“O trabalho de Caldecott anuncia o início do livro ilustrado moderno. Ele criou uma ingênua justaposição de palavra e imagem, um contraponto que jamais havia ocorrido até então. As palavras são deixadas de lado – mas as imagens transmitem a ideia. Imagens são deixadas de lado – mas as palavras transmitem as ideias.” A frase é do norte-americano Maurice Sendak (1928-2012) sobre o papel do inglês Randolph Caldecott (1846-1886) na história mundial do livro ilustrado. “Livro ilustrado” ou “livro-álbum” ou “picture book”. O termo em inglês sinaliza muito mais do que “um livro com ilustrações”. E essa é uma das mais ricas discussões da pesquisa no que chamamos de “literatura infantil”.
O que Sendak nos joga a pensar aqui é o marco que Caldecott nos deixa. “Foi uma transformação radical da relação entre os textos verbais e visuais que prevaleciam até então. Em histórias como A Frog Would A-wooing Go (1883) e Lasses and Lads (1884) surge um subtexto pictórico que expande a narrativa transmitida pela palavra escrita, em vez de apenas duplicá-la ou decorá-la”, contam os autores Martin Salisbury Morag Styles em Livro Infantil Ilustrado – A Arte da Narrativa Visual (Ed. Rosari). “Em contraste com o livro ilustrado comum, onde as figuras apenas enriquecem, decoram e ampliam o significado do texto, no livro infantil ilustrado moderno as imagens e as palavras possuem a mesma importância narrativa.”
Entre as tantas discussões dentro da literatura infantil e das concepções que a fazem cruzar com a história do livro ilustrado e até mesmo do considerado “livro de artista”, existe um ponto que tem me interessado muito. “Se você começar a ver o objeto pela ótica do livro ilustrado, vê uma manifestação artístico-literária, onde os elementos que se conjugam para constituir isso são desenho palavra e objeto. Então, se você falar que isso é sinônimo de literatura infantil, pode valer por um lado; mas, por outro, exclui de certa maneira muito da literatura infantil que não tem relação com a imagem e nem como objeto: que é literatura. E quando você chama de ‘livro ilustrado’ ao invés de ‘literatura infantil’, não é que a gente está negando que existe a criança, mas que existe uma coisa a ser discutida que é a relaçao de imagem palavra e objeto, que vai se chamar ‘literatura’, é uma literatura onde imagem e objeto também são chamados de ‘literatura’. Tantos aspectos do objeto quanto os plásticos estão junto com a discussão literária. Transforma a discussão do objeto em discussão literária, transformam a discussão da imagem em discussão literária”, diz Odilon Moraes, autor de dezenas de livros infantis no Brasil como escritor e ilustrador, e um dos mais importantes pesquisadores do livro ilustrado por aqui. Odilon é meu grande mestre nessa, digamos, “área” do estudo do livro e esta fala aconteceu em uma palestra no Ateliê Binah, em São Paulo, no início deste ano.
Com ele, no entanto, estou aprendendo mais ainda sobre o assunto, especificamente nas últimas semanas durante sua disciplina A Relação Texto e Imagem, no curso de pós-graduação lato sensu O Livro Para a Infância: Textos, Imagens e Materialidades, n’ A Casa Tombada (polo da Faculdade das Conchas), do qual sou coordenadora e que está com inscrições abertas, veja aqui. Encontro a encontro estamos sendo apresentados a incríveis livros e convidados a entrar na discussão que tantos teóricos pelo mundo já mergulharam e, para nosso espanto até, ainda não há definições prontas. O livro ilustrado – como possibilidades narrativas possíveis em palavra, imagem e projeto gráfico (objeto) – está ainda em plena fase de exploração.
Senti necessidade desta introdução aqui antes de listar com vocês alguns livros que me encantam – eu e milhões de pessoas, claro! – por instigar o leitor a estar aberto a captar a história pelos três sentidos. Livros em que a imagem já está desde a concepção e mexem com a nossa relação de tempo e espaço que o objeto nos sugere desde a criação do códice. Não vou falar muito sobre eles, pois aqui vai mais que tudo um convite: que vocês o procurem ou o releiam e descubram que a relação texto e imagem dentro de um objeto pensado para isso é a própria condição de narrativa. Em alguns, o livro inteiro tem necessidade do texto ou da imagem para narrar a história; em outros, determinadas imagens nos fazem captar a concepção do que o texto conta e, em outros ainda, palavras e imagens se contradizem de propósito, para dar sentido à narrativa. (E estes não os melhores, são preciosidades no meio a tantas.)
ONDE VIVEM OS MONSTROS, de Maurice Sendak, Ed. Cosac Naify
Um dos grandes clássicos mundiais, o livro foi lançado em 1963 e marca a nossa história por ousar tanto na concepção geral do livro, como no tema e tom abordados. É um livro que ao mesmo tempo causa espanto pela qualidade literária, quanto rejeição ao pensamento pedagogizante impregnado na literatura infantil. Ele conta a história de Max, um menino que, após uma briga com a mãe, dá de cara com sua própria raiva por meio de uma viagem até um lugar onde monstros terríveis moram. O garoto permanece na viagem, é eleito o rei dos montros e o mais monstruoso de todos, até que sente uma vontade inadiável de voltar para casa. Sendak, olhando para si mesmo, toca em um ponto muitas vezes ignorado por nós: a criança tem raiva e outros sentimentos fortes e são todos legítimos, ao mesmo tempo em que espera o acolhimento do adulto. Só que faz isso usando as três possibilidades de narrativa: o texto com a localização e nomeação de personagens e lugares; a imagem com a dubiedade do conceito de feio e “fofo”, misturando traços assustadores com certa meiguice, e o projeto gráfico que nos intensifica a entrada e saída de Max deste estado de raiva irrefutável usando o tamanho das imagens nas páginas, bem como o uso ou não das palavras.
ESTE CHAPÉU NÃO É MEU, de Jon Klassen, Ed. Martins Fontes
Este é um dos livros mais interessantes e precisos quando podemos falar do casamento “perfeito” entre texto e ilustração. Isso porque se escolhermos ler somente o texto ou exibir somente as imagens, não será possível entender a história. Tudo começa quando vemos um peixinho e um pequeno chapéu na cabeça. Narrado em primeira pessoa, sabemos, pelo texto, que aquele chapéu, por mais certinho que esteja nele, não é dele e, sim, de um peixe grande. Pelo texto, entendemos que o peixe se sente digno de usar o chapéu e que também não está preocupado com o que o verdadeiro dono vá fazer a respeito. Mas, pelas imagens, o leitor descobre – e se angustia! – que não seria bem assim. Esse jogo de contraponto entre texto e imagem faz a narrativa caminhar da graça à morbidez de um jeito que repetir a leitura nunca vai ser demais. Lançado pela primeira vez em 2012 e aqui em 2013.
O PASSEIO DE ROSINHA, de Pat Hutchins, Ed. Global
Mais de quarenta anos antes do Este Chapéu Não É Meu, em 1971, este livro é outr clássico do chamado “picture book”. O texto é uma narrativa singela e até mesmo um tanto tola (com uso de diminutivos e tudo) de uma galinha que dá um passeio pela fazenda onde mora. Se pegarmos somente o texto, entendiamos com a falta de emoção. Mas se observarmos as ilustrações, a história acontece: a ingênua galinha está sendo perseguida por uma raposa que se acha mais astuta do que realmente é. Ao leitor, resta aquela reação de crianças prestes a verem o palhaço de circo entrar em uma enrascada “cuidaaaaaaaaado”.
VIZINHO, VIZINHA, de Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani, Ed. Companhia das Letrinhas
É mais comum vermos nas publicações que uma página ao lado da outra corresponda a um tempo cronológico, ou seja: a primeira ação acontece na página da esquerda, depois vai para a direita… há variações mas, nesse livro, lançado em 2002, a dupla de páginas é um espaço e o tempo só acontece no virar. Ou, poderíamos dizer que, “ao mesmo tempo” vemos nas duplas de páginas três ações acontecendo. O livro está nos apresentando um andar de um prédio, e sempre narrando o que acontece no apartamento 101, o que acontece no apartamento da frente, o 102, e o que se passa no hall entre eles. Não bastasse isso, o projeto gráfico nos presenteia com três tipos de ilustração diferente: 101 é de Mariana, o corredor é de Roger e o 102 é feito pela Graça. Isso dá uma dimensão incrível do poder do objeto e de três linguagens entrelaçadas para narrar uma história adorável de dois vizinhos que estão envoltos em seu cotidiano, sim, mas de corações aquecidos para trocarem suas solidões.
NÃO VOU DORMIR, de Christiane Gribel e Orlando, Ed. Global
Ah, a hora de dormir… fardo diário das crianças e pais, luta muitas vezes que parece interminável. Esse tom dramático está na primeira imagem da menina mal-humorada que carrega seu urso como quem vai para um final terrível. Cumpre toda a rotina noturna com tédio e, em tom de desprezo, diz: “não vou dormir”. O texto continua com ela nos contando que “vai ficar bem acordada aqui na cama. Não estou com sono nenhum”. Ela continua em sua posição até que o leitor passa a enxergar sob a perspectiva da menina um quarto cheio de coisas. Mas, em determinado momento, algo acontece: o “frame” começa a dar pequenas fechadas, como aquelas pescadas que damos de sono, e a menina se entrega. O livro é de 2007.
FIQUE LONGE DA ÁGUA, SHIRLEY, de John Burningham, Ed. Cosac Naify
O livro de 1977 é um também um clássico da história do livro ilustrado e surpreende a cada nova leitura. O leitor inicia desavisado, pensando que vai acompanhar ali um simples passeio de uma família à praia. Mas a partir da primeira dupla de páginas vamos notando que o autor dividiu o livro em duas partes: uma, a “realidade”, com o cenário esperado da praia e os pais sentados em suas cadeiras dando recado à criança; do outro, Shirley completamente desconectada do cotidiano olhando o mar como uma aventura sem limites. A narrativa acontece calma, com frases-chavão dos adultos contrapondo com a criatividade da mente infantil. É a dobra da página que separa dos dois mundos e a história acontece nos mostrando quem nem tudo é (só) desconexão nas relações humanas.
O PERSONAGEM ENCALHADO, de Angela Lago, Ed. RHJ
Um tanto difícil de encontrar à venda (muitas vezes sob encomenda), este é apenas um dos livros em que a autora mineira nos prova o domínio e fascínio que tem como objeto como forma de criar uma história. Neste livro de 2006, a primeira aparição do personagem é saindo de dentro da dobra, em uma dupla de páginas com um subtexto que toma todo o espaço. Ainda com parte do corpo da personagem escondida, vemos na segunda dupla a narrativa em primeira pessoa: “Fui cair num livro assim…” até um “Quero sair dessa história!” e ele tenta mesmo. Na verdade, Angela nos expõe o dilema dos rumos da escrita de uma história, nos dando a deleite uma imagem literal de um personagem encalhado, ao mesmo tempo que o subtexto desenhado nos aprofunda na questão intrínseca a qualquer criador de narrativas. São possibilidades? Loucuras? Quem é ‘doido varrido’ (termo usado por ela), o leitor ou o autor?
A MENINA AMARROTADA, de Aline Abreu, Ed. Jujuba
Da capa, já vemos um convite ao projeto gráfico: o livro é para ser lido na horizontal. Os desenhos a lápis na guarda-capa nos convidam a um clima de campo, bucólico. Mas uma ventania vêm logo em seguida e nos indaga: será que vai derrubar tudo? Sem a apresentação usual do nome do livro, a história continua (sim, ela já havia começado!): “a menina morava do lado de lá. Do lado de lá era assim: às vezes fazia chuva, às vezes fazia sol. Fazia até tempestade tinha vez. Fazia dia frio. Caíam folhas quando batia vento seco. Era bom.” E, assim, na parte de cima do livro vemos ilustrações que nos dão um movimento de afeto e ação de uma menina e o pai. Unindo texto e imagem, vemos que há uma ruptura, um afastamento e é aí que a menina se “amarrota” e vive um sentimento novo, que ela tem que aprender a lidar. E para o leitor fica o convite de dar um final.
OLÍVIA E O GRANDE SEGREDO, de Tor Freeman, Ed. Brinque-Book.
Mal sabem os leitores, mas… a história começa com uma ilustração, antes mesmo da apresentação oficial do livro. Na página de créditos, Malu, a coelha, já está correndo rumo à amiga Olívia, a quem irá revelar um grande segredo. Neste ritmo da esquerda para a direita, a gente vê os personagens interagirem movidos a fazer ou não a tal revelação. Pequenos detalhes só entendidos bem depois do final, vão guardando a brincadeira do livro, até que o final chega, aparentemente sem grandes danos ao tal segredo. O leitor se vê frustrado, mas uma página é puxada pela Olívia, a dententora da verdade, e é somente ali que a história acaba. O livro foi lançado no Reino Unido e aqui no ano de 2012.
COMILANÇA, de Fernando Vilela, Ed. DCL
Este livro do premiado autor paulistano tem uma narrativa aparentemente simples, atrai demais as crianças menores, mas causa impacto no tema e na forma. Bem, a tal comilança acontece entre os animais – nada mais é do que um certo jeito de falar de cadeia alimentar, questão mais do que natural, mas um tanto assustadora. Ele começa mostrando uma minhoca do tipo fofinha, dizendo: “Num dia de sol, Dona Minhoca saiu para passear. Ela estava com muita fome e procurava uma plantinha para almoçar. Mas… peraí! Minhoca, tome cuidado! De quem é esse bico chegando ao seu lado?” e é aí que vemos a constante do livro: o bicho a chegar sempre aparece antes da narrativa, com parte de seu corpo aparecendo na página ao lado, variando a forma, mas sempre preservando o suspense. Mas será que a história termina em comilança geral? E é imagem final que nos mostra que sossego não é prerrogativa de vida selvagem…
LÁ E AQUI, de Carolina Moreyra e Odilon Moraes, Ed. Pequena Zahar
Um dos grandes livros de 2015, Lá e Aqui narra poeticamente em texto, imagem e objeto a separação dos pais sob a perspectiva de uma criança. O tom do texto, que iniciou a história, é docemente acompanhada por delicadas ilustrações em aquarela, que estão colocadas em um projeto gráfico nos remetendo a uma terceria experiência de leitura. Se já nos emocionamos com “os peixinhos foram morar nos olhos úmidos de minha mãe”, para nos dar a emoção do choro da mãe, as ilustrações que colocadas em seguida nos expõe uma “chuva” que “afogou” a casa, há ainda uma percepção de etapas desta história, divididas em um projeto que nos leva a notar a diferença na vida da família quando ela está junta, depois em conflito e, em seguida, diferente ou transformada.
ELOÍSA E OS BICHOS, de Jairo Buitargo e Rafael Yockteng, Ed. Pulo do Gato
À primeira dupla, a narração em primeira pessoa começa representada por um ursinho de pelúcia de um lado e uma frase forte de outro: “Eu não sou daqui”. A segunda, o susto: uma cidade nova, uma menina e um pai em um lugar desconhecido e assustador. Mas o assustador não está no texto. Está na imagem, com um cenário urbano comum mas repleto de insetos de vários tipos preenchendo o lugar. Na escola, ela se sentia “um bicho estranho” “a mais baixinha” e sofria com os atrasos do pai na hora da saída da escola. No texto, as angústias comuns de uma criança em cidade nova, só com o pai. Nas imagens, a representação desta angústia que, com o passar do tempo muda, literalmente, de figura. O livro foi lançado em 2009 na Colômbia e em 2013 aqui.