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O ELEFANTE ENTALADO

 

 

ELEFANTEENTALADODENTRO 

Posso entrar? – perguntou o elefante, espiando dentro do quarto, fazendo enorme esforço para se segurar, com as patas dianteiras, no batente da janela.

– Como você chegou aí? – perguntou o menino, assustando-se e recuando até cair sentado na cama e largar o celular que estava usando.

– Depois eu explico. Posso entrar? – insistiu o elefante.

– Se você conseguir…

– Vou tentar…

Entalou.

Esta é a porta de entrada para O Elefante Entalado (Ed. Ficções), o mais recente livro de Alonso Alvarez, com ilustrações de Fê. Nem para o real, nem para o fantasioso completamente. De cara, uma conexão entre nossos dois mundos possíveis sem que a gente duvide que é verdade. Se está no livro, é verdade, não?

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A história do livro é essa mesma que você entendeu. Numa quarta-feira qualquer, Luís, um garoto que todos os dias passa algumas horas sozinho em casa entre a escola e os pais chegarem do trabalho, presencia a inusitada visita de um elefante indiano de cinco toneladas que entra pela janela de seu quarto, em um apartamento de 13o andar. Na verdade, entrar ele não entra: ele entala e é aí que nasce uma desesperada busca para ajudar o animal a sair daquela situação (ou janela). Qual foi a primeira coisa que o menino fez? Uma foto. A segunda? Compartilhou em uma rede social. Depois ele pede ajuda para o zelador, o síndico, outros moradores do prédio, pessoas passando na rua… mas ninguém acredita nele e tampouco no que vê. Porém, a conversa do menino com o elefante e uma série de sacadas que o livro propõe faz da viagem deste infantojuvenil o próprio convite a esta leitura. E nos joga a pensar nas solidões e amizades de hoje. Ou vice-versa.

Alonso conta que a ideia desta história surgiu “de uma visão”. “Eu tinha uma livraria em frente ao Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro. Morava no prédio em cima dela, no 13º andar. Uma tarde, voltando do banco na avenida paulista, do outro lado da rua, na calçada do Centro Cultural, olhei para a janela do meu quarto e ‘vi’ a bunda enorme do elefante entalado. Entrei na livraria, peguei uma filipeta sobre o balcão e escrevi: ‘Posso entrar?’. Daí surgiu toda a história. Queria acabar e pensei que o elefante tinha a ver com a Índia e que eu estava numa livraria e deveria ter algum livro sobre Índia e elefantes; achei um sobre civilizações na Índia e tinha um capítulo sobre os elefantes.”

 

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Autor também de O Encanto da Lua Nova e As Horas Claras, outros dois juvenis, o escritor conta que originalmente a turma de personagens dos livros entraria. Mas, depois, decidiu colocar só um menino e aí entraram os pais. Perguntei se era uma intenção mostrar a ausência dos pais na vida do menino. “Nos juvenis, os pais nunca estão sempre ausentes por causa da rotina do trabalho e da sobrevivência. E atrapalhariam, se entrassem, rsrs”, sugere Alonso.
PAIXAOAEZCAPA Conheci o escritor Alonso Alvarez com o lançamento de Paixão de A e Z (Ed. Peirópolis), em 2010. Sem brincadeiras com o título, me apaixonei de cara. Com ilustrações de Marcelo Cipis, conta a história de amor e de encontros e desencontros entre as duas letras que, distantes no alfabeto, encontravam-se nas palavras. Com o tempo, fui descobrindo que as história de Alonso estavam muito além dos livros que escrevia. Ainda adolescente, decidiu escrever um livro. “Com 13 anos entrei no Senai pela Caterpillar, uma fábrica de tratores. Entrei na mecânica e adorei. O professor de português curtia as minhas redações e nos seis meses que ficava na fábrica, nas horas do almoço, em vez de jogar truco, de macacão, eu e um amigo líamos Torquato Neto.” Em uma troca de emails recente, ele disse para mim que seus livros são inspirados nos tempos em que ele tinha duas livrarias, lembranças claramente recheadas de carinho. Iniciei uma conversa com ele justamente porque eu estou pensando muito sobre a situação das livrarias no Brasil como experiência cultural, poética e de incentivo à escolha da leitura.

Bem, daí surgiu esta conversa que vocês acompanham a seguir.

 

ESCONDERIJOS DO TEMPO: O que impulsionou você a abrir as livrarias. Qual a história de nascimento de cada uma delas?

ALONSO ALVAREZ: Não sei como surgiu a ideia. Ainda nos tempos de mecânica, um dia, nos agitados anos finais da ditadura militar, no vestiário dos operários da empresa Hyster, onde trabalhava como projetista de máquinas de produção, do nada, dei uma opinião ingênua ao comentar uma conversa sobre a doação de um terreno do governo para o Corinthians. Isso fez se aproximar de mim um militante que acabara de sair da clandestinidade e trabalhava na mesma seção. Me convidou para participar do sindicato. E eu fui! Por curiosidade. Naquela semana, quando entrei no ônibus para ir ao sindicato, aos poucos fui identificando muitas outras pessoas da empresa na mesma lotação e assim comecei a participar do movimento operário, nas famosas greves de 1979. Ao entrar na universidade, para cursar História, fui participar do movimento estudantil, nos tempos da UNE ilegal, não reconhecida pela Ditadura, e cheguei a ser eleito diretor cultural da UEE/SP por duas vezes. Em 1985, com um grupo de ex-militantes, inauguramos a livraria Artepaubrasil. O convite reproduzia um desenho cedido pelo cartunista Henfil, e a festa de abertura foi feita no dia 15 de março de 1985, quando Tancredo Neves tomaria posse; o que não ocorreu.

ESCONDERIJOS: E o lugar se tornou uma referência naqueles tempos nada fáceis ainda…

ALONSO: Era uma livraria visitada quase que exclusivamente por jovens. Era politizada e ecológica (entre outras coisas, fiz os lançamentos dos livros do Gabeira, tão logo ele voltou do exílio). Era poética e literária (a decoração tinha poesia por todos os lados e vendíamos caixas e caixas de livros de poesia toda semana). A música nas caixas estava sempre em volume alto, tocando rock, jazz e blues. O acervo era selecionado: não vendíamos best-sellers e livros da moda, mas muitos escritores brasileiros tinham toda a obra nas estantes, como Drummond, por exemplo. Inventamos os famosos postais poéticos, centenas de tipos, com muitos poetas participando. Vinha gente do outro lado da cidade, de outras cidades, para comprar, colecionar.

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Mas com o tempo fui descobrir que a livraria era na verdade uma extensão da minha biblioteca particular, uma espécie de livraria “autoral”. Claro, a minha biblioteca pessoal crescia com a livraria, com a chegada dos livros, com a descoberta de escritores. Foi assim que encontrei Borges e ele, de forma silenciosa e sorrateira, tornou-se uma espécie de “comprador” de livros das minhas livrarias. Eu lia tudo dele e ele sempre apresentando escritores e livros, que eu ia trazendo para as estantes.

Na livraria noturna, tinha um Café, no andar de cima, vinculado ao tradicional Café do Bexiga, com um pequeno palco, um piano (jazz às sextas e sábados), uma Parede de Poesia “Oswald de Andrade”, onde surgiu a coleção “ptyx” – com ela ganhei o Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial, em 1991, e o Prêmio Artes Gráficas. Essa livraria só fechava duas vezes por ano: Natal e Réveillon.

ESCONDERIJOS: O que você mais amava que acontecia dentro delas? Qual ou quais são as lembranças mais doces e as mais amargas destes tempos?

ALONSO: Além das livrarias cheias nas noites de sábado, como ponto de encontro da juventude na época (o bairro do Bixiga era uma espécie de praia do paulistano), as lembranças mais doces são as amizades com poetas e escritores. Eles eram a minha “universidade de literatura”. Ali estava o ex-torneiro-mecânico passando horas com eles, no Café, entre queijos e vinhos, descobrindo Rimbaud, Vallejo, Guillén, a poesia moderna da Coréia, da Hungria, Pessoa, Borges, entre muitos, e conhecendo ao vivo poetas como Augusto de Campos, Leminski, Manoel de Barros, José Paulo Paes e tantos e tantos outros… Foram tantas histórias. Outro dia contei na Ilustríssima como me perdi com o poeta Manoel de Barros na Avenida Paulista ao conseguir, pela primeira vez, trazê-lo para um evento público no “Artes e Ofícios da Poesia”, no MASP.

A lembrança mais amarga foi quando Collor ganhou a eleição; quando venceu Lula. Na semana seguinte a segunda-feira ficou vazia e triste no Bixiga. De uma hora para outra, as pessoas perderam a vontade de se encontrar para jogar conversa fora, relaxar no começo semana, o que era muito comum. A segunda-feira no Bixiga juntava muita gente pelos bares e nas mesas pelas calçadas. Uma espécie de ressaca da agitação do final de semana. Mas a sombra de Collor foi se estendendo ao longo dos outros dias da semana, esvaziando-os também, até a rua 13 de maio parar de pulsar e a sua vida noturna praticamente morrer.

 

 

ESCONDERIJOS: Por que e quando elas fecharam?

 

ALONSO: Resolvi tirar um ano para passar a limpo as histórias infantojuvenis que eu escrevia no balcão da livraria noturna. Tinha sacos plásticos cheios delas. Eu morava no prédio em cima da livraria que ficava em frente ao Centro Cultural SP. Continuei com essa livraria e os outros sócios escolheram a do Bixiga. Resolvi me separar deles, pois eu ia entrar numa rotina de indisciplina, varando noites, lendo na Biblioteca do Centro Cultural, escrevendo. Foi quando surgiu o juvenil O Encanto da Lua Nova, o primeiro a ser passado a limpo, que na época o original ganhou recomendações do Marcos Rey, José Paulo Paes, Fanny Abramovich, Miguel Sanches Neto entre outros. Mas o livro só foi lançado 11 anos depois!

 

ESCONDERIJOS: Por que delas nasceram tantas histórias em você? Era uma observação da vida?

 

ALONSO: Borges dizia que um livro surge de outros livros. Os meus surgiram das minhas livrarias. Comecei a escrever livros infantis quando abri a primeira livraria, em frente ao Centro Cultural SP. Não sabia nada de livros. Nada mesmo! Percebi que precisava conhecer livros e escritores para então saber o que colocar à venda na livraria. Não podia confiar apenas nos vendedores das editoras. Entre outros cursos, fui fazer um de literatura infantil na antiga Brasiliense, nos tempos do editor Caio Graco. O curso durou três meses, dirigido por Maria da Graça Abreu, a pedagoga, que me apresentou Propp e a sua “Morfologia do Conto Maravilhoso”. Lembro que ela falava muito dos “nós” nos contos de fada. Aí, ao terminar o curso, por brincadeira, com cartolinas coladas, inventei um livro com uma história de um NÓ de verdade: Era uma vez duas Linhas. Essa história ficou numa caixa por duas décadas, sobreviveu a três mudanças de casa, e em 2012 mostrei para o Marcelo Cipis; ele gostou, virou livro seguindo o meu boneco, e chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti 2013, infantil.”

 

ESCONDERIJOS: Para você, a literatura e a poesia salvam? Se sim, em que medida? Por quê? Aconteceu algo com você que pudesse exemplificar isso?

 

ALONSO: Não gosto de ver propagandas nas mídias sociais idolatrando o livro, com aquele tipo de mensagem que soa um pouco arrogante e presunçosa ao afirmar que ao não ler livros as pessoas seriam menores ou piores; ou ao contrário: aquele que lê muito, uau! é o cara perfeito! Essas propagandas são até constrangedoras para quem escreve livros; no meu caso, pelo menos. E assim, “ler livros” fica com cara de obrigação, tipo voto obrigatório, serviço militar. Quem gosta? E eu desconfio dessas pretensas “formações humanas” a partir da leitura, as tais “influências literárias” dos clássicos. Quando vejo isso, lembro que muitos ditadores e psicopatas viram e veem a arte dessa maneira. Isso até é usado no cinema quando se quer ilustrar um personagem “maligno”, como no filme “O silêncio dos inocentes”, onde Hannibal Lecter se deleita ouvindo música clássica enquanto mastiga uma orelha que acabou de arrancar com a própria boca de um policial. Claro que os clássicos são demais e atravessaram e atravessam os tempos emocionando gerações de leitores. Mas é legal lê-los como foram lidos pela primeira vez: com curiosidade e encantamento, sem qualquer outro tipo de obrigação. E abandonar, se achar que está chato, pois às vezes não é a hora.

A poesia, aprendi com Manoel de Barros e Leminski, é um inuntensílio. Para que serve? Para revelar o belo e nada mais; simples assim.

 

MAIS SOBRE ALONSO no site alonsoalvarez.com.br

ARTE E CRIANÇAS: TEM JEITO CERTO?

 Gabriella Mancini é jornalista, autora do livro Na Rua da Aquarela (Ed. Girafinha) e roteirista. Como é uma apaixonada pelas artes para crianças assim como eu, é Convidada do Esconderijos para falar sobre a experiência dela em três encontros sobre o assunto que aconteceram em setembro deste ano

 

GENERICAARTESBE
É outubro o mês das crianças, certo? Mas setembro de 2014 foi um mês para pensar a infância.  No Rio de Janeiro ou em São Paulo, eventos como Fil – Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens, Comkids (conjunto de iniciativas para a promoção e a produção de conteúdo de qualidade para crianças e adolescentes) e Fici – Festival Internacional de Cinema Infantil reuniram especialistas e interessados em discutir a melhor maneira de fazer arte para crianças. Depois de tanta reflexão, a única certeza que tive é de que não existem fórmulas ou regras. Diante da criança, somos todos aprendizes. Ela vai sempre nos surpreender.

 

Durante o Comkids, a turma do canal de TV argentino Pakapaka apresentou um caso que exemplifica isso de uma forma curiosa. Eles se reuniram com várias crianças para apresentar os programas audiovisuais que pretendiam lançar. O público prestou atenção nas projeções, mas o que realmente lhe seduziu foram as projeções de bolas abstratas que dançaram sobre a tela após o fim da exibição. Elas não passavam de uma espécie de descanso de tela, que o projetor deixou escapar quando os filmes terminaram. As crianças ficaram hipnotizadas com aquelas imagens — para nós apenas tecnologia; para elas, poesia.

 

Para mim, a linguagem da infância se mostra cada vez mais metafórica e poética, porque a criança não é lógica como a gente. Ela é muito mais complexa. Parece que a gente é que vai simplificando a vida, desaprendendo a novidade, criando clichês, vícios, limites. Para mim, escrever para crianças é muito mais difícil que para adultos justamente porque, para elas, tudo vale, tudo é possível: o que nos desafia a ousar muito mais.

PENSARINFANCIA

Num bate-papo do FICI sobre trilha sonora para crianças, o músico e compositor Tim Rescala contou sobre as críticas que recebeu de amigos, adultos, quando pensou em fazer sua primeira opereta para crianças. Eles tinham receio de que as crianças não entendessem melodias tão sofisticadas. Pois no final das contas quem não entendeu foram os adultos. As crianças adoraram a obra! Seria uma espécie de liberdade? Hélio Ziskind, um dos mais importantes compositores para programas infantis do Brasil (Cocoricó, Castelo Rá-Tim-Bum e por aí vai), disse uma frase que talvez resuma tudo: “Não é questão de idade. Comparo a música com o mar: tem criança que nada profundo, tem adulto que nada no rasinho.” Temos muito a aprender com sua sensibilidade, que não tenta explicar o mundo – e muito menos a arte. Elas querem experimentar, e não racionalizar. E é nossa responsabilidade oferecer a esse público o melhor e mais amplo repertório, aproveitando sua curiosidade e receptividade, em lugar de limitá-la.

 

Por isso, a única maneira de falar com a criança parece ser, como disse o escritor e compositor Flávio Paiva numa mesa do Fici, olhar para a criança, e não pela criança. É ela quem sabe o que é melhor para si. E, por não conseguir racionalizar o porquê de gostar de algo, cresce a importância de encontros como estes fóruns, para trocar o que experimentamos e aprendemos junto a elas.

 

Sempre saio desses encontros achando que sei quase nada, cheia de perguntas, mas também cheia de vontade de experimentar. A turma do Comkids, por exemplo, nos desafiou a tentar contar histórias para as crianças não apenas de forma narrativa nem somente da maneira clássica. Não precisamos recorrer à nossa forma de ordenar os fatos ou organizar o mundo. Tampouco buscar modelos na criança que fomos. Porque a criança não está atrás de nós. A criança é a vanguarda.

 

 

 

X FESTIVAL A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS EM SP

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A biblioteca da minha infância chama-se Chácara do Castelo, localizada na zona sul de São Paulo. Eram os anos 80, eu estudava em uma escola estadual e aquele incentivo à leitura “ideal” não era uma prioridade. Com algumas exceções (bem importantes, por sinal), não estão em minhas lembranças ações de convite ao amor pelos livros como hoje estudo e vejo por aí. A Chácara, no entanto, é meu refúgio de esconder no tempo. Ia muito lá com a turma da sala de aula, mas lembro demais das visitas com uma amiga da minha rua, Ariane: a gente lia tudo que podia, tentava decorar as histórias para, depois, transformar em peças de teatro e apresentar às nossas mães. Ao mesmo tempo, era o lugar do silêncio, de levar bronca… Porém, neste misto de sentimentos-lembranças, voltar a frequentá-la tem um gosto de conquista. Ou de fazer as pazes.

Pois se você tem uma relação como a minha diante das bibliotecas públicas de São Paulo (de aproximação e distância constante), amigo, você está perdendo tempo. Sim, há muito o que melhorar. Mas há também uma porção de maravilhas acontecendo dentro delas, vidas pulsam, histórias saem dos livros direto para a nossa alma. E não só literatura: as bibliotecas de São Paulo e outros pontos de encontros culturais espalham arte em música, cinema, fotografia, etc. Quer experimentar ou aproveitar o auge desta programação além-livros, além-pesquisas, além-silêncio, além-local-sagrado-do-saber? Confiram a programação da décima edição do Festival A Arte de Contar Histórias que começa sábado agora, dia 11, e vai até dia 19 de outubro. Bibliotecas, Pontos de Leitura, Bosques de Leitura, Ônibus-bibliotecas, Centro Cultural São Paulo, Centro Cultural da Juventude, Centro Cultural da Penha, Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes serão ocupados pelas histórias. E, neste ano, também a Biblioteca Mário de Andrade e uma parceria incrível com terminais urbanos de ônibus e praças públicas, vão formar uma rede pela leitura que abraçará todas as regiões da cidade e irá ao encontro do desejo mais íntimo de OCUPAR E PERMANECER NO ESPAÇO PÚBLICO por meio da convivência cultural.

Além das narrações orais – as contações de histórias – o festival também abriga mini-cursos básicos, avançados, palestras, shows, teatros, saraus e sessões de cinema. “Acredito que unimos dois símbolos do conceito de ‘comum’: o primeiro é a narração e a escuta de histórias, ou seja, o intercâmbio de memórias. O segundo é o espaço público que não é meu, nem seu: é comum a todos”, diz Giuliano Tierno de Siqueira, da Divisão de Programas e Projetos da Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo. “Também há uma diversidade da forma das narrações como, por exemplo, o contador que se apresenta sozinho, o que faz parte de uma dupla, com violão, origamis, tecidos e por aí vai.”

A programação é intensa e você encontra os detalhes no site do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo (o que, aliás, vale uma consulta frequente para se atualizar da programação ou mesmo consultar onde está o livro que você procura, SÃO MAIS DE 2, 5 MILHÕES), mas eu destaco aqui algumas das maravilhas:

 

BIBLIOTECA HANS CHRISTIAN ANDERSEN, foto site Gazeta Virtual
BIBLIOTECA HANS CHRISTIAN ANDERSEN, foto site Gazeta Virtual

QUANDO: ABERTURA 11 DE OUTUBRO

ONDE: BIBLIOTECA HANS CHRISTIAN ANDERSEN
(É a biblioteca temática de contos de fadas, uma das mais simbólicas da cidade) Avenida Celso Garcia, 4142, Tatuapé fone (11) 2295-3447

13h | Do Barro de Manoel
 Com a Cia. Teatro das Senhoritas

Um cortejo de músicos e atores, inspirados na obra de Manoel de Barros, espalha figuras do universo poético do autor, como O homem que engoliu o futuro, O homem das coisas desimportantes, O homem grávido de poesia, O homem pássaro e O homem árvore. Recitando e cantando seus poemas aos olhos e ouvidos interessados, o cortejo convida o público a fazer leituras de trechos de poemas selecionados. 


14h | A Arte de Contar Histórias: o pote de mel do outro lado do arco-íris

Regina Machado, uma referência nacional e internacional no cenário da Narração Oral, como contadora de histórias e pesquisadora desta arte, abrirá o 10º Festival A Arte de Contar Histórias partilhando sua trajetória e seus pensamentos acerca deste ofício milenar e abordará, a partir de sua experiência, a retomada da narração oral nos espaços urbanos nos últimos anos.

15h30 | Narração de Histórias com Alice Bandini, também uma precursora nesta arte

 

QUANDO: 11 DE OUTUBRO

ONDE: BIBLIOTECA VIRIATO CORRÊA Rua Sena Madureira, 298, Vila Mariana fone: (11) 5573-4017

O QUE: NA BOCA DA NOITE aqui quem procurar princesas e príncipes não vai achar! Voltado para maiores de 12 anos, está programada uma tarde especial com contos sombrios.

17h30 Narração de histórias: A morte se paga vivendo, com Tatiana Felix
e três contos do excelente livro Contos de morte morrida de Ernani Ssó.

18h30 Histórias de Terror de Edgar Allan Poe, com Cristiana Gimenes da Cia.

19h30 Oficina de contação com roda de histórias de terror, com Cristiana Gimenes da Cia. 
Para participar da roda de histórias de terror vale levar textos próprios, histórias de que goste ou trabalhar com um conto que será distribuído na hora. 20 vagas, a roda de histórias é aberta a outros ouvintes, inscrições por ordem de chegada

 

QUANDO: 12 DE OUTUBRO, DAS 14H ÀS 17H

ONDE: LARGO PAISSANDU (que está sendo palco do projeto Centro Aberto, com projetos de intervenções temporárias com o objetivo de testar propostas de mobilidade e convivência do espaço, antes de decidir qual seria a melhor maneira de transformá-lo).

O QUE: LIVRO LIVRE NO PAISSANDU No Dia das Crianças, a praça do Paissandu será ocupada pelos livros e pelas histórias. A tarde começa com mediação de leitura, seguida por narração de histórias com a Débora Kikuti e uma intervenção artística baseada na obra do Manoel de Barros com a Cia. Teatro de Senhoritas.

 

QUANDO: DIA 15 DE OUTUBRO, ÀS 14H

ONDE: BIBLIOTECA HANS CHRISTIAN ANDERSEN Avenida Celso Garcia, 4142, Tatuapé fone (11) 2295-3447

O QUE: Palestra e narração: A morte se paga vivendo, com Tatiana Félix, pedagoga formada pela Universidade Metropolitana de Santos, é contadora de histórias e atriz pós-graduada na arte de contar histórias pelo ISEPE.
Todos sabem que vão morrer, porém todos querem negar o fato. Por que causa tanto medo? Por que todos evitam esse assunto? É possível falar sobre este tema com crianças? E como utilizar este assunto nas narrações de histórias?

 

QUANDO: 16 DE OUTUBRO, ÀS 10H

ONDE: PRAÇA TUNEY ARANTES, SANTO AMARO     

A praça da 1ª infância – Hamelim é aqui!
A Praça Tuney Arantes, na zona Sul, acaba de passar por reformas e também faz parte de uma nova maneira de gestão compartilhada entre poder público e escolas e outras instituições. Neste dia, ela irá se transformar em um grande e colorido berçário a céu aberto, em que crianças CEIs da região serão conduzidas por flautistas até as tendas, onde contadores de histórias dos grupos Conta Comigo e Línguas Encantadas e Encantantes se apresentam

 

QUANDO: 18 DE OUTUBRO, ÀS 10H

ONDE: ONDE: BIBLIOTECA HANS CHRISTIAN ANDERSEN Avenida Celso Garcia, 4142, Tatuapé fone (11) 2295-3447

O QUE: Palestra: Um passeio entre deuses e heróis: bases mitológicas para a criação de roteiros e contação de histórias, com Guilherme Kwasinski, formado em Psicologia pela PUC-SP é Professor de Mitologia, Sonhos e Cinema, além de Professor de Dramaturgia (Cinema e a Jornada do Herói) da AIC – Academia Internacional de Cinema – desde 2007.
Duas estruturas básicas da mitologia – a Jornada do Herói e o Ciclo dos Deuses – para que estas possam ser utilizadas como ferramentas na criação e contação de histórias, sejam estas mitológicas, folclóricas, contos-de-fada e nas mais variadas formas de expressões narrativas.

TAMBÉM HÁ UMA PROGRAMAÇÃO POR TEMA OU ARTISTA:

O homem do baú no remanso do Araguaia
Com João Luiz do Couto 
É hora de adentrar nos causos e lendas do Rio Araguaia. São lendas já quase esquecidas, causos engraçados e curiosidades de seres fantásticos que habitaram o rio. Para (re) conhecer personagens como o Boto, o Negro D´água, a Boiuna, Rodeiro, Dragão Dourado, o Boi de Piranha e ouvir “O Homem que Entortou o Rio”, “A Mandioca Gigante”, e outros mais.  Livre
Dia 11 de outubro às 11h – Bosque da Leitura Parque Jardim da Luz
Dia 12 de outubro às 13h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Chácara Santana
Dia 14 de outubro às 14h – Biblioteca Helena Silveira | Praça Largo do Campo Limpo
Dia 15 de outubro às 12h30 – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Jardim Helena
Dia 16 de outubro às 12h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: São Miguel Paulista II
Dia 17 de outubro às 18h – Terminal Grajaú
Dia 18 de outubro às 11h – Biblioteca Álvaro Guerra

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Pé de Histórias
Com Simone Grande
A contadora traz uma árvore carregadinha de histórias, e pede licença a seus ouvidos, porque vai contar seus contos preferidos. Reuniu histórias de vários cantos do mundo, fazendo uma viagem pelo Brasil, Inglaterra, Noruega, Japão e outros países. E para finalizar este encontro, algumas adivinhas serão lançadas para o público. Livre
Dia 11 de outubro às 14h – Biblioteca Camila Cerqueira César
Dia 12 de outubro às 13h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Jardim Joana D’Arc
Dia 13 de outubro às 10h – Biblioteca Raimundo de Menezes
Dia 14 de outubro às 12h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Vila da Paz
Dia 15 de outubro às 13h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Jardim D’Abril

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Contos de Arrepiar
Com Marina Bastos e Thiago França
Contos de arrepiar e de rir contados com música, poesia, humor e objetos lúdicos que moram no do armário. Contos dos livros: “Bruxa, Bruxa, venha à minha festa”, de Arden Druce e “O Grúfalo”, de Julia Donaldson. +3
Dia 14 de outubro às 14h30 – Biblioteca Cora Coralina
Dia 15 de outubro às 16h – Biblioteca Paulo Duarte | Praça Serafina Giancoli Vicentini
Dia 16 de outubro às 14h – Ponto de Leitura Praça do Bambuzal
Dia 17 de outubro às 14h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Jardim da Pedreira
Dia 18 de outubro às 11h – Bosque da Leitura Parque do Ibirapuera
Dia 19 de outubro às 13h – Ônibus-Biblioteca | Roteiro: Cidade Tiradentes

MAIS UMA VEZ, A PROGRAMAÇÃO COMPLETA E ENDEREÇOS AQUI.

 

 

MENDELÉVIO E TELÚRIA AGORA PARA OS BEM PEQUENOS

Chargista mineiro que habita quase sozinho as prateleiras de livrarias dedicadas a histórias em quadrinhos para os pequenos, lança agora coleção para bebês

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Pode dois personagens de história em quadrinhos nascerem em uma aula de química? Pode. Assim aconteceu com os adoráveis – e um tanto briguentos – irmãos Mendelévio e Telúria, nomes inspirados em elementos químicos (rsrsrs, não me canso de achar isso engraçado!), fruto da imaginação de João Marcos, um chargista que desde 2009 “invadiu” as prateleiras das livrarias com O Mundo Mendelévio e o Planeta Telúria e, dois anos depois, Histórias Tão Pequenas de Nós Dois, ambos lançados pela editora Abacatte.

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Nas histórias, o cotidiano de dois irmãos que, embora tenham diferenças e desavenças, continuam unidos. Tudo permeado com muito humor e um traço próprio e marcante, para cair em cheio no gosto dos pequenos. “A obra de João Marcos não para na originalidade dos textos, dos roteiros. Vai, também, para o grafismo, para o desenho, totalmente personalizado. Tanto que, no primeiro momento, o leitor precisa decodificar movimentos e expressões. Pois João Marcos desenha, antes de tudo, para ele próprio. Põe tudo de si nos desenhos e nas histórias. Depois divide a obra com o público atento e já seduzido”, escreveu Mauricio de Sousa na contracapa do primeiro livro. João é um dos roteiristas dos estúdios, sonho realizado de um ávido leitor de quadrinhos desde a infância.

Agora é que ele acaba de lançar o primeiro livro da coleção Meu Primeiro Quadrinho, lançado por A Semente, selo da Abacatte. Em Amarra Meu Cadarço?, Mendelévio e Telúria estão bem pequenininhos com um dilema de coordenação muito profundo: um dos cadarços está solto.

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Telúria tem uma ideia: pedir ajuda para os brinquedos. É o dinossauro o primeiro a dizer não. “Os meus braços são curtos, não consigo amarrar”. O segundo a aparecer é o palhaço que acha a palavra “cadarço” tão engraçada que não para de rir. O brinquedo seguinte é a girafa que, claro, está muito longe dos pés do menino para ajudar. E por aí vai, em um desfile de formas, vocabulários e sentidos, cheio de delicadeza e, o mais bacana: iniciando o leitor para uma linguagem tão rica e dinâmica, quanto poderosa em si mesmo.

Por muito tempo – e há quem carregue isso no discurso ainda – os quadrinhos foram encarados como uma linguagem ou leitura “menor”. A ponto de ser abolido nas escolas, um grande absurdo. E sabe aquela história de “ah, o quadrinho pode ser um ótimo estímulo à leitura”? Também acho uma tremenda bobagem. É claro que a fusão da imagem e da escrita contando a história podem ser um facilitador. Mas também muita há complexidade nos quadrinhos, se assim decidirmos avaliar como “digno” de pertencer ao “mundo letrado”. Imagens em sequências trabalham a passagem de tempo (nada mais abstrato para as crianças); as onomatopéias garantem expressões novas; humor e criatividade estimulam o pensamento crítico, abrem portas, permitem as leituras nas entrelinhas, ou entretraços. Só nos resta aproveitar este belíssimo jeito de contar e ler histórias o quanto antes.

Obs: Não poderia deixar de falar que João Marcos lançou outros volumes com os personagens mais famosos e ainda tem uma parceria superinteressante com o escritor Fábio Sombra em Sete Histórias de Pescaria de Seu Vivinho e A Pescaria Magnética de Seu Vivinho, também pela Abacatte, este lançado em 2013. Vejam aqui que delícia!

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É CORDEL COM QUADRINHOS! E os enredos mexem com o nosso imaginário do que são as tais “história de pescador”, mas por caminhos surpreendentes e divertidíssimos. Aquela sensação boa de ter uma lembrança do que você ainda não tinha lido.

 

Arte e literatura quadro a quadro!

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Amarra Meu Cadarço? (Ed. Abacatte/selo A Semente)
quadrinhos de João Marcos
2014

 

Livraria NoveSete e a arte de receber crianças

Conversei com Gislene Gambini, dona da Livraria NoveSete especializada em literatura infantojuvenil e que acaba de completar 7 anos de vida. Por trás de um acervo de qualidade e um ambiente acolhedor com cara de “loja de bairro”, a consciência do papel educador na formação de leitores

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Era uma vez um pai e uma mãe que levavam sua filha para passeios em livrarias desde muito pequena. Esse pai e essa mãe ficavam muito, mas muito chateados como, em geral, os livros para crianças eram maltratados nas livrarias de São Paulo. Ela com formação e experiência como editora; ele, mais de 30 anos de trabalho na área de cultura. Como esse casal sonhava em ter um negócio próprio, perguntaram a si mesmos: por que não abrir uma livraria?

E começaram a procurar um espaço. Moravam na Vila Mariana, zona sul da cidade, e sabiam que a região ansiava por uma livraria especializada no público infantojuvenil. Muitas escolas no entorno e algumas ruas ainda preservavam o ar de “bairro” de antigamente. Acharam um local na rua França Pinto, de boa circulação, entre duas estações de metrô. Foi ali, no número 97 que o sonho do casal começou a se concretizar. Nascia, então, a Livraria Novesete.

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As duas vagas para carro na entrada – em breve abrigará também um espaço somente para o estacionamento de bicicletas – nos dão mais alguns minutos para o grande primeiro deleite: uma vitrine de bom gosto, com variedade na exposição de livros e brinquedos artesanais que só colaboram para o convite. Entrar é, sim, dar de cara com um acervo de embaralhar a vista. Mas o aconchego já acontece junto: com pufes coloridos espalhados pelo chão, bonecos pendurados no teto e obras acessíveis a qualquer altura. Conforme acontece a exploração, vamos notando que uma primeira bancada reserva os lançamentos… depois outras divisões vão se revelando aos nossos olhos: poesias, mitos e lendas, quadrinhos, contos de fadas, culinária etc, mas também autores “clássicos”. A exploração continua e, do lado esquerdo, um café convida a uma parada para alegrar o estômago, com cardápio tão acolhedor quanto os livros. Seguimos o passeio visual avistando mesas de madeira num deque que nos leva a uma escada e, por fim, a uma espécie de “quintal ideal” com plantas e flores ao ar livre e um espaço coberto reservado para nem mesmo a chuva impedir uma contação de histórias ou uma oficina de artes, todos os sábados.

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Do encontro com o imóvel para a inauguração, em 2007, foram quatro anos de reforma e criação do projeto. “Aqui era uma casa, coincidentemente era do pai de um amigo que veio na inauguração sem nem saber que o pai havia morado aqui. E outras pessoas que moraram aqui ainda vieram me contar como era a casa, que onde é o caixa era a biblioteca, que no fundo era um quintal imenso com vários bichos, pomar. Todo o mundo fala que a casa tem um astral bom, acho que ela carrega mesmo algo especial”, conta Gislene Gambini que, após a morte do marido, Jesus Vazquez, toca o empreendimento sozinha, mas na companhia de funcionários também conscientes de que ali não é apenas um local que vende livros. “Cuido para sejam pessoas que gostem de ler, que não seja uma passagem de emprego”. E qual o diferencial que buscavam, perguntei a ela. “Essa cara de loja de bairro, aconchegante, que a decoração é toda pensada de uma forma diferenciada, sem peças de plástico, sem sacola plástica, um conceito realmente completo, de toda a empresa.”

Para criar o acervo, eles tiveram a colaboração de Beatriz Almeida Prado, que foi responsável pela área infantojuvenil da Livraria da Vila e já estava fora de lá na época que a NoveSete nascia. “Quando contamos para Beatriz a ideia, ela veio ficar conosco. Também uma apaixonada por livros, ficou meses criando o acervo e mais alguns meses depois da inauguração, até completar um ano. Aprendemos muito com ela.”

E é bem mais do que oferecer algo de qualidade para ler. Há famílias que carecem de saber lidar com o objeto livro, não têm experiência de como se portar dentro de uma livraria. E não estou falando das crianças. Não raro os pequenos danificam os livros, ou pela fase de desenvolvimento, ou pela falta de educação mesmo. Muitos pais não se importam e quando alguém da livraria orienta o manuseio, incomodam-se. Por isso que é um trabalho cotidiano de aprendizado, de ambos os lados.

Como a livraria cumpre um papel educador, também há serviços diretamente com as escolas. Não apenas trabalho com sugestão e venda de acervo e feiras de livros. “A gente atende as escolas que queiram visitar a livraria, em um formato que pode ir além. Comecei a perceber que as escolas vinham e as crianças ficavam soltas, correndo sem saber o que fazer. Me dava uma angústia. Então criamos um formato que a escola vem e é recebida por um educador que apresenta a livraria, fala sobre os gêneros literários e também pode escolher uma oficina, mediante um custo acertado previamente”, conta Gislene.

No próximo dia 2 de outubro, a NoveSete inaugura um novo projeto e abrigará o seminário Café com Ideias em parceria com a Editora Pulo do Gato que, nesta primeira edição, vai discutir a importância de livros infantis com temas difíceis (mais informações abaixo). “Desde o começo a gente fala que não somos simplesmente um comércio de livros. Queremos nos transformar em um ponto de formação de leitores que, acima de tudo, gostem de vir aqui. Eu vendo conhecimento. É muita responsabilidade e tem que ser mesmo”. E ela quer mais: o próximo foco é a ilustração e a necessidade de uma formação visual dos leitores.

Bem, vida longa para a Livraria NoveSete. Como moradora da região, é um privilégio. E dialoga com uma questão muito forte para mim neste momento: a importância de exercer a escolha do que ler. Dois lugares são apropriadíssimos para isso: a livraria e a biblioteca pública. Além da leitura, visitar estes locais são experiências culturais e uma chance de se encontrar com o inesperado, aquele livro que você não procurava mas que estava ali à sua espera. Onde mais aprenderíamos isso?

 

Livraria Novesete

rua França Pinto, 97, Vila Mariana – São Paulo/SP

telefone: (11) 55737889

www.livrarianovesete.com.br

 

Para o seminário Café com Ideias – participação de Denise Guilherme, formadora de professores e curadora de A Taba; Gabriela Romeu, jornalista e coordenadora do Projeto Infâncias; Márcia Leite, diretora editoral da Pulo do Gato e escritora; Maria Cristina Mantovanini, doutora em educação e psicanalista; Patrícia Torralba Horta, doutora em educação e assessora pedagógica

inscrição gratuita por (11) 3214 0228 ou informativo@editorapulodogato.com.br

 

 

 

 

 

 

Cara Carlota Cornelius

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Um mundo e uma vida com desigualdades e injustiças podem sempre nos levar para dois caminhos: o da entrega, em que você desiste de lutar e aceita o “inevitável”; ou o da esperança, em que você aceita sonhar. Quando comecei a folhear o livro Cara Carlota Cornelius (Ed. WMF Martins Fontes), escrito pela holandesa Mathilde Stein e ilustrado pelo também holandês Chuck Groenink, sinceramente, não foi esse o sentimento que me veio de cara. Sem ler a contracapa – um vício terrível que tenho nos livros infantis, rs – embarquei na história da menina que vê um envelope endereçado a ela no chão em frente à porta, ao mesmo tempo em que ouve uma voz impaciente gritando com ela de dentro da casa.

Carlota só escuta pela metade. Com o coração aos pulos, pega o envelope. Quem terá escrito para ela?

A primeira ilustração já é um impacto de beleza. Ocupa as duas páginas, mostra o interior da casa, a menina com frio na barriga de ansiedade, a rua. A rua leve, arborizada, cheia de caminhos. A seguir, os autores nos convidam a uma viagem de possibilidades. A cada dupla de páginas, a menina sonha um contexto diferente e, acompanhada de criativas ilustrações, uma carta sempre personificada à situação, com detalhes curiosos, engraçados, precisos com a brincadeira de imaginar correspondente. A primeira dupla-pensamento da menina contém uma carta de um dono de circo: é a protagonista sonhando que foi convidada a fazer parte de uma maravilhosa trupe.

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Na segunda, ela imagina uma carta de amor de um xeque que promete deixar seu harém por ela. E por aí, vai, o deleite de criatividade é de vocês! Tem até carta, digamos, do outro mundo! Mas em cada uma delas, sutilezas da “vida real”. É nelas que devemos prestar atenção.

No decorrer, cores, sombras em um delicado desenho em um projeto gráfico casando bem texto e imagem. Mas tão bem que, no final, a grande reviravolta, o leitor está apto a embarcar com a menina na vida que está por vir. E acolhemos a pergunta: será que temos esta força para mudar? Ou, melhor: para desejar mudar?

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Cara Carlota Cornelius (Ed. WMF Martins Fontes)
texto de Mathilde Stein

ilustrações de Chuck Groenink

tradução de Patricia Broers Lehmann

2014

EXPO CASTELO RÁ-TIM-BUM: POR QUE (REALMENTE) IR

 

Não aceite a correria que normalmente envolve uma visita à exposição: tente, o máximo que puder, explorar este Castelo com calma para degustar detalhes e entender por que este é um momento histórico

fotos Site TV Cultura/Cmais

 
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Você deve estar se perguntando: um fã do programa Castelo Rá-Tim-Bum lá precisa de mais razões para ir à exposição, que fica no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, até dia 16 de novembro? (sim, ela foi prorrogada!) Fotos estão pela rede, sejam em sites jornalísticos, de roteiros culturais, ou as milhares de selfies nas redes sociais. Filas todos os dias, dicas de quem já foi ou até mesmo do Museu (veja no final deste post) precisaram ser elaboradas para ajudar. Está em todo o lugar a qualidade, a beleza, o “tudo-igualziiiiinho” ao cenário do programa mais importante para criança da televisão brasileira, que foi ao ar pela TV Cultura de 1994 a 1997.

Mas convido a vocês a visitarem a exposição pela oportunidade incrível de se orgulhar e repensar a programação de TV para crianças – e, de quebra, repensar também tudo que é produzido em nome delas. Cada detalhe das salas, cada curva, cada centímetro deste Castelo merece um olhar de deslumbramento. Deslumbramento pela qualidade do cenário, dos figurinos e, principalmente, das atuações e do fabuloso roteiro que sabiamente colocou em pé de igualdade educação e entretenimento. Tão, mas tão bem casados que o espectador “aprendia enquanto se divertia” e isso não era mero discurso de marketing. Junto a isso, uma preocupação estética, que pulsa em cada detalhe do caráter inovador da série. Era real, genuíno, suado, pensado, planejado. Até porque, sabe-se que cada um da equipe também aprendia e se divertia junto. Sob a maestria do diretor Cao Hamburger, Nino, Biba, Pedro, Zeca, Dr Victor, Morgana, Celeste, Mau, Godofredo, Gato Pintato, Tíbio, Perônio e tantos outros personagens marcaram e marcam infâncias. É O projeto pelo próprio projeto e não com olho em retorno financeiro ou premiações. E que, ainda bem, carrega em sua história o título de ser o programa de maior sucesso veiculado por uma emissora pública brasileira. Quem tem coragem hoje de criar algo para crianças na TV com esta mesma força? Será que vai acontecer de novo?

 

Uma das formas para sentir isso é parar o impulso de seguir simplesmente uma exploração frenética da mostra e ler as placas explicativas que contêm curiosidades e detalhes sobre determinado ambiente ou personagem. Tudo começa, claro, pela inesquecível entrada do Castelo e o Porteiro que, originalmente, está ali para preservar o lugar. Mas, na exposição, pode não ser assim tão difícil ouvir o “KLIFT, KLOFT, STILL: A PORTA SE ABRIU”! Pronto, é o que você precisa para começar a viagem. A primeira sala contém pura história, daquela que poderia seguir com H maiúsculo. Primeiro, fotos com a construção dos cenários, etc; depois, o vídeo de abertura, seguido por um quadro com os programas históricos da TV Cultura que de alguma forma de se ligam à criação do Castelo; subindo alguns degraus, o visitante pode conferir memorandos, cartas, roteiros e curiosidades do programa. Deste lugar já é possível ver um perfeito anfitrião: um Nino olográfico que nos avisa sobre o que pode acontecer adiante, muito bem acompanhado do Relógio (réplica e original).

A produção da exposição tomou o cuidado de em cada espaço manter de alguma forma criativa cenas de episódios em miniTVs, para a lembrança de uns e a contextualização da série, para outros. A primeira sala é a biblioteca.

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Quem guarda aquela imensidão variada de livros e histórias é o Gato Pintado, claro. Ele conversa com os visitantes e não só ele: é possível ouvir dos próprios livros indicações do que ler, uma brincadeira com a réplica do local das leituras do Castelo. Uma curva à esquerda nos leva à colorida e inventiva sala dos cientistas Tíbio e Perônio. É bem pequenina, mas divertida. Logo ao lado, a poderosa Oficina do Dr. Victor, o lugar em que nascem as invenções do feiticeiro de 3 mil anos! Além do figurino original vestido pelo ator Sérgio Mamberti, também os adoráveis Tap Flap, as botas antigas enfeitiçadas. A saída da sala, no entanto, é a parte levemente nojenta do local: o encanamento onde vivem Mau e Godofredo. O espaço bem apertado é perfeito para causar a angústia de se viver em um cano – com direito a efeitos visuais de provocar arrepios!

A seguir, a Sala de Música e a Sala da Lareira. Tudo em tamanho real, a viagem pelo programa é clara e os visitantes vão se apertando para tocar o que podem, sentar no sofá verde, ou pedalar na Pianola, uma das engenhocas do Dr. Victor. A grande expectativa, claro, é conhecer a árvore e Celeste, a cobra “dona” do local. Antes, porém, é hora de entrar em uma miniviagem maluca para conhecer o traje de Etevaldo; depois, conferir as perguntas de Zeca e as respostas de Telekid, o personagem vivido por Marcelo Tas. Assim, é hora de atingir, o digamos, coração do Castelo: do lado direito, a cozinha e o jardim; do esquerdo, o saguão e a árvore centenária com a geniosa Celeste (campeã das fotos com os visitantes). Ali mesmo, o quarto de quadrinhos do Nino, o Ratinho, os figurinos das crianças e da repórter-rosa Penélope, uma linda escada encaminha para o final da exposição. Subindo, é hora de entrar no quarto da bruxa Morgana e conhecer Adelaide, a gralha fiel e zeladora. Falta pouco: é hora do Ninho e o “Passarinho, que som é esse?”, seguido pelo Lustre, um dos locais que mais me impressionou: entrar, andar, sentar, tudo exatamente como eu sempre pensei que pudesse ser. Ou nem imaginava! Tudo se finda com a ambientação para o figurino do Dr Abobrinha, que sempre tentou transformar o Castelo em um prédio de 100 andares!

Mas eu ainda quero falar de um pequeno corredor, bem no meio da viagem, que merece, e muito, a atenção de nós, sim, principalmente os adultos. É uma sala com grandes televisores e fones de ouvido acoplados que nos convidam a depoimentos emocionantes da equipe. Leva tempo, mas vale a pena. É uma pausa neste mundo mágico e ouvi-los dentro do Castelo faz toda a diferença. Eles contam histórias emocionantes, engraçadas curiosas. Uma das frases que mais surpreendeu foi de Mamberti. “Se tem alguma coisa que vai ficar desta minha passagem por aqui é o Dr. Vitor do Castelo Rá-Tim-Bum.” Imagine, esta frase é de um dos mais importantes atores brasileiros. É ali, no Castelo, que ele sabe que deixará um legado. Cássio Scapin, o Nino, conta sobre o desafio de ser um adulto interpretando uma criança. Revela ali que não tinha tanta experiência com criança quando se viu na situação de ter que contracenar com três! “Elas tinham a espontaneidade e eu tinha que inventar um jeito para poder estar no mesmo patamar de espontaneidade e de ingenuidade delas. Parti para o ataque e ali eu era mais criança do que elas”, relembra rindo. Da parte dos bonecos (minha grande paixão), é Fernando Gomes (Gato Pintado e Relógio) e Álvaro Petersen (Godofredo e Celeste) quem revelam os bastidores. Álvaro conta que o Castelo foi um marco para os manipuladores de bonecos. “A partir dali surgiu um produto do boneco brasileiro. Descobrimos qual o nosso jeito de fazer. É uma referência.”

Esta foi a minha segunda visita à exposição e nas duas fui acompanhada das minhas sobrinhas. Mayara, 24 anos, ficou emocionada com os detalhes tão fiéis e nas tantas possibilidade se “sentir” o Castelo, devido às experiências sensoriais. Nesta primeira vez também estava a minha filha Clarice, de 2 anos, que nunca havia visto nada sobre o Castelo, mas que se divertiu, e viveu a exposição como se visitasse a casa de alguém conhecido. Até hoje, se ela vê uma foto nossa lá, repete entusiasmada: “Castelo Ratimbuuum!”. A segunda visita foi só com minha sobrinha Beatriz, 21 anos. Ela ficou felicíssima, claro, e assumiu que os detalhes fogem de suas lembranças, mas a sensação de ser um lugar que ela amava “ir” é forte como nunca. Ilustra bem o que produções podem causar na infância: este conforto de aprendizado, diversão, senso estético, de relações, de história. Do alto da escada, vendo a árvore de cima, um dos ápices da exposição, ela me disse: “isso tudo tinha que ficar para sempre aqui”.

Pois é, este é o por que de visitarmos a exposição. É nosso compromisso com a memória. A nossa memória. Brasileira, inclusive. É assim que vamos continuar exigindo boas produções para crianças, porque já nos foi provado que é possível ter qualidade artística e audiência ao mesmo tempo. Vá como uma homenagem a quem valoriza infâncias. Não haverá motivo melhor.

Veja aqui um vídeo produzido pelo site da TV Cultura no dia da abertura da exposição (que, por coincidência, eu apareço lá com um depoimento, rsrs!)

Agora, relembre aqui o primeiro episódio!

 

Castelo Rá-Tim-Bum – A Exposição


Onde: Museu da Imagem e do Som (MIS) – Av. Europa, 158, Jardim Europa, São Paulo (SP)

Até quando: 16 de novembro de 2014

Terças e sextas, das 12h às 21h30; sábados, das 10h às 22h; domingos e feriados, das 10h às 20h.

Sobre ingressos veja aqui as Dicas do MIS 

 

Segredos, de Ilan Brenman

O escritor Ilan Brenman, um dos mais ativos da nossa literatura infantil, tem uma paixão profunda pelas tantas formas de contar histórias. Para tanto, é um eterno garimpeiro de contos do mundo todo, além de inventar as próprias narrativas a partir de seu cotidiano, principalmente com as duas filhas (vide os geniais Até as Princesas Soltam Pum e Papai Não Fui Eu!, inspirados em situações com as meninas). Hoje eu acho que ele mais do que nunca, pesca elementos de um lado e de outro para criar histórias que façam as crianças amarem ler. Quer propósito melhor?

Vou falar de Segredos, lançado pela Editora Moderna e ilustrado pela espanhola Anuska Allepuz.  Como o próprio nome indica, a história começa com as amigas Joana e Manuela cochichando. De um lado era: “Você promete que não vai contar para ninguém?”. De outro, a cumplicidade: “Prometo por tudo que é mais sagrado”. Manuela se aproxima do ouvido e conta. A partir daí, tudo se transforma na vida de Joana e a gente percebe que não é tanto por causa do conteúdo da conversa: mas mais pelo fato de ter de guardar a “grande” revelação. “Era como se ela tivesse descoberto o segredo das tumbas dos antigos reis egípcios”, brinca Ilan com o leitor.

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Não é difícil a gente mesmo voltar para si e lembrar daquele frio na barriga ao ouvir um segredo. E como parece que tudo a nossa volta de repente é tomado por ele, como se fosse assunto único. Joana começou a sentir aquela cosquinha de segredo querendo sair e, para segurar a ansiedade, foi ao banheiro da escola e gritou para dentro da privada: “A Manuela gosta do Rafael Ruivo!”. Depois apertou a descarga e se sentiu aliviadíssima. O que a menina não contava era que, justamente quando Tarsilinha, outra aluna, fosse ao banheiro, ela apertasse a descarga e voz sairia de dentro dizendo a grande revelação.

É aí que me divirto com Ilan. Claro que a tal Tarsilinha não se importou com o fato de uma voz sair de uma descarga… ela simplesmente ouviu a frase, adorou a fofoca e foi correndo para a sala de aula. Passou um bilhete para todos da classe e todo o mundo quis conferir a informação dada no banheiro. Eu adoro esse nonsense em pleno cotidiano. É como se a história abrisse uma porta mágica para o fantástico. Isto é uma sutileza difícil de conseguir, principalmente quando a história tem tantos elementos fáceis de a criança criar identificação. Ah, claro… sim, o segredo se espalhou e Manuela e Joana tiveram que lidar com uma situação constrangedora, mas surpreendente: típica dos primeiros amores!

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O que eu acho que colabora demais nesta edição é a criativa ilustração e projeto gráfico. O traço de Anuska, prioritariamente feito a lápis, aproxima a criança, sem infantilizá-la. É divertido e de bom gosto e, além disso, recursos gráficos fazem algumas palavras e frases também serem escritas a lápis, marcando ênfase e humor à narrativa e fortalecendo o tom fantasioso.

Sim, por trás da diversão, uma discussão ética, por que não, já revisitada em diversos livros, filmes etc: quanto vale guardar um segredo? Das coisas que a gente começa a ser testado desde criança… e não para mais.

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Segredos (Ed. Moderna)

textos de Ilan Brenman

ilustrações de Anuska Allepuz

2014

Rimas de Lá e de Cá

Eram dois Josés.

Um do Brasil, outro de Portugal.

Emails trocados, língua portuguesa pra cá. Língua portuguesa pra lá. Parecia dança, um compasso, uma coreografia. Mas virou poesia. Assim nasceu Rimas de Lá e de Cá (Ed. Peirópolis), escrito a quatro mãos pelo brasileiro José Santos e o português José Jorge Letria. Eles conversaram, conversaram, conversaram tanto em rimas por dois meses e virtualmente que nos deram uma espécie de repente impresso, pronto para a gente ler em voz alta com a mesma emoção de uma criação espontânea!

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O lirismo é uma ponte entre as duas culturas, tecidas no nosso rico e encantador vocabulário. Dá vontade de não parar nunca de ler, como se tivéssemos assistindo a deliciosas descobertas. De um lado, José Santos:

 

Dizem que o brasileiro

quando nasce, no hospital,

traz o coração batendo

de um jeito bem musical.

 

O ritmo está no sangue

e a melodia, no ar.

Tudo vira instrumento:

o prato, a chave, o colar.

 

Se um coração faz tum-tum

no compasso do baião,

outros palpitam num frevo,

chorinho ou samba-canção.

 

Você que é afinado

e adora cantar também,

conte um pouquinho das festas

que a sua cidade tem.

 

De outro, José Jorge Letria:

 

Tem Portugal a tradição

das festas e romarias,

que podem ser coisa breve

ou durar alguns dias.

 

Lisboa não foge à regra

dos festejos seculares

e celebra sempre em junho

os três Santos Populares.

 

Começa com Santo Antônio,

mais São Paulo e São João,

que também animam o Porto com bailarico e devoção.

 

E agora, meu amigo,

já que de festas falamos,

em matéria de artesanato

como é que por aí andamos?

 

E o desfile de costumes, semelhanças e diferenças continuam, tudo alinhavado com as precisas ilustrações de Yara Kono, brasileira que hoje vive em Portugal que já coleciona prêmios.

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As figuras são de fácil identificação das crianças, mas sempre com liberdade nas proporções e cores, mexendo com a criatividade do leitor. Nós, brasileiros, nos vemos cá no livro e na nossa terra. E com a delicadeza da obra, podemos sentir o que pulsa no lado de lá. É Lá e Cá com sopros e afetos para todos os lados.

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Rimas de Lá e de Cá (Ed. Peirópolis)

textos de José Jorge Letria e José Santos

ilutrações de Yara Kono

2014

Discurso do Urso: sobre Cortázar e crianças

Estava esses dias revirando anotações antigas e encontrei umas frases do escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo. Dizia mais ou menos assim: “Quando me perguntam sobre a utilidade da poesia, costumo dizer: ‘para que serve a saudade? para que serve a vida? para que serve ter um amigo? Será mesmo que cabe ter uma função para tudo?”.

Tenho um amigo muito querido, o Renato, que adora dizer: “eu não entendi, mas adorei”. Acho que falávamos de poesia ou sobre surrealismo. Ou simplesmente sobre arte. Mas o que é poesia? E lembrei de uma de Oswald de Andrade assim:

“Aprendi com meu filho de 10 anos

Que a poesia é a descoberta

Das coisas que Nunca vi”

Talvez, por isso, outro poeta nosso, Manoel de Barros, tenha constatado: “Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”.

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Cheguei a estas inquietações, provocada aqui pela minha estante ao rever Discurso do Urso, lançado em 2009 no Brasil pela editora Record, que é a edição de um conto do belga-argentino-francês Julio Cortázar, simplesmente um dos escritores mais originais de todos os tempos que em 26 de agosto passado completaria 100 anos. O conto poético e surrealista faz parte de uma de suas grandes obras, Histórias de Cronópios e de Famas, de 1962, mas foi escrito dez anos antes e dedicado aos filhos do pintor e poeta Eduardo Jonquières, amigo de Cortázar. Uno poesia, com liberdade e, agora, com surrealismo, como uma chance de nos ligarmos ao fantástico, ao sem sentido, possibilidade tão sem amarras das crianças. Seria o Discurso do Urso dar as crianças o que já é delas?

 

Provocado com as fortes ilustrações do espanhol Emilio Urberuaga, o livro nos apresenta um urso que vive nos canos de um prédio. Ele caminha de apartamento em apartamento e observa a vida, deslumbrado com o que vê.

 

Acho que gostam de mim porque meu pelo mantém a tubulação limpa, corro sem descanso pelos tubos e nada me deixa mais feliz do que passar de andar em andar roçando pelos canos.

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E vai nos mostrando, trecho a trecho, como interfere na vida de quem mora ali. A leitura nos causa aflição, espanto e um certo conforto. “Tem alguém olhando por nós”, penso. Este olhar do urso nos joga para dentro, nos faz pensar sobre a vida mecanizada, tão comum. Veja aqui:

Então deslizo por todos os canos do prédio, grunhindo contente, e os casais se agitam em suas camas e se queixam da tubulação. Alguns acendem a luz e escrevem um bilhete para se lembrar de protestar quando encontrarem o zelador.

O último período do texto é o mais lindo. Mas guardo para a alma de vocês lerem, no ritmo deste livro, sozinhos. Quero dizer que não, não será a mesma coisa de ter lido no livro de contos. Esta é a beleza sutil de uma boa edição de literatura infantil. Aquela lá, feita “para crianças”. Por que será esta classificação, hein?

Experimentem.

A cuidadosa tradução é do mineiro Leo Cunha, escritor, poeta e premiado autor para crianças.

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Discurso do Urso (Editora Record)

textos de Julio Cortázar

ilustrações de Emilio Urberuaga

tradução de Leo Cunha

2009