Lúcia Hiratsuka, Orie e seu chamado da alma

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Sempre tenho fascínio em conversar com alguém sobre a cultura japonesa. É tão diferente da nossa e tão encantadora. Quando leio, ouço ou vivo de alguma forma algo sobre ela, me sinto como se uma brisa boa me tocasse, com afeto, calma e sabedoria. Os livros infantis da paulista Lúcia Hiratsuka me fazem este tipo de carinho. A infância retratada é outra e, ao mesmo tempo, a vivida por mim, ou a que habita meu imaginário. Me encontro com os irmãos de Corrida de Caracóis e Antes da Chuva (ambos da Editora Global), me enfeitiço em Histórias Tecidas em Seda (Ed. Cortez) e acabo de me entregar completamente a Orie, que a Pequena Zahar lançou recentemente.

Ele conta a história de filha de pais barqueiros e de suas aventuras cotidianas nos rios do Japão.

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Como quem tece seda e aprecia o tempo do rio, Lúcia nos dá em belíssimos rabiscos e frases curtas uma personagem encantadora em um livro de lembranças, lembranças da avó querida que dá nome e inspiração à obra. Em papel craft embrulhado numa capa dura de cor terra, a beleza do projeto gráfico é marcante. Você passeia nas páginas como quem pode navegar com Orie. Dá vontade de ir e vir. Como são lembranças, há passagens belíssimas como a que Orie compara o barco a um ninho. Só vendo para sentir.

Lúcia nasceu em um sítio chamado Asahi, que significa “sol da manhã”, na cidade de Duartina, interior de São Paulo, na região de Bauru. Ela conta que quando era bem pequena, sua avó rabiscou um peixinho no chão do quintal de terra. Ela fez o mesmo e nunca mais parou de desenhar. Suas garatujas também tomavam as paredes das tulhas e do terreiro onde o pai espalhava o café. E rabiscos em carvão também, para ela, queriam contar histórias e, assim, começou a Lúcia desenhista. Não demorou para que sua paixão focasse os ehons, que são os livros com ilustração. Aos 16 anos, mudou-se para São Paulo e na Faculdade de Belas Artes começou seus estudos sobre arte. “Depois que me formei, descobri a possibilidade de ir para a área de ilustração. Participei de Salões de Pintura, conquistei alguns prêmios, mas gostava mesmo de narrativas, do objeto livro, das cenas em seqüência, do universo que se abre a partir desse espaço”, conta Lúcia no site. Em 1988, recebeu uma bolsa de estudos para a Universidade de Educação de Fukuoka no Japão e escolheu o ehon como tema de sua pesquisa, e mostrou por lá em desenhos o folclore e as paisagens brasileiras. Voltou ao Brasil depois de um ano e passou a recontar e ilustrar contos e lendas japonesas, e depois, para nossa sorte, lembranças e referências viraram novas histórias. Hoje são mais de 20 livros.

Conversei com Lúcia sobre Orie e é o que vocês conferem abaixo:

foto tirada pelo escritor e mediador de leitura Tino Freitas, quando a autora visitou a ong Roedores de Livros
foto tirada pelo escritor e mediador de leitura Tino Freitas, quando a autora visitou a ong Roedores de Livros

ESCONDERIJOS: Lúcia, conte aqui um pouco sobre como nasceu o livro Orie e em quem você se inspirou para escrever esta história.

LÚCIA HIRATSUKA: Foi a partir da memória da minha avó, Orie. Ela contava que, quando pequena, adorava ir para a cidade com os pais barqueiros. E explicava, “o barco levava verduras, arroz e muitas coisas…”. Depois complementava,  “era que nem um caminhoneiro. ”

ESCONDERIJOS: Como era esta relação com a sua avó e as histórias que contava? Ela falava histórias vividas por ela ou também contava as histórias fantásticas japonesas?

LÚCIA: Eu conseguia visualizar as cenas, quando minha avó contava, por exemplo, que o caminho para sua escola tinha muitos pedriscos. Ou quando o professor dela, um monge, lhe dava as mãos para sair ao pátio. Na sua chegada ao Brasil, ela levou um susto ao ser servido pão com salame e a sua primeira casa era feita de troncos de coqueiros…  Mas, ela sempre tinha um olhar simples e poético para tudo. As lendas japonesas e cantigas, faziam, sim, parte do seu repertório, e uma das que eu mais gostava e me intrigava era a Urashima Taro.

 

(a lenda fala sobre a “eterna juventude” na história de um pescador que um dia salva uma tartaruga que, na verdade, era a filha do imperador do mar.)

ESCONDERIJOS: Como foi passar essa memória da sua avó para um livro infantil? No que você pensava, quanto tempo levou para fazer? Nasceu o texto ou a ilustração primeiro?

LÚCIA: Nesse caso, eu já tinha a história. Mas, precisava encontrar a forma de contar. E não adiantava ficar apenas na mente, era preciso rabiscar. Sentia que precisava de uma cor terra. Aí entrou o papel craft. O texto foi nascendo meio junto. Busquei frases simples, mas cheias de sonoridade. A repetição de “O remo de bambu vai e vem. Vai e vem, vem e vai”, mostra o olhar da criança-personagem ao ver o pai remando. Fiz tudo devagar, sem me preocupar tanto com o tempo.

ESCONDERIJOS: Quais foram as referências de pesquisa que você buscou para este livro especificamente? Ou tudo já fazia parte da sua história como pessoa e artista?

LÚCIA: Queria passar uma sensação de um LUGAR. Não era prioridade lembrar o Japão. Era a memória afetiva de Orie, um lugar que remetesse aos momentos de carinho dos pais, de aconchego, de terra natal. As roupas eu compus a partir do meu repertório que vi em livros, filmes, pesquisei um pouco, mas também entrou o que lembrava da roça: a minha mãe e as vizinhas usando lenços por baixo do chapéu para proteger o rosto do sol. E lenços embrulhando objetos fizeram parte do costume em casa.

ESCONDERIJOS: O projeto gráfico também foi ideia sua? O que você tem para me dizer sobre ele, capa dura, a cor do papel?

LÚCIA: Eu faço sempre um boneco (o protótipo do livro), com texto e ilustrações. Quando o projeto foi aprovado pela editora, trocamos ideia sobre os aspectos gráficos. A impressão teria que ser num papel opaco, não poderia ter brilho no resultado final. Na fase da montagem, a editora sugeriu desenhar o título, o que ficou bacana. A capa dura foi opção da Pequena Zahar, que teve um cuidado em todo o processo. E o livro teve a consultoria editorial da Dolores Prades, que antes da ideia estar no papel, sugeriu o título ao saber que minha avó se chamava Orie.

ESCONDERIJOS: Pensando nisso, me fale um pouco sobre as suas técnicas de ilustrar. Como você desenvolveu isso, por que tem este tipo de referência.

LÚCIA: Depois de me formar na Faculdade de Belas Artes, experimentei um pouco de tudo. Em Orie eu usei poucas cores, tentei valorizar o traço mais solto em carvão e os brancos em pastel seco. Não usei muitos elementos na composição, queria que a atenção do leitor fosse para a emoção da personagem. E o vazio dá um clima de silêncio. A arte do sumiê e o haicai sempre influenciam o meu trabalho.

ESCONDERIJOS: Para terminar, qual é o prazer de ilustrar? O que move você a continuar? Sãos os leitores? Ou são as emoções pedindo para sair? Quem a inspira artisticamente, Lúcia?

LÚCIA: Eu acho que é um chamado da alma. Agora as histórias começam a me procurar, de tanto que fui atrás delas e, nessa procura, busquei o como contar. A curiosidade e o desafio me motivam. Os leitores são as alegrias e as recompensas. São muitos os que me inspiram artisticamente, mas desta vez, vou citar apenas a  ilustradora japonesa Chihiro Iwasaki (1918-1974), isso porque ela tem uma série de livros que falam dessas primeiras emoções da infância.

uma imagem de Chihiro Iwasaki para degustarmos...
uma imagem de Chihiro Iwasaki para degustarmos…

ESCONDERIJOS: E o que você guarda no Esconderijo do Tempo? Qual é a memória cultural que, quando vem à tona, faz você feliz ou simplesmente abraça você por dentro?

LÚCIA: As brincadeiras de quintal com minhas irmãs; minha mãe lendo ou costurando; minha avó Orie ensinando a cantiga do entardecer, meu avô inventando coisas, meu pai voltando da cidade na sua perua rural, trazendo um pacote. Essas coisas simples e preciosas que me fazem construir histórias.

 

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