Posso entrar? – perguntou o elefante, espiando dentro do quarto, fazendo enorme esforço para se segurar, com as patas dianteiras, no batente da janela.
– Como você chegou aí? – perguntou o menino, assustando-se e recuando até cair sentado na cama e largar o celular que estava usando.
– Depois eu explico. Posso entrar? – insistiu o elefante.
– Se você conseguir…
– Vou tentar…
Entalou.
Esta é a porta de entrada para O Elefante Entalado (Ed. Ficções), o mais recente livro de Alonso Alvarez, com ilustrações de Fê. Nem para o real, nem para o fantasioso completamente. De cara, uma conexão entre nossos dois mundos possíveis sem que a gente duvide que é verdade. Se está no livro, é verdade, não?
A história do livro é essa mesma que você entendeu. Numa quarta-feira qualquer, Luís, um garoto que todos os dias passa algumas horas sozinho em casa entre a escola e os pais chegarem do trabalho, presencia a inusitada visita de um elefante indiano de cinco toneladas que entra pela janela de seu quarto, em um apartamento de 13o andar. Na verdade, entrar ele não entra: ele entala e é aí que nasce uma desesperada busca para ajudar o animal a sair daquela situação (ou janela). Qual foi a primeira coisa que o menino fez? Uma foto. A segunda? Compartilhou em uma rede social. Depois ele pede ajuda para o zelador, o síndico, outros moradores do prédio, pessoas passando na rua… mas ninguém acredita nele e tampouco no que vê. Porém, a conversa do menino com o elefante e uma série de sacadas que o livro propõe faz da viagem deste infantojuvenil o próprio convite a esta leitura. E nos joga a pensar nas solidões e amizades de hoje. Ou vice-versa.
Alonso conta que a ideia desta história surgiu “de uma visão”. “Eu tinha uma livraria em frente ao Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro. Morava no prédio em cima dela, no 13º andar. Uma tarde, voltando do banco na avenida paulista, do outro lado da rua, na calçada do Centro Cultural, olhei para a janela do meu quarto e ‘vi’ a bunda enorme do elefante entalado. Entrei na livraria, peguei uma filipeta sobre o balcão e escrevi: ‘Posso entrar?’. Daí surgiu toda a história. Queria acabar e pensei que o elefante tinha a ver com a Índia e que eu estava numa livraria e deveria ter algum livro sobre Índia e elefantes; achei um sobre civilizações na Índia e tinha um capítulo sobre os elefantes.”
Autor também de O Encanto da Lua Nova e As Horas Claras, outros dois juvenis, o escritor conta que originalmente a turma de personagens dos livros entraria. Mas, depois, decidiu colocar só um menino e aí entraram os pais. Perguntei se era uma intenção mostrar a ausência dos pais na vida do menino. “Nos juvenis, os pais nunca estão sempre ausentes por causa da rotina do trabalho e da sobrevivência. E atrapalhariam, se entrassem, rsrs”, sugere Alonso.
Conheci o escritor Alonso Alvarez com o lançamento de Paixão de A e Z (Ed. Peirópolis), em 2010. Sem brincadeiras com o título, me apaixonei de cara. Com ilustrações de Marcelo Cipis, conta a história de amor e de encontros e desencontros entre as duas letras que, distantes no alfabeto, encontravam-se nas palavras. Com o tempo, fui descobrindo que as história de Alonso estavam muito além dos livros que escrevia. Ainda adolescente, decidiu escrever um livro. “Com 13 anos entrei no Senai pela Caterpillar, uma fábrica de tratores. Entrei na mecânica e adorei. O professor de português curtia as minhas redações e nos seis meses que ficava na fábrica, nas horas do almoço, em vez de jogar truco, de macacão, eu e um amigo líamos Torquato Neto.” Em uma troca de emails recente, ele disse para mim que seus livros são inspirados nos tempos em que ele tinha duas livrarias, lembranças claramente recheadas de carinho. Iniciei uma conversa com ele justamente porque eu estou pensando muito sobre a situação das livrarias no Brasil como experiência cultural, poética e de incentivo à escolha da leitura.
Bem, daí surgiu esta conversa que vocês acompanham a seguir.
ESCONDERIJOS DO TEMPO: O que impulsionou você a abrir as livrarias. Qual a história de nascimento de cada uma delas?
ALONSO ALVAREZ: Não sei como surgiu a ideia. Ainda nos tempos de mecânica, um dia, nos agitados anos finais da ditadura militar, no vestiário dos operários da empresa Hyster, onde trabalhava como projetista de máquinas de produção, do nada, dei uma opinião ingênua ao comentar uma conversa sobre a doação de um terreno do governo para o Corinthians. Isso fez se aproximar de mim um militante que acabara de sair da clandestinidade e trabalhava na mesma seção. Me convidou para participar do sindicato. E eu fui! Por curiosidade. Naquela semana, quando entrei no ônibus para ir ao sindicato, aos poucos fui identificando muitas outras pessoas da empresa na mesma lotação e assim comecei a participar do movimento operário, nas famosas greves de 1979. Ao entrar na universidade, para cursar História, fui participar do movimento estudantil, nos tempos da UNE ilegal, não reconhecida pela Ditadura, e cheguei a ser eleito diretor cultural da UEE/SP por duas vezes. Em 1985, com um grupo de ex-militantes, inauguramos a livraria Artepaubrasil. O convite reproduzia um desenho cedido pelo cartunista Henfil, e a festa de abertura foi feita no dia 15 de março de 1985, quando Tancredo Neves tomaria posse; o que não ocorreu.
ESCONDERIJOS: E o lugar se tornou uma referência naqueles tempos nada fáceis ainda…
ALONSO: Era uma livraria visitada quase que exclusivamente por jovens. Era politizada e ecológica (entre outras coisas, fiz os lançamentos dos livros do Gabeira, tão logo ele voltou do exílio). Era poética e literária (a decoração tinha poesia por todos os lados e vendíamos caixas e caixas de livros de poesia toda semana). A música nas caixas estava sempre em volume alto, tocando rock, jazz e blues. O acervo era selecionado: não vendíamos best-sellers e livros da moda, mas muitos escritores brasileiros tinham toda a obra nas estantes, como Drummond, por exemplo. Inventamos os famosos postais poéticos, centenas de tipos, com muitos poetas participando. Vinha gente do outro lado da cidade, de outras cidades, para comprar, colecionar.
Mas com o tempo fui descobrir que a livraria era na verdade uma extensão da minha biblioteca particular, uma espécie de livraria “autoral”. Claro, a minha biblioteca pessoal crescia com a livraria, com a chegada dos livros, com a descoberta de escritores. Foi assim que encontrei Borges e ele, de forma silenciosa e sorrateira, tornou-se uma espécie de “comprador” de livros das minhas livrarias. Eu lia tudo dele e ele sempre apresentando escritores e livros, que eu ia trazendo para as estantes.
Na livraria noturna, tinha um Café, no andar de cima, vinculado ao tradicional Café do Bexiga, com um pequeno palco, um piano (jazz às sextas e sábados), uma Parede de Poesia “Oswald de Andrade”, onde surgiu a coleção “ptyx” – com ela ganhei o Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial, em 1991, e o Prêmio Artes Gráficas. Essa livraria só fechava duas vezes por ano: Natal e Réveillon.
ESCONDERIJOS: O que você mais amava que acontecia dentro delas? Qual ou quais são as lembranças mais doces e as mais amargas destes tempos?
ALONSO: Além das livrarias cheias nas noites de sábado, como ponto de encontro da juventude na época (o bairro do Bixiga era uma espécie de praia do paulistano), as lembranças mais doces são as amizades com poetas e escritores. Eles eram a minha “universidade de literatura”. Ali estava o ex-torneiro-mecânico passando horas com eles, no Café, entre queijos e vinhos, descobrindo Rimbaud, Vallejo, Guillén, a poesia moderna da Coréia, da Hungria, Pessoa, Borges, entre muitos, e conhecendo ao vivo poetas como Augusto de Campos, Leminski, Manoel de Barros, José Paulo Paes e tantos e tantos outros… Foram tantas histórias. Outro dia contei na Ilustríssima como me perdi com o poeta Manoel de Barros na Avenida Paulista ao conseguir, pela primeira vez, trazê-lo para um evento público no “Artes e Ofícios da Poesia”, no MASP.
A lembrança mais amarga foi quando Collor ganhou a eleição; quando venceu Lula. Na semana seguinte a segunda-feira ficou vazia e triste no Bixiga. De uma hora para outra, as pessoas perderam a vontade de se encontrar para jogar conversa fora, relaxar no começo semana, o que era muito comum. A segunda-feira no Bixiga juntava muita gente pelos bares e nas mesas pelas calçadas. Uma espécie de ressaca da agitação do final de semana. Mas a sombra de Collor foi se estendendo ao longo dos outros dias da semana, esvaziando-os também, até a rua 13 de maio parar de pulsar e a sua vida noturna praticamente morrer.
ESCONDERIJOS: Por que e quando elas fecharam?
ALONSO: Resolvi tirar um ano para passar a limpo as histórias infantojuvenis que eu escrevia no balcão da livraria noturna. Tinha sacos plásticos cheios delas. Eu morava no prédio em cima da livraria que ficava em frente ao Centro Cultural SP. Continuei com essa livraria e os outros sócios escolheram a do Bixiga. Resolvi me separar deles, pois eu ia entrar numa rotina de indisciplina, varando noites, lendo na Biblioteca do Centro Cultural, escrevendo. Foi quando surgiu o juvenil O Encanto da Lua Nova, o primeiro a ser passado a limpo, que na época o original ganhou recomendações do Marcos Rey, José Paulo Paes, Fanny Abramovich, Miguel Sanches Neto entre outros. Mas o livro só foi lançado 11 anos depois!
ESCONDERIJOS: Por que delas nasceram tantas histórias em você? Era uma observação da vida?
ALONSO: Borges dizia que um livro surge de outros livros. Os meus surgiram das minhas livrarias. Comecei a escrever livros infantis quando abri a primeira livraria, em frente ao Centro Cultural SP. Não sabia nada de livros. Nada mesmo! Percebi que precisava conhecer livros e escritores para então saber o que colocar à venda na livraria. Não podia confiar apenas nos vendedores das editoras. Entre outros cursos, fui fazer um de literatura infantil na antiga Brasiliense, nos tempos do editor Caio Graco. O curso durou três meses, dirigido por Maria da Graça Abreu, a pedagoga, que me apresentou Propp e a sua “Morfologia do Conto Maravilhoso”. Lembro que ela falava muito dos “nós” nos contos de fada. Aí, ao terminar o curso, por brincadeira, com cartolinas coladas, inventei um livro com uma história de um NÓ de verdade: Era uma vez duas Linhas. Essa história ficou numa caixa por duas décadas, sobreviveu a três mudanças de casa, e em 2012 mostrei para o Marcelo Cipis; ele gostou, virou livro seguindo o meu boneco, e chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti 2013, infantil.”
ESCONDERIJOS: Para você, a literatura e a poesia salvam? Se sim, em que medida? Por quê? Aconteceu algo com você que pudesse exemplificar isso?
ALONSO: Não gosto de ver propagandas nas mídias sociais idolatrando o livro, com aquele tipo de mensagem que soa um pouco arrogante e presunçosa ao afirmar que ao não ler livros as pessoas seriam menores ou piores; ou ao contrário: aquele que lê muito, uau! é o cara perfeito! Essas propagandas são até constrangedoras para quem escreve livros; no meu caso, pelo menos. E assim, “ler livros” fica com cara de obrigação, tipo voto obrigatório, serviço militar. Quem gosta? E eu desconfio dessas pretensas “formações humanas” a partir da leitura, as tais “influências literárias” dos clássicos. Quando vejo isso, lembro que muitos ditadores e psicopatas viram e veem a arte dessa maneira. Isso até é usado no cinema quando se quer ilustrar um personagem “maligno”, como no filme “O silêncio dos inocentes”, onde Hannibal Lecter se deleita ouvindo música clássica enquanto mastiga uma orelha que acabou de arrancar com a própria boca de um policial. Claro que os clássicos são demais e atravessaram e atravessam os tempos emocionando gerações de leitores. Mas é legal lê-los como foram lidos pela primeira vez: com curiosidade e encantamento, sem qualquer outro tipo de obrigação. E abandonar, se achar que está chato, pois às vezes não é a hora.
A poesia, aprendi com Manoel de Barros e Leminski, é um inuntensílio. Para que serve? Para revelar o belo e nada mais; simples assim.
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