A Bruxa e O Espantalho nas palavras de Gabriel Pacheco

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abruxaeoespantalho1O livro não tem palavras. Nos leva do começo ao fim, do céu ao chão, do cinzento ao azul, da solidão ao amor. E quem ficou sem palavras fui eu. Diante da primeira lida de A Bruxa e o Espantalho, do mexicano Gabriel Pacheco e lançado aqui no Brasil pela editora Jujuba, o sentimento de poesia (isso existe??) foi tão intenso que eu assumi por alguns minutos que nada poderia falar sobre ele. Mas acho que consigo aqui.

Uma bruxa voava no céu e, numa distração, em um instante cai desmantelada no chão. Um espantalho preso ao chão assiste a tudo e acompanha a tristeza da bruxa que só deseja voltar ao céu novamente. Mas ela está sem vassoura, sem nada. E ele? Ah, ele está disposto a tudo para fazê-la feliz. É uma história de amor? De resiliência? De compaixão? Tudo junto. Só sentindo, ops!, lendo para ver. Pois tudo vem por meio de um projeto gráfico de emocionar, com ilustrações belíssimas e sombrias, delicadas e expressivas com pequenos detalhes (daqueles que você descobre e redescobre em leituras posteriores). Tem vento nele o tempo todo. Embora denso, forte e preciso, parece que o livro vai sair de nossas mãos. Só experimentando mesmo.

A Bruxa e o Espantalho mora há uns 10 anos na alma de Gabriel Pacheco, este mexicano premiado em sua terra natal e na Feira de Bologna (Itália), e que hoje mora em Buenos Aires, na Argentina. Foi nos bosques da cidade portenha que ele se inspirou para as belas imagens que você vê aqui. Conversei com ele sobre o livro e vejam até onde pode ir a alma de um artista.

 

FOTO DE ALICIA SUÁREZ
FOTO DE ALICIA SUÁREZ

ESCONDERIJOS DO TEMPO: A Bruxa e o Espantalho é seu primeiro livro como autor no Brasil? Eu encontrei apenas outros que você ilustrou. Quantos livros você já fez ao todo?

GABRIEL PACHECO: Como autor do texto e imagem, sim, e este livro tem uns 10 anos aproximadamente. Agora tenho mais dois livros escritos e ilustrados por mim que serão publicados no próximo ano e, espero, também possam ir para o Brasil. E, como ilustrador, são cerca de 40 livros, entre clássicos e livros ilustrados e livros álbum.

ESCONDERIJOS: Ele foi lançado em 2011, ok? Me conte como nasceu a ideia do livro, o que o inspirou.

GABRIEL: O livro nasceu de uma oficina que tive a sorte de fazer com Satoshi Kitamura (autor de livros como O que é que tem o meu cabelo?), em 2004, na Cidade do México. Naquela época, eu tinha na cabeça uma ideia que falava sobre o amor e a entrega, mas além do recebimento deste amor, uma ideia do amor romântico e de seu devaneio. Então, comecei a pensar em dois personagens que pudessem jogar com esta ideia e resultou em uma bruxa que deseja voar e um espantalho que está preso no chão e sempre olha para o céu. Esta oposição me pareceu muito interessante, e então mantive a ideia até que, na oficina, escolhi uma frase para trabalhar: desfazer do amor. Esta foi a origem, pensar que alguém se desfaz literalmente do amor é uma possibilidade de brotar algo novo. Claro, acontece tudo isso sob uma atmosfera cinzenta, muitas sombras, somando poucos momentos de luz, como se tudo fosse um tanto às escondidas. O único momento de cor na noite é justamente quando eles se encontram. É o “azul oceânico”, diria o poeta Ruben Darío.

ESCONDERIJOS: Quanto tempo você levou para fazer A Bruxa e o Espantalho? Levou mais tempo que outros?GABRIEL: Na verdade não levou muito tempo para ser feito, mas ficou guardado na gaveta, pois eu não me sentia seguro em publicá-lo. Foi trabalho da editora Eliana Pasarán, que insistiu para eu finalizá-lo. E uma vez decididas as imagens e alguns detalhes, foi pouco tempo para finalizar as ilustrações, e eu tinha um estilo pouco definido. E, por isso, significou um momento definitivo no meu trabalho.

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ESCONDERIJOS: O que este livro tem de especial para você?

GABRIEL: Com certeza é um livro que significa um tempo, uma forma de ver as coisas e uma aproximação com isto que amo, que são os livros. Mas significa também um ciclo em relação à ilustração e ao estilo, porque agora tento me distanciar dele, do estilo. Quando olho de longe, vejo que o livro é um momento artístico do meu trabalho. Por outro lado, pensar que posso imaginar histórias me abriu outra possibilidade: de me aproximar de outros tipos de projetos e outras relações entre a imagem e a palavra.

ESCONDERIJOS: Aqui no Brasil os livros só com imagens são pouco vistos ainda pelos leitores. Qual a beleza de um livro só de imagens, por que você gosta de fazer?

GABRIEL: Até recentemente, pouco se trabalhava com a ideia do “silente book”, o “livro silencioso.” A beleza destes livros é que ela oscila por sua própria natureza,  pois guardam sempre uma grande margem de possibilidades e permitem folgas ao mostrar o objeto vivo. E essas “folgas” narrativas são propostas e preenchidas pelo leitor. E assim, o ato de ler enfim se confirma como uma ação criativa.

ESCONDERIJOS: Por serem livros “para crianças” tem algum receio de fazer algo que pareça “sombrio”, como este? Qual a importância de a criança ter acesso a tipo de imagens diferentes, experimentar leituras diferentes?

GABRIEL: Sempre existiu um controle do que é permitido passar às crianças, mas penso que mostrar a diversidade é uma boa forma de aproximá-los e falar sobre o mundo em que vivemos. Eu não creio que haja temas impossíveis para uma criança e penso que o livro é inclusive um universo que permite tudo, qualquer tema, qualquer ideia, a mais complexa ou a mais densa. Se pensamos o livro como um interlocutor, precisamos pensar em como falar a uma criança, e não preferir o silêncio, o não dizer.

ESCONDERIJOS: Fale um pouco sobre as técnicas usadas, que importância e que histórias paralelas elas contam para nós?

GABRIEL: A técnica foi uma série de muitas. Tem trabalho em acrílico, texturas digitais, fotografia e colagem. Por exemplo, as árvores vêm de umas fotos que tirei dos bosques do bairro Palermo, em Buenos Aires. O presente que encontrei neste livro foi que era uma história simples que me permitiu trabalhar com certas metáforas e, simultaneamente, outras ideias foram se amarrando à história principal. Por exemplo, a história da ave fêmea que faz o ninho e encontra o macho no meio da noite; ou a do nariz do espantalho que ao final se transforma em pasto ou nuvem… Há também inclusos certos jogos abstratos, por exemplo, me interessei muito pelo jogo de “em cima” e “embaixo”, ou “voo” e preso ao “solo”. São caminhos que me permitiram sugerir uma espécie de paisagem por onde o leitor pudesse desbravar, sem a ideia de uma única trilha e, sim, de muitas.

ESCONDERIJOS: Você teve algum retorno de leitores, alguma história de crianças sobre o que elas acharam do livro? Quer contar?

GABRIEL: Sim, alguns professores têm me enviado atividades em que pedem às crianças que escrevam a história, e o uso de adjetivos e nomes é algo belíssimo. Acho particularmente algo interessante do livro, adjetivar uma imagem sem palavras, pois a ilustração sem texto acaba sendo um pequeno espelho de si mesmo. Dizer e nomear o mundo é importante, mas dizer isso com tons e luzes é fascinante.

ESCONDERIJOS: Por que escolheu uma história de amor? É este um amor improvável ou correspondido?

GABRIEL: Escolhi uma história de amor porque sempre gostei de pensar sobre isso. Creio que é uma veia que irriga a vida dos seres humanos, e muito parecido com o desejo, a ambição. Penso que são as asas que sustentam tantas coisas… Assim, não saberia dizer se é improvável ou não correspondido, penso que o amor é um ato cego que ilumina e se somos iluminados, temos algo para ver. Se um ama, pouco importa que seja correspondido; de fato, o improvável é o melhor, pois nos enchemos de vida.

ESCONDERIJOS: Quando leio o livro, sempre percebo a história de amor. Mas também penso no conceito de vida-morte-vida, de que a psicanalista e escritora americana-mexicana Clarissa Pinkolas Estés fala em Mulheres Que Correm com os Lobos (Ed. Rocco). Ela diz que este conceito estudou observando lobos, que são ótimos em relacionamentos e conta em um de seus livros que os homens poderiam aprender com isso. Ela diz que encarar um relacionamento vida-morte-vida é quando não saímos mais por aí à caça de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento. Pelo mito da “Mulher-esqueleto” , Clarissa afirma que é demonstrado que uma vida compartilhada, nos fluxos e refluxos, em todos os finais e reinícios, é o que cria um inigualável amor de devoção. Será a Bruxa e o Espantalho uma fábula sobre o amor moderno?

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GABRIEL: Não estou certo de que seja uma história do amor moderno, penso mais ser de um amor da essência, o que talvez tenhamos esquecido. É claro que há uma conexão direta com a morte, com o impossível, com o que nos abandona e como seguir em frente de outras maneiras. Como temos a morte como certa, imaginar e desejar são a pulsão que nos sustenta, por isso continuamos e nos mantemos vivos. Neste ponto que esses seres que conseguem se desfazer pelo outro conseguem transcender, continuar, seguir, porque permitem “apesar de”.  De alguma maneira o amor é desejar um pouco de cada vez. Por isso a bruxa é abandonada e o espantalho se abandona por ela, mas nesse desejo há muitas formas de se encontrar. Brotar seria a palavra. O amor é uma forma de voltar a brotar, como uma fibra, uma grama. A grama azul que brota.

ESCONDERIJOS: E você, Gabriel, o que você já viu de maravilhoso olhando para o céu?

GABRIEL: Vejo que nosso verdadeiro lugar se encontra lá, em cima de nós.

ESCONDERIJOS: Última pergunta: o nome do meu site, Esconderijos do Tempo, vem da ideia de que nós guardamos conosco memórias de cultura, memórias de infância ou até vividas depois, que guardamos para sempre em um “lugar” só nosso. Qual é a lembrança que você guarda no esconderijo do tempo?

GABRIEL: Creio que somos memórias, tudo isso que recordamos e nos faz ser. Assim, somos todos um “esconderijo do tempo”. Que bela ideia de usar este nome, porque de alguma maneira somos só o que vai ficando e também isso que vai ficando de nós nos outros, como se fôssemos esconderijos. Sim, o que o tempo nos permite guardar…

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