FUZARCA NA ARCA DE NOÉ

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Abriu a página, entrou na arca. As guardas-capas são de madeira. De madeira? Não, não é exatamente um projeto gráfico ousado com materiais diferenciados, recortes e outros recursos. É tudo papel comum e nem capa dura tem. Mas a provocação de “entrei na arca” é deliciosa, de verdade. São as primeiríssimas sensações de Fuzarca na Arca de Noé, com textos de Adriano Messias e ilustrações de Ionit Zilberman, lançado pela editora ÔZé. Depois a imersão continua. Na verdade, uma aventura em alto-mar, com direito a imaginar enjoos e muita bagunça.

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A clássica passagem bíblica começa com um homem barbudo (mas tão, tão barbudo que os pelos precisam ficar presos com pregadores de roupas) no grito tradicional “todos a bordo!”. O que vemos a seguir é um bando de animais com expressões de perdidos ou levemente preguiçosos correndo em direção à pagina seguinte: a grande arca, a conhecida Arca de Noé. Poderia ser mais uma versão da ideia que temos de 40 dias cheios de confusão em alto-mar desta história – que, de tão clássica, às vezes se desliga da representação da Igreja Católica e se torna um pretexto para uma boa narrativa com animais – que já experimentamos nos poemas de Vinicius de Moraes (Cia das Letrinhas) e nos livros de Ronaldo Simões Filho (Mazza Edições) e Milton Célio de Oliveira Filho (Editora Globo), por exemplo. Mas  o escritor vai além ao propor uma série de brincadeiras de linguagem com a formação dos nomes dos bichos e suas características, provocando um vaivém de significados, rimas e, consequentemente, estranhamentos e boas risadas. E o projeto gráfico, como mencionei no começo, dá um peso extra à bagunça. Eles vão entrando mas com muito empurra-empurra, comentários ácidos uns sobre os outros, críticas à decoração da arca, como se estivessem em um cruzeiro turístico que não deu lá muito certo.

Os estranhamentos, aliás, também nascem do projeto gráfico que não parou de nos provocar na guarda-capa. Antes mesmo da metade do livro, já estamos na história diante de quatro janelas típicas de navio com um animal em cada uma. A ilustração introduz as interpretações:

 

Ninguém queria ouvir o ornitorrinco, o primeiro a tentar pôr ordem nas coisas:

– Vocês não entenderam que estamos sendo salvos de um dilúvio? Isso aqui não é nenhum passeio ao zoológico.

 

(uma dica nada didática ao leitor de que aquilo ali faria parte de algo maior. “Será que foi assim mesmo?”, o leitor pode se perguntar entre realidade e imaginação)

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Em seguida, o desenho nos mostra a arca flutuando e o dilúvio a toda. Mas embaixo, o texto, ops!, inclina todo para a esquerda. E nunca mais para no lugar, enquanto continuamos lendo de brincar (ou seria o contrário?):

 

O disse que disse é que dava o tom do samba.

– Dizem que nunca mais a água vai baixar – comentou, pensativo, um camelo que sentia saudades do deserto.

– Meus pés precisam de um escalda-pés – resmungou a centopeia, colocando par cima dos seus cinquenta pares de tênis.

– Viram que a galinha-d’angola está com o pijama de bolinhas até esta hora? – fofocou a velha.

– E a senhora? Interferiu o castor. – Ainda está com o casaco de inverno! Aqui dentro já faz quase trinta graus.

Aquilo estava pior que ninho de gato.

O urso-panda foi parar no aquário da salamandra.

E a doninha foi bicar o milho da galinha.

Com o passar do tempo, algumas confusões eram desfeitas.

A anta saiu do quarto da elefanta.

A capivara desceu do poleito da arara.

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O jogo de significados, texturas e movimentos vai assim até o final nesse “salve-se quem pudesse”. E prova como o nonsense pode ser um recurso profundo para melhorar tantos e tantos discursos de nosso mundo politicamente correto.

 

Fuzarca Na Arca de Noé (editora ÔZé)

Textos de Adriano Messias

Ilustrações de Ionit Zilberman

 

 

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