Nelson Cruz: 4 perguntas sobre Mestre Lisboa

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Passo da Ceia, Aleijadinho
Passo da Ceia, Aleijadinho

 

Eu tinha 11 anos quando vi pela primeira vez, bem de perto, as imagens dos Passos da Paixão, esculpidas por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, na cidade de Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Eu fazia uma viagem pela região com meus tios Rosa e Walter. Jamais esqueci da emoção daqueles detalhes. Eu nunca tinha visto nada igual, claro. E até hoje. Nada é como aquilo. Estive novamente lá em 2008, com meu marido, e a emoção aconteceu também, embora algumas partes estivesse em reforma… Por isso, quando soube da nova edição de Mestre Lisboa, O Aleijadinho (Ed. Lê) uma biografia ilustrada lançada originalmente pelo ilustrador e escritor Nelson Cruz, quis ver de perto.

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Da capa a gente sente que se trata de uma homenagem. Uma homenagem a um mestre das artes no Brasil, com uma vida cheia de incertezas quanto a registros históricos. O que temos dele, claro, sem qualquer controvérsia, é justamente sua obra nas igrejas e na cidade de Congonhas, que também abriga os 12 Profetas, uma das mais completas séries da arte cristã ocidental. Neste livro, Nelson (que é mineiro de Belo Horizonte!) nos oferece história, com H maiúsculo, exibindo em textos e ilustrações, a cronologicamente a trajetória de superação deste artista considerado pelo curador do Museu do Louvre o último grande escultor sacro da história da arte mundial. Com ilustrações de páginas inteiras e intervenções em altos e pés de página, como fragmentos da história que está contando, contextualizando ao leitor, usando o desenho como pequenos instrumentos de emoção e memória.

O que temos mais a comemorar é que edições como estas podem criar parâmetros como forma de se divulgar nossa história. Quero dizer: ferramenta para que leitores de todas as idades mergulhem em universos de saberes com leveza. Leveza que mantém respeito à tradição e aos fatos. Mas nos dão de presente uma espécie de arte sobre a arte. Ou, no caso de Nelson, mineirice sobre a mineirice.

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Conversei com ele sobre esta edição e descobri que Mestre Lisboa é também uma revelação de Nelson para si mesmo e, claro, para seus leitores.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Eu gostaria, por favor, de entender qual a diferença entre esta edição e da DCL, e se houve alguma alteração, por exemplo.

NELSON CRUZ: Para essa edição foram retiradas as molduras das ilustrações de página inteira. Em princípio, eu queria retirar todas as ilustrações de página inteira e fazer a nova edição apenas com as vinhetas. Mas, conversando com a Lourdinha Mendes, editora, e a Lílian Teixeira, programadora gráfica da Ed. Lê, elas me convenceram que valia a pena conservar as ilustrações grandes desde que fossem retiradas as molduras e ampliando-as para a página inteira. Houve uma revisão do texto também, claro. A apresentação da Cristina Ávila, historiadora, que era na orelha foi transferida para o miolo. Faz parte do livro. Também as páginas de guarda, criadas pela Lílian, que não existiam na edição anterior, acrescentaram forte valor artístico, gráfico e visual ao livro.  Uma informação histórica que é contada na ilustração do Adro dos profetas e que fiz questão de reforçar  na página 3 da nova edição é o profeta Amós segurando um cajado.

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Durante as pesquisas encontrei no Museu da Imagem, de Congonhas, uma fotografia do final do século XIX ou início do século XX que registra a escultura do profeta segurando um cajado. Voltei ao Adro e vi na escultura, ao lado do pé direito do Profeta, um furo na pedra e percebe-se que a mão direita foi esculpida na posição de quem segura um cajado. Por ação do tempo ou vandalismo essa peça foi retirada da escultura.

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Essa informação deve aparecer em alguma edição sobre o Aleijadinho mas, nos livros e matérias que consultei, essa informação não aparece. Como ilustrador, fiz questão que a informação constasse na imagem.  Outra informação de que me orgulho nesse livro é a ilustração da página 12, onde está retratado o casarão onde funcionou a primeira escola profissionalizante em Minas criada pelos padres franciscanos. O pai de Antonio Francisco, Manuel Francisco Lisboa que era arquiteto e construtor, deu aulas nessa escola. E é nessa escola que certamente, Antonio Francisco estudou arquitetura, construção, aprendeu a ler e escrever. Atualmente, o casarão pertence a particulares. 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: O livro foi um desejo seu, ou um pedido?

NC: A partir de 1985, quando ainda investia na carreira de pintor, passei por um momento de transição na minha pintura. Não sabia bem por qual caminho seguir. Ser caricaturista na imprensa, investir na ilustração ou tentar um pouco mais o mercado de artes plásticas. Resolvi, então, pesquisar o trabalho do Aleijadinho, que era uma paixão distante, e compreender melhor o período barroco em Minas Gerais. Poderia vir daí alguma direção. Comprei uma mini máquina de escrever, livros sobre o barroco mineiro, fui nas cidades barrocas onde Antonio Francisco Lisboa trabalhou, fotografei bastante, consultei documentos em arquivos públicos, bibliotecas, desenhei muito. Era importante para mim assimilar sensorialmente as curvas, o desenho e as linhas do barroco. Mas, principalmente, me encantei com as possibilidades das histórias daquele período.  Guardei esse estudo e, desde então, me incomodou a não existência de uma biografia de Antonio Francisco Lisboa voltada para o público jovem. As biografias existentes sobre o período barroco ou o Aleijadinho contemplam, na maioria das vezes, o público adulto e é de leitura pouco estimulante para o público jovem e mesmo até o adulto. Na verdade, escrever essa biografia foi um pedido que eu mesmo me fiz. Levei um bom tempo para realizá-la devido à maturação que o projeto merecia.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: Quanto tempo pesquisou e levou para montar esta biografia?

NC: Não tenho como precisar o tempo de pesquisa. Começo a pesquisa em 1985, ou seja,  três anos antes de iniciar o trabalho com o mercado editorial e o primeiro livro só foi publicado em 2008. Só me lembro que quando enviei a proposta para o Raul, da DCL, a biografia já estava escrita. A partir da aprovação da proposta, criar o projeto gráfico, editar o texto, criar as ilustrações e finalizar todo o projeto foram, aproximadamente, cinco meses de trabalho.

ESCONDERIJOS DO TEMPO: O que mudou, depois desta pesquisa, na sua concepção de Aleijadinho como artista e o que mudou em você como artista?

NC: Curioso é que não houve uma alteração substancial na minha pintura, que considerasse o estilo barroco como um ponto de partida. Mas, curiosamente, passei a preparar estudos para as pinturas com formas geométricas distorcidas e nesses ambientes passei a desenhar e ainda desenho uma cabeça mascarada com asas como se fosse uma versão estilizada de um anjo barroco. Outro personagem que surgiu no meu desenho foi uma ave que chamo de pássaro-pássaro e uma figura humana meio cubista, sempre de chapéu. Toda composição que fiz a partir dos meados dos anos 1980 tem esses três personagens. Às vezes juntos, outras vezes isolados. Não consigo, ainda hoje, criar uma pintura sem esses personagens. Essas elaborações não aparecem no meu desenho de ilustração. Ficaram para as telas.

Agora, ter o conhecimento do que foi a trajetória desse grande artista brasileiro dividiu a minha vida sim. A história do período barroco mineiro passou a fazer parte dos meus pensamentos. Por isso, fiz Dirceu e Marília, Bárbara e Alvarenga e Chica e João. (Nota do Esconderijos: são livros da coleção Histórias para Contas História, da Cosac Naify)

Voltando ao livro, há percepções no traçado das esculturas que Antônio Francisco desenvolveu, sem ter contato com a arte que se fazia naquela época pelo mundo, que, a meu ver, vislumbrava lampejos do que aconteceria em breve nas artes, o modernismo. Em suas últimas esculturas no Adro do Santuário de Matozinhos, em Congonhas, as dobras dos tecidos dos profetas sugerem geometrias que se descolam da anatomia e das convenções artísticas da época e até dele mesmo.  Suas formas evoluem revelando que ele não era apenas um escultor de imagens sacras, era um artista em franca evolução. Seguia espontaneamente a linguagem das linhas e do desenho na escultura. Na cena do Passo da prisão, a escultura do Cristo aparece plena de linhas que seguem e dobram formando geometrias que não abandonam a proposta de se esculpir um Cristo clássico. Mas, que é moderno.

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Pena que a porfiria, a doença que o acometeu, limitou seus gestos em plena maturidade artística. Foi com muita empolgação que, Germain Bazin, curador do Museu do Louvre nos anos 50, que escreveu um dos mais importantes livros sobre o escultor, afirmou que Aleijadinho foi o último grande escultor de arte sacra da história da arte mundial.

 

 

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