Brasil e internacionalmente, é autor de Obax, Tom, Lino, A Caligrafia de Dona Sofia, Casulos, Mel na Boca… além de ter seu traço em outras dezenas de obras com diversos escritores. São mais de 20 anos de carreira, muitas mudanças como artista, muito rabisco, muita imagem, colagem, muita poesia. E, mais do que nunca, André está de olho na estrela, alta, fria, sozinha, quem sabe para olhar nela um pouco de si ou convidar o leitor a fazer o mesmo.

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Morando atualmente no Rio Grande do Sul, André pousa essa semana em São Paulo. Vem iniciar a jornada de dois livros: Nuno e as Coisas Incríveis, de sua autoria e lançado pela Editora Jujuba, e Um Dia, Um Rio, em parceria com o escritor Léo Cunha, lançado pela Editora Pulo do Gato. Livros diferentes, que nascem de necessidades diferentes, mas que se encontram na força artística de André, na potência de não fazer concessão aos leitores mais jovens para falar de incômodos e perdas. Não é planejamento ou intenção pedagógica: é necessidade artística de expor em suas obras o que sente para entrelaçar leitores a conversar sobre o que não vem sendo dito.

Perguntado, certa vez, sobre que tipo de literatura faz, ele respondeu: “é uma nova literatura, uma literatura para a infância de adultos e crianças também.” Arrisco dizer que esta “infância” de André está muito próxima à “infância” que o autor moçambicano Mia Couto: A infância não é um tempo, não é idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demaziado tarde. É quando estamos disponíveis para supreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que prendemos o próprio sentimento do tempo. A verdade é que mantemos uma relação com a criança, como se ela fosse a maioridade, uma falta, um estágio precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maioridade. É uma janela que fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.”

As janelas de André estão abertas. O espanto é possível. E tudo o que vê está pronto para conversar com o que for tecido mais adiante. Assim nascem seus livros e também assim nascem suas parcerias com outros autores e editoras. “Eu crio uma imagem e esse visual é para qualquer olhar. Gosto quando a arte possibilita uma leitura universal para qualquer leitor. Eu produzo um livro para qualquer leitor. Mas a estrutura do que eu faço é na vivência da infância e não da criança. Na infância de qualquer leitor”, disse ele em entrevista.

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Em Nuno e as Coisas Incríveis, o autor nos revela um garoto de sentimentos encolhidos no olhar, mas longos na imaginação. Uma linha vermelha nos alinhava o livro inteiro e um garoto que desenha sem parar. Cada tom, cor, textura nos parecem existir só para servi-lo: estão ali para dar conta de Nuno. Ou fazer Nuno dar conta de si mesmo. A inspiração do menino parece inabalável, forte, única, até que um encontro faz questionar se o que ele faz é suficiente. Se é o certo. O melhor. E quando ele pensa em desprezar tudo o que fez, algo incrível – realmente incrível – acontece.

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Nuno é livro de se olhar para dentro. De se olhar para dentro e enfrentar angústias, de se olhar para dentro e encarar a esperança como ato revolucionário. Ato revolucionário e, incansavelmente, diário. Por isso, há que se ter liberdade e coragem (da editora Daniela Padilha inclusive, em tempos que as vendas de livros para crianças de jovens caem e os custos sobem) para publicar um livro como este, apostando que uma obra de arte pode transformar ou, simplesmente, tem o direito (dever?) de dizer algo. A todas as infâncias.

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Um Dia, Um Rio também surge às prateleiras como um grito de dor. Fala de uma tragédia tão concreta quanto de abstrata compreensão: o livro é inspirado na catástrofe ambiental de Mariana, a cidade mineira que viu seu Rio Doce invadir ruas, casas, vidas. Todo o tipo de vida. Um acontecimento que nos deixou perplexos em frente à TV, indignados a cada notícia, detalhe, e impunidades, um ano depois. Qual a importância de falar isso para crianças? Absolutamente toda.

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A ideia surgiu da editora Márcia Leite que pensou na dupla de autores para construir algo que fizesse deste momento algo a se falar para sempre. Convidou o escritor Léo Cunha, mineiro e apaixonado pelo barulho dos rios, que narrasse este vergonhoso episódio ambiental. “Tentei escrever a história como um lamento e, ao mesmo tempo, como um grito de alerta, uma homenagem ao Rio Doce e a todos os rios que ainda banham ali, alimentam e enriquecem o nosso povo”. As palavras de Léo – um de nossos grandes autores, outro poeta necessários às nossas infâncias – nos tocam tão profundamente como se fôssemos nós mesmos levando o banho de lama, sentindo a dor das perdas incalculáveis.

“MINHA ALDEIA MORA SUBMERSA DENTRO DE MIM.

COM LÁGRIMAS DE MINÉRIO, VOU SANGRANDO ATÉ O MAR”.

A poesia em texto encontrou a poesia de André na imagem. Para o ilustrador, o grito era de socorro e tardio. “O Rio Doce, indefeso, já havia aceitado sua tragédia. Só restava-me gritar também”. (depoimentos publicados ao final do livro)

As naturezas diferentes das duas obras nos ampliam, sem dúvida, a possibilidade de se olhar um livro ilustrado para a infância. É leitura de se voltar várias vezes. Os detalhes das escolhas das palavras, os cantos do projeto gráfico, a cor aqui, o branco ali, o tipo de letra, os tamanhos e intensidades dialogam com nosso encontro com o livro. É leitura em texto, imagem e projeto gráfico: a gente nota que só naquele objeto poderia-se contar estas histórias. Nos dá um último alerta: há de se preservar que, seja qual for a natureza, de onde vier a ideia e por qual seja a razão, nunca se perca em uma obra de arte literária a característica de surpresa, estranhamento, de que se está saindo do lugar diante daquela leitura: de que jamais seremos os mesmos. Nada mais é do que um compromisso ético com o que somos ou poderíamos ser. Perseguir a estrela de Manuel Bandeira. Daí o porquê da arte (nos) existir.
ps – Os dois livros serão lançados na Livraria NoveSete (são Paulo), sábado dia 22, a partir das 10h. Uma mesa-redonda com os autores, seguida de inauguração de exposição com os originais acontecem junto. Imperdível! Inscrições aqui.

Nuno e as Coisas Incríveis (Ed. Jujuba)

De André Neves

2016

 

Um Dia, Um Rio (Ed. Pulo do Gato)

De Léo Cunha e André Neves

2016

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