A Coisa Brutamontes – poesia em temas difíceis

7383

 

BRUTACAPAP

Ele estava ali – impossível que não o vissem! Um rinoceronte enorme, desconjuntado, peixe fora d’água. Mesmo eu, que só tenho 11 anos, sei reconhecer alguma coisa fora do lugar. Estava ali para quem quisesse ver, bem no meio da sala, interrompendo o vaivém das pessoas, que agiam como se nada incômodo ocupasse aquele lugar com cheiro de flor; não queriam esticar a vista para nada além do que já conheciam. Não sabiam mexer nas coisas inexplicáveis, e ainda assim olhavam para elas de cima, com seus olhares adultos, distribuindo respostas onde não cabiam nem as perguntas. E então o rinoceronte: descabido, inesperado, sem sentido. Tanto as pessoas o ignoravam que o absurdo da história que eu vou contar quase que nem tem a ver com ele.

A primeira vez que me disseram “Maria morreu”, meu coração reclamou, quis pular fora do peito. Precisaram repetir: morta. Mas morta como, se para mim ela continuava?

 

É assim. É assim com esta potência que se inicia o texto de Renata Penzani, jornalista competente para olhar as pluralidades da infância, pesquisadora dedicada para entender as possibilidades de narrativa na contemporaneidade, mulher sensível que vê poesia e sentido em viver experiências e se relacionar com as experiências do outro. É assim que começa A Coisa Brutamontes, primeiro livro publicado da Renata, escritora talentosa que tenho o prazer de conviver desde 2015, quando nos conhecemos n’A Casa Tombada. Vi um pedaço de sua trajetória de estudo do livro ilustrado para a infância, na pós-graduação que coordeno lá, O Livro Para a Infância, em que Renata brilhou dois anos e me ensinou muito. O livro venceu o III Prêmio CEPE Nacional de Literatura 2017 – Infantojuvenil e foi lançado no final do ano passado pela CEPE Editora.

É assim. É assim que Renata nos fala de morte sob a perspectiva de uma criança. Um olhar tão poético quanto ingênuo; tão maduro quanto simples. A coisa brutamontes aparece ali na vida de Cícero, o menino de 11 anos, obrigando-o a lidar com uma dor que, ao contrário de outras questões do crescimento, os adultos nem sempre têm as melhores explicações. Este grito silencioso que é a perda de alguém. Este inexplicável susto que acontece com todos nós.

O texto de Renata é preciso e não fala sobre morte sem falar de outra coisa também bastante misteriosa: o amor.

 

Até então não era amor, eu acho. O que acontecia entre nós era sempre sem nome. E foi sendo assim até aquele dia, quando alguém chegou para mim e perguntou: “Quem é Dona Maria?”. E então pela primeira vez eu tive que encaixar uma Maria inteira numa palavra só.

(…)

Eu e Dona Maria somos um par. Não sei se me entendem quando eu digo, porque às vezes parece que é uma coisa assim que só a gente pode saber. Ter um par é ter alguém que escuta o que você não diz. É pelo menos uma vez por dia ter certeza de não estar sozinho.

BRUTAMARIACICEROP

Dá vontade aqui de reproduzir o livro inteiro. Esta força toda que vai nos engasgando a leitura de tanta emoção é costurado com ilustrações de Renato Alarcão, importante artista brasileiro e professor de arte narrativa, que tem seu traço em dezenas de livros e outros trabalhos gráficos. Ele entra em inícios de capítulos e interfere com desenhos expressivos e emocionantes ao longo do livro. Cícero e Dona Maria vão sendo expostos em imagens para o leitor como um sonho, lembranças daquela narrativa em primeira pessoa, daquele menino que é um pouco de nós, um pouco de nossa infância em dúvida, em tristeza, em amor, em eterna busca de sentidos.

BRUTAENTERROP

Olhamos para o livro, olhamos pra dentro e nos perguntamos: e eu? Eu consegui estas respostas?

Na contracapa, a escritora e diretora da Pulo do Gato, Márcia Leite, ressalta belamente: “Renata traz na escrita a sua força brutamontes. O leitor se vê, a todo momento, surpreendido e arrebatado por sua inusitada prosa poética”.

Esta inesperada amizade leva Cícero e o leitor a pensar a si mesmo e o mundo: os sentimentos e as leituras das pessoas vão se costurando, ora cruzando, ora se afastando em um vaivém do que se entende em grupo e do que se entende sozinho. As reflexões de Cícero nos vêm como metáfora do crescimento. Um crescimento nem sempre fácil, nunca visível. Eu olho para Cícero, olho para Renata, me vendo criança e procurando “as Donas Marias” da minha vida; mas também me vendo mãe, elocubrando quem serão estas pessoas que já acompanham – ou vão acompanhar – minha filha. Desejando que as todas as crianças que enfrentam o mundo tenham chances de conversa e escuta. Acima de tudo, liberdade de pensamento.

 

A Coisa Brutamontes (CEPE Editora)

Textos de Renata Penzani

Ilustrações de Renato Alarcão

2018

Deixe uma resposta