GRUPO SOBREVENTO E O PORQUÊ DO TEATRO PARA BEBÊS

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Um bate-papo emocionante com o diretor do Sobrevento Luiz André Cherubini sobre as capacidades, direitos e possibilidades de um bebê diante da arte

cena do espetáculo Bailarina, do repertório do Grupo Sobrevento
cena do espetáculo Bailarina, do repertório do Grupo Sobrevento

Poucas coisas são tão delicadas quanto acompanhar o desenvolvimento de um bebê. Eu tenho seis sobrinhos, vários amigos com filhos, estudei e falei 8 anos sobre o tema na revista Crescer e hoje, com a minha filha Clarice, o encanto só aumenta. Mas existe um outro lado desta história hoje em dia: um comércio maluco que nos impõe muitas demandas de consumo, inclusive de atividades culturais. Há inúmeros grupos se formando para, unidos e com seus bebês em mãos, ouvir rock ou samba, brincar como antigamente, fazer piquenique, praticar ioga… E, claro, em nome disso, uma porção de equívocos.

Em 2007, o Grupo Sobrevento, já referência em teatro de animação ousava trazer pela primeira vez ao Brasil um festival totalmente dedicado aos bebês. Era uma parceria com a companhia espanhola La Casa Incierta, considerados os pioneiros no mundo. Pedi a companhia de um grande amigo, Giuliano Tierno, diretor de teatro, arte-educador e contador de histórias para assistir comigo. Parafraseando um texto do uruguaio Eduardo Galeano, eu precisava que ele “me ajudasse a olhar aquela beleza”. Eu saberia julgar aquilo?

A experiência foi fabulosa: bebês mudos por 30 minutos. Atentos, entregues, poetizando a si mesmos. Em contato com a arte no tempo e no silêncio deles. O Sobrevento, então, começaram, anos depois a fazer seu próprio festival anual. Conseguiram apoio financeiro por leis de incentivo, a acolhida da cidade de São Bernardo do Campo e, este ano, estão na terceira edição do Primeiro Olhar: Festival Internacional de Teatro Para Bebês, com espetáculos do próprio grupo e de companhias estrangeiras, além de oficinas e encontros sobre o assunto, em São Bernardo em São Paulo. Tudo voltado para crianças de 0 a 3 anos. Esta temporada vai até dia 31 de agosto, domingo que vem (saiba toda a programação aqui), e grátis! Não percam esta ou uma futura chance.

Luiz André em cena do belíssimo Meu Jardim, espetáculo que assisti com a minha filha Clarice
Luiz André em cena do belíssimo Meu Jardim, espetáculo que assisti com a minha filha Clarice

Quando a minha filha Clarice tinha pouco mais de 1 ano, fomos assistir ao Meu Jardim, belíssimo. Eu não sabia como agir quando ela foi para o meio do palco explorar o cenário. Luiz André Cherubini, ator e diretor do Sobrevento, do palco acenava para que eu me acalmasse e deixasse Clarice livre. Neste bate-papo emocionante que tive com ele, pai de Laura e Lourenço (os dois principais motivos de ele iniciar sua pesquisa), dá para entender melhor o que estava acontecendo ali: arte pura. Os bebês nos lembram quem nós realmente somos e nos fazem perceber, com a capacidade que guardam de se maravilhar com as coisas, com a emoção profunda que sentem (sobretudo com o seu medo e a sua piedade) o ato sagrado e poderoso que o Teatro é.”

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Luiz, a primeira vez que ouvi falar em “teatro para bebês” eu trabalhava na revista Crescer e foi naquele primeiro encontro que vocês fizeram sobre o assunto, no Sesc Pinheiros, em 2007. No jargão sem delicadeza alguma do

jornalismo, fui “para checar” do que se tratava. Por quê? Porque, todos os dias na Crescer, e cobrindo a área de cultura, eu não aguentava mais o monte de produções sem qualidade (em todas as áreas da arte) que caíam em nossas mãos, em nome de ser “bom” para o bebê (seja vendendo promessa de vínculo ou inteligência). E, claro, me deparei com aquela quase magia poética que La Casa Incierta apresentou. E entendi que a categoria de teatro vinha respeitar o bebê, a criança, a família e toda a sutileza que tem esses momentos e experiências. Pergunto a você: qual é o segredo disso? A que você atribui esse espécie de “ponto certo” desta arte, esse tom a que chegaram que proporciona ao espectador um encontro tão profundo?

LUIZ CHERUBINI: Acho que um ator que se dedique ao Teatro para Bebês deve fazer um exercício de humildade e deve estar disposto a aprender, mais que a ensinar. Deve colocar-se de igual para igual com os bebês (quando no Teatro, normalmente, os atores estão acima dos espectadores). Deve questionar as muitas certezas que há acerca dos bebês e as suas próprias certezas, porque o Teatro é filho da dúvida. Deve abrir mão das muitas cartas na manga, mecanismos de sedução, truques (que costuma chamar de técnica), em prol de um encontro consigo mesmo frente e por meio dos bebês. Deve questionar o ator que se tornou e o Teatro que o Teatro se tornou (porque o Teatro já foi e pode ser muitas outras coisas além do que é). Deve lembrar que público não é sinônimo de espectador e que todo Teatro é um encontro, mais do que uma exibição. Deve acreditar profundamente que a capacidade poética e de comunicação são inatas em todo ser humano e que todo ser humano é pleno desde que nasce. Acredito que assim – e até mesmo duvidando de tudo isto – chegaremos a um Teatro honesto, franco, puro e digno -mesmo quando errado e mal sucedido. Os bebês nos lembram quem nós realmente somos e nos fazem perceber, com a capacidade que guardam de se maravilhar com as coisas, com a emoção profunda que sentem (sobretudo com o seu medo e a sua piedade) o ato sagrado e poderoso que o Teatro é.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Este é o terceiro festival. O que mudou de lá para cá? Quais os ganhos? Vocês precisaram mudar algo seja na hora de “convencer” teatro ou patrocinadores ou algo assim? E na divulgação?

LC: Continuamos buscando, tentando entender o Teatro para Bebês e, como eles, estamos só engatinhando. A cada edição do Festival, buscamos um novo questionamento e uma aproximação cada vez mais profunda com os artistas que recebemos. Desta vez, queremos discutir a criação no Teatro para Bebês, estimular a criação neste campo, para este público. Para isto convidamos espetáculos que são pioneiros, espetáculos primeiros que, de alguma maneira, constituem-se em uma espécie de declaração de princípios, princípios diferentes, porque nascidos de diferentes artistas, advindos de diferentes campos da criação artística. Fazer Teatro para bebês não é fácil: ele enfrenta muitos preconceitos pelo simples fato de que os bebês são considerados e tratados pouco mais do que como cachorros – por isto não têm direito à Cultura. Nós que somos pais, professores, artistas do Teatro para Bebês sabemos da importância da primeira infância, mas nós ainda temos meio mundo para convencer disto. O que fizemos desde a primeira edição? Estendemos o Festival, que antes só ocorria em São Bernardo do Campo, a São Paulo. Estendemos os Festivais a creches públicas, porque o Teatro deve ir ao público, do mesmo modo que o público deve vir ao Teatro: é preciso ver que existe um grande público que não está habituado e que não se sente no direito de freqüentá-lo, o que nos parece muito injusto. Fizemos, com a cidade de São Bernardo, uma parceria que não só nos ofereceu espaço e condições para levar Teatro para Bebês para todas as creches públicas e conveniadas da cidade, atendendo mais de 7 mil bebês em um projeto que levou o Teatro para a primeira infância pela primeira vez às creches no país. Fizemos oficinas para cerca de 400 professoras de creches da cidade. Reafirmamos nossa certeza de que devemos tentar evitar ao máximo a cobrança de ingressos, a fim de reunir famílias de diferentes origens e classes sociais em um mesmo encontro, já que, naturalmente, diferenças de poder aquisitivo, linhagem, roupas, cortes de cabelo e cor de pele não fazem nenhuma diferença. Conseguimos preservar, no ambiente do Teatro, uma distância de marcas e empresas, a fim de evitar a constrangedora associação com o consumo, em um momento e situação de grande delicadeza. Temos o patrocínio do Proac para a realização deste Festival – verbas públicas oriundas de um programa paulista de apoio à Cultura – e o apoio da Prefeitura de São Bernardo e acreditamos que isto nos garanta a independência de que precisamos. O nosso cuidado com a divulgação é o de atrair um público que não seja mais numeroso do que o que somos capazes de receber (sobretudo oferecendo a possibilidade de fazer reservas e limitando os acompanhantes dos bebês a um único adulto). Toda a programação continua sendo gratuita e a prioridade de entrada é sempre dos bebês e o que facilita as coisas é o bom senso do público e o fato de se sentirem como convidados em nossa casa, ou como companheiros, e não como tendo adquirido um serviço ou colocando-nos como servidores.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Há famílias que vão mas ainda lutam para se enquadrar ou se adequar ao ritmo dos espetáculos? Penso que temos que abrir mão de tantas perturbações cotidianas para entrarmos no clima das peças, não? (falo como

mãe mesmo). Tem alguma história para contar, algum caso inusitado?

LC:  Vemos uma ansiedade muito grande dos pais, o que é natural. Nas creches, não precisamos explicar muitas coisas, mas quando recebemos um público familiar, temos que dar muitas indicações, como pedir que deixem o bebê assistir ao espetáculo como desejar (os pais costumam conduzir o olhar das crianças), como deixar que o filho assista ao espetáculo livremente, que deixem que ele sinta algum medo ou tristeza que queira sentir, sem trocar a atenção do espetáculo por uma atenção para si, além claro de ter que pedir para que os pais não tirem fotos ou que desliguem o celular. A tensão dos pais é muito grande – afinal de contas toda a ida ao Teatro demandou um esforço tremendo e uma grande preparação, ainda que não devesse ser assim – e temos visto cenas inacreditáveis de pais perdendo a compostura quando se vêem diante da possibilidade de que não haja lugares suficientes para todos os bebês na plateia. É claro que procuramos entender e contemporizar, mas há coisas incríveis que um bebê não deveria ver o seu pai fazendo, como dizer “já entrei, mesmo sem ingresso, e quero ver quem me tira daqui”.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Como você descreveria a mudança ou o benefício para o bebê de ter contato com um espetáculo como de vocês?

LC: Parafraseando Manoel de Barros, temos certeza de que o Teatro é muito importante, mesmo não sabendo para quê. Sabemos, sim, que é muito bonito ver pais saírem com os seus bebês e se encontrarem com outros pais com bebês. Sabemos que os bebês entendem tudo o que dizemos e fazemos – e profundamente – e se emocionam com os espetáculos a que assistem. Sabemos que o Teatro é uma oportunidade de os bebês verem, ouvirem, sentirem coisas a que não estão habituados, por excesso de proteção, por preconceito ou por um hábito impensado: por exemplo, bebê gosta de violino tanto quanto de xilofone e de branco, tanto quanto de azul claro. E sabemos que é muito emocionante e surpreendente fazer Teatro para Bebês, seus pais e seus professores e que eles também parecem se surpreender e se emocionar com o Teatro que fazemos – porque o nosso Teatro não é feito para agradar e atender expectativas e nem é feito para crianças somente acompanhadas de babás. E quando autoridades dizem que, no Teatro, os bebês gostam de sons, cores, luzes e movimentos, para nós, é o mesmo que alguém dizer que os amantes da poesia gostas de letrinhas pretas sobre um papel branco… ou seja, não estão falando nada de Teatro ou de poesia e não estão entendendo nada do que e importante entender. Se estas autoridades pudessem, como nós, atores, olhar nos olhos dos bebês veriam o mundo tão vivo, profundo, complexo que acontece dentro de cada um deles.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: E o que pode afetar no modo de ser, de viver dos adultos que estão vivendo aquela experiência? Você acredita que é uma contribuição por um mundo melhor?

LC: Eu não acredito que seja possível haver uma arte cínica. Mesmo a mais destruidora das artes quer, no fundo, construir alguma coisa. Os bebês ensinam os pais a ver o teatro de outra maneira. Em um espetáculo para bebês, por exemplo, você não pode dar uma ajeitadinha em um pé mal posicionado, porque aquele gesto irrelevante no teatro adulto ganha uma significação enorme frente aos bebês, que, naquele momento, estão justamente olhando para o seu pé. Uma folha que cai em cena, para um bebê é uma grande aventura, uma grande maravilha, e o adulto que está ao seu lado passa a ver as coisas também desta maneira. Assim, o Teatro para Bebês é uma descoberta também para os pais: a descoberta de um novo olhar – ou de um velho olhar, de um olhar que existiu um dia. E, claro, e também a descoberta da autonomia e da plenitude de seu bebê, que é capaz de ficar meia hora, uma hora, não entretido ou comportado ou calado, mas envolvido emocionalmente, poeticamente, com um acontecimento teatral, sem depender de ninguém, escolhendo e decidindo o que quer e como quer. Os bebês são plenos – a eles não falta nada que seja importante para um ser humano – porque trabalhar, produzir, consumir, ter controle de suas necessidades fisiológicas, falar não são parâmetros que nos sirvam para separar bebês de adultos. Nós acreditamos em um mundo melhor, queremos um mundo melhor e achamos que os bebês nos recordam a fragilidade e a humanidade que há em nós – e de que freqüentemente nos esquecemos.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Você, Luiz, pai, artista, agente de mudançasŠ o que guarda de especial no seu Esconderijo do Tempo? O que é que quando você lembra abraça sua alma?

LC: Lembro, com um amor imenso, de meu pai, cansado, com sono, ao pé de minha cama, no escuro, contando histórias para eu dormir. Conto as mesmas histórias, da mesma maneira, para os meus filhos. A primeira infância é muito importante. Uma agressão, uma rejeição, uma violência, a falta de afeto, nesta idade, deixam marcas profundas, indeléveis. É preciso lutar com fé contra o preconceito com os bebês, privados de direitos, do acesso à cultura, da integração social, de uma vida comunitária, vítimas da ignorância, do descaso, do egoísmo, da soberba, de certezas vazia, do cinismo, do utilitarismo, da mercantilização de tudo. Fazer teatro para bebês não parece grande coisa, mas, para mim e para o Sobrevento, é tão importante quanto contar histórias para um filho dormir.

 

Mais informações no: sobrevento.com.br

ou no facebook.com/grupo.sobrevento

 

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